Cracolândia e drogas – diálogo com Frei Betto

Imagem: Elīna Arāja
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por JULIAN RODRIGUES*

A “solução” reside na mudança das condições materiais das pessoas, antes de tudo

Nosso sempre atento dominicano – um dos maiores ícones da esquerda brasileira – publicou no último dia 4 de setembro breve reflexão sobre o tema do crack, cujo uso aparentemente vem crescendo nas capitais e grandes cidades do país.[i]

Digo aparentemente por que o pânico moral disseminado pela grande mídia cria uma sensação de perigo imediato, o que não se sustenta em dados. São cerca de 1 milhão de usuários de crack no Brasil. Comparemos: há 4 milhões de dependentes de álcool, 12 milhões de fumantes e 1,4 milhões de usuários de cocaína. Existem cerca de 1,5 milhões de apreciadores do “cigarrinho do demônio”.

Nesse curto espaço não será possível fazer uma genealogia do tema. Para quem quiser se aprofundar eu indicaria, entre tantas, Dudu Ribeiro, Henrique Carneiro, Carl Hart, Edward MacRae, Jacqueline Muniz, Luiz Eduardo Soares.

A propósito. Sabem qual a mais exitosa política pública já executada no Brasil para enfrentar dependência química? Foram as ações antitabagistas. Caímos de cerca de 35% de fumantes nos anos 1980 para menos de 10% atualmente.

Campanhas publicitárias inteligentes, mais impostos etc. A velha disputa de ideias. A propósito, o tal cigarrinho eletrônico na moda hoje parece que anda fazendo estrago grande em certa juventude de classe média.

O Programa Nacional de Combate ao Fumo foi criado em 1985. Lembro-me de um cartaz do governo Sarney, com o slogan “fumar é brega”. O que, cá entre nós, funciona muito mais que aquelas fotos escatológicas nos maços. Ah, também foram proibidas propagandas de cigarro. O que devemos fazer em relação à cerveja e ao álcool em geral.

12% das brasileiras/os ainda fumam. Mas, vejam o contraste: 20% é consumidor abusivo de álcool. Ou seja: nosso maior problema é o abuso de álcool e não de maconha, pó, crack ou cigarro.

Voltando. Alberto Libânio acerta no essencial: “sou a favor da descriminalização das drogas e da liberação de seu uso controlado, desde que todo o processo, da fabricação ao consumo, esteja sob administração da saúde pública e tenha, por objetivo, livrar o usuário da dependência e erradicar o narcotráfico”, foi no fígado.

Frei Betto soma-se lindamente ao nosso maior gênio brasileiro: nosso Chico

“De mão em mão o ladrão
Relógios distribuía
E a polícia já não batia
De noite raiava o sol
Que todo mundo aplaudia
Maconha só se comprava
Na tabacaria
Drogas na drogaria”[ii]

Mais do Carlos Alberto: “ qual a solução? Uma delas reside no fator pedagógico, no resgate da autoestima dos frequentadores da Cracolândia. Como eles são tratados pela polícia? Como indesejados, viciados, vagabundos e nojentos. E pelos comerciantes e vizinhos?”

Aqui Frei Betto dá uma simplificadinha. Há certo idealismo na proposta.

A “solução” reside na mudança das condições materiais das pessoas, antes de tudo. Por isso o “Programa de Braços Abertos” da administração de Fernando Haddad[iii] na Prefeitura de São Paulo é tão fantástico – e devia ser replicado por todos governos progressistas do Brasil.

Trata-se de permitir que as pessoas não fiquem 24h nas ruas, colocá-las em quartos de hotel, oferecer trabalhos adequado às limitações delas, pagá-las. A cada dia que atuavam nas frentes de trabalho, os participantes do programa recebiam seu pagamento.

E não havia opressão moral, repressão, controle. Cada cidadão usava autonomamente o dinheiro que ganhou trabalhando. Tutela não vale, muito menos paternalismo. Aliás, é um debate parecido com o que houve lá no início do Bolsa Família.

Ah, como esses pobres vão gastar esse dinheiro? Vão tudo se embriagar com cachaça! Dar dinheiro pra craqueiro? Hotel para essa ralé?

Agora volto ao meu mantra: a esquerda precisa sair do senso comum! Romper com o conservadorismo. Parar de querer mimetizar Ratinho, Siqueira Jr, Datena. Estudar esses temas.

Política de drogas deve ser tratada cientificamente levando em consideração as melhores evidências empíricas e teóricas.

Se a gente não enfrentar esse tema logo, logo a cannabis sativa e todas seus derivados serão legalizados. Que bom!

Depende. Como se dará o processo? Será por pressão dos EUA, que virão em breve a monopolizar nosso mercado – obrigando-nos a importar tudo deles?

Uma dica cultural. Vejam a série de comédia (Disjointed) protagonizada pela genial Kathy Bates, dona de uma lojinha na Califórnia onde comercializa tudo que vocês possam imaginar relacionado à weed, dope, grass, ganja, pot, marijuana; obviamente, só para efeitos medicinais (em 2017 nem na Califórnia ainda se havia legalizado o uso recreativo).

Aliás, por que defender apenas a legalização da Cannabis? Confesso que essa parte da esquerda gratiluz/haribô/hiponga – que só atua em causa própria – me cansa demais.

Por que Marcha da Maconha e não marcha pelo fim da guerra às drogas e pela legalização? (Pior são os argumentos hipongas de que maconha é ancestral, remédio etc. e tal – o resto é química! Como assim?)

Enfim, até do ponto de vista estritamente capitalista a atual política de drogas é arcaica e vai se tornando cada vez mais disfuncional. Bíblia dos liberais chics, a revista The Economist, defendeu em outubro de 2022 a legalização da cocaína, criticando a timidez de Joe Biden!!!.[iv]

Quando neoliberais imperialistas tem posições menos reacionárias e caretas que boa parte da esquerda, não seria hora de parar, estudar, pensar e mudar? E viva Frei Betto por colocar o dedo na ferida!

Todavia, a matança e o encarceramento em massa de jovens pretos e pobres só pode ser enfrentada com a desmilitarização das PMs e com a legalização e regulamentação de todas as drogas. O resto é hipocrisia, ou boa vontade idealista de certo progressismo branco classe média – somado ao pragmatismo conservador (e anticientífico) da maioria dos dirigentes de esquerda.

Para não mencionar a onipresente tentativa de “dialogar” com o fundamentalismo cristão, ao invés de tentar politizar as coisas – discutindo a vida concreta, material, combatendo qualquer tipo de discriminação (“atire a primeira pedra quem não tem pecado; “o deus grande não faz acepção de pessoas”).

Legalize djá!

*Julian Rodrigues, jornalista e professor, é militante do PT e ativista do movimento LGBTI e de Direitos Humanos.

Notas


[i] https://altamiroborges.blogspot.com/2023/09/cracolandia-e-subjetividade.html

[ii] Outros Sonhos: Chico Buarque, 2006, no fantástico álbum Carioca

[iii] https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/DBAAGO2015.pdf

[iv] https://www.economist.com/leaders/2022/10/12/joe-biden-is-too-timid-it-is-time-to-legalise-cocaine


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Régis Bonvicino (1955-2025)
Por TALES AB’SÁBER: Homenagem ao poeta recém-falecido
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
Alcançando ou ficando para trás?
Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO: O desenvolvimento desigual não é acidente, mas estrutura: enquanto o capitalismo promete convergência, sua lógica reproduz hierarquias. A América Latina, entre falsos milagres e armadilhas neoliberais, segue exportando valor e importando dependência
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES