O marxismo e a sociologia do sindicalismo

Eliezer Markowich Lissitzky, Vença os brancos com o pôster Red Wedge, 1920.
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Por THIAGO BARISON & ANDRÉIA GALVÃO*

Apresentação da edição brasileira, recém-lançada, do livro de Richard Hyman

O livro de Richard Hyman O marxismo e a sociologia do sindicalismo (Londres: Pluto Press, 1971), cuja primeira tradução para o português a Editora Enunciado ora publica em sua coleção Teoria marxista e análise concreta, destaca-se entre as raras sistematizações dos aportes teóricos dos clássicos do marxismo a respeito do movimento sindical dos trabalhadores. Tudo gira em torno desta questão: quais são os limites e as possibilidades políticas do movimento operário na sociedade capitalista?

A importância dessa questão de fundo e a maneira objetiva e rigorosa com que Richard Hyman a enfrenta ajudam a entender o porquê das numerosas referências que O marxismo e a sociologia do sindicalismo recebeu em pesquisas realizadas ao longo dos anos desde sua primeira edição, em países como México, Costa Rica, Argentina, Brasil, Espanha, França, Bélgica, Turquia, China, Coréia do Sul, entre muitos outros.[i]

Para os estudiosos da sociologia do trabalho e do sindicalismo, Richard Hyman ocupou o papel de um dos principais interlocutores quando se trata de discutir a abordagem marxista; para muitos pesquisadores, o acervo teórico contido neste livro serviu de inspiração e guia para as pesquisas empíricas e comparativas do movimento operário em diferentes conjunturas e países. Mas não é só: a linguagem clara e o caráter conciso e ao mesmo tempo abrangente do livro fazem dele um valioso instrumento para o conhecimento do assunto à disposição de militantes sindicais e do público em geral.

A discussão é organizada por Richard Hyman a partir do pensamento das duas primeiras gerações de marxistas: Marx, Engels, Rosa Luxemburgo, Lênin e Gramsci. Tais autores, como é sabido, eram “intelectuais orgânicos”: buscavam conhecer cientificamente o sindicalismo para orientar o trabalho de suas organizações políticas revolucionárias junto à classe operária.

Essa proximidade e o fato de que o movimento operário passava, então, por suas primeiras grandes experiências, seus primeiros grandes triunfos e derrotas – é de se lembrar que o movimento socialista e o movimento sindical dos trabalhadores nasceram na mesma época, com pouca diferença de idade – fez-se refletir na forma de uma tensão no pensamento desses marxistas.

Richard Hyman analisa as contrastantes posições teóricas e expectativas em relação ao movimento sindical que apareceram nos clássicos do pensamento marxista – acompanhar esses desenvolvimentos é muito instrutivo. E, ademais, Richard Hyman traz à discussão perspectivas concorrentes, como a da sociologia “profissional” do sindicalismo, ou, então, a de Robert Michels, defensor da célebre tese da “lei de ferro da oligarquia”, que submeteria inescapavelmente o movimento operário a uma elite burocrática e a suas “necessidades organizacionais”.

Ao contrário do marxismo, as instituições universitárias, por definição, se autodeclaram livres de qualquer objetivo político; por conseguinte, seus pesquisadores normalmente procuram restringir o arco de problemas a questões “internas” ao objeto de pesquisa, como, por exemplo, o problema da democracia nas instituições sindicais. A despeito dessa autodeclarada neutralidade, a sociologia do sindicalismo exerce importante influência sobre gerências empresariais e aparelhos estatais, que buscam integrar e normalizar o movimento operário; e essa influência, por sua vez, produz uma ação de retorno sobre os horizontes de tais pesquisadores, que raramente transcendem a ordem posta.

Portanto, temos a oportunidade de contemplar o sindicalismo como um campo de batalha de ideias, horizontes e objetivos políticos. Esse percorrido, pela escolha dos problemas e autores, significa por si só um enorme serviço a quem pretenda conhecer as diferentes e concorrentes abordagens teóricas existentes sobre o movimento sindical.

Mas, O marxismo e a sociologia do sindicalismo vai além e possui a grande virtude de oferecer uma síntese marxista das contradições que constituem e dinamizam o sindicalismo dos trabalhadores; uma síntese das pressões externas e internas ao movimento que em diferentes circunstâncias históricas o permitiram exercer papéis tão distintos, como o de integração à gestão do capitalismo e o de alavanca de sua transformação revolucionária.

Como diz o próprio Richard Hyman em Industrial relations: a marxist introduction (1975), os estudos nessa área geralmente são empíricos e descritivos. A carência de referenciais teóricos impacta as análises e interpretações, que tendem a naturalizar os fenômenos e a tratá-los como auto-evidentes ou incontornáveis. Segundo o autor, o escasso avanço da sociologia do sindicalismo até o começo dos anos 1970 fazia com que as análises fossem parciais, sem que os processos internos aos sindicatos estivessem relacionados aos aspectos externos a eles.

Richard Hyman, por sua vez, ressalta a importância de se considerar as condições político-econômicas, especialmente a ação do Estado, bem como as iniciativas e reações patronais, para a compreensão da ação sindical. Esta não pode ser isolada das políticas de emprego, do conjunto de direitos conquistados pela luta das/os trabalhadoras/es e garantidos em lei, dos espaços de participação política, das estratégias de integração e de repressão a movimentos e dirigentes sindicais, das formas de organização e gestão da força de trabalho, das inovações tecnológicas e de seus impactos sobre o mercado de trabalho, entre outros fatores fundamentais.

A negociação coletiva, os conflitos do trabalho e, particularmente, as greves, são fruto de uma dinâmica que extrapola os agentes diretamente envolvidos nessas ações, sendo necessário contemplá-las à luz da estrutura de classes e das diferentes fases que caracterizam o modo de produção capitalista. Os períodos de crise e de crescimento econômico afetam a capacidade de negociação, de representação e de mobilização das/os trabalhadoras/es, do mesmo modo que os regimes políticos, o funcionamento das instituições democráticas, o grau de abertura dos governos à participação popular, os valores e ideologias dominantes.

Resta evidente que Richard Hyman amplia o foco de análise das relações de trabalho e do sindicalismo, incorporando dimensões relativas à política, à subjetividade dos agentes, às identidades das organizações. A teoria marxista, insiste o autor, proporciona uma estrutura de leitura e de compreensão do mundo que nos instiga a olhar para o papel do Estado, do trabalho e do capital não como atores neutros e simétricos, mas atentando para a natureza de classe do primeiro e para a assimetria de poder entre as classes.[ii]

Ao mesmo tempo, Richard Hyman se contrapõe a uma análise voluntarista, que essencializa o papel dos explorados e de suas organizações, atribuindo-lhes um caráter unívoco e livre de contradições. Essa é a principal contribuição do livro que ora temos em mãos. Sistematizando e dialogando com a tradição marxista sobre o papel dos sindicatos, Richard Hyman aponta os limites tanto da visão otimista (atribuída a Marx e Engels), quanto da visão pessimista (associada a Lênin, Michels e Trotsky), sob o argumento de que ambas são parciais. Nem inerentemente revolucionário, nem burocratizado, economicista e fadado à colaboração de classes, o sindicato, para Richard Hyman, deve ser analisado a partir da combinação de fatores estruturais e conjunturais.

Seguindo as indicações de Perry Anderson (1967, p. 264), Richard Hyman discorre sobre a “natureza dialética da interação entre sindicatos e sociedade capitalista”, já que os sindicatos são, simultaneamente, parte do capitalismo e oposição a ele. Por um lado, os sindicatos desafiam o poder do capital, colocam em questão o tema do poder e do controle, que são fontes de conflito político; por outro, podem se limitar a melhorias econômicas e a reivindicações compatíveis com os marcos do capitalismo. Nesse sentido, possuem tanto potencialidades, quanto limites.

Os sindicatos podem prejudicar o funcionamento do sistema econômico capitalista, mas também podem ser usados contra os interesses das/os trabalhadoras/es, disciplinando seus membros de modo a facilitar o controle exercido pelo capital e contribuindo, assim, para a estabilização do capitalismo. Esse entendimento leva Richard Hyman a considerar o sindicalismo como expressão da luta de classes, portanto, do antagonismo estrutural entre capital e trabalho, ao mesmo tempo em que nos alerta para a necessidade de contextualizar a análise: a integração do sindicato está associada a certas fases do desenvolvimento capitalista, mas nem sempre prevalece sobre a contestação.

Algumas demandas não podem ser aceitas em determinados contextos, ao passo que em outros representam vitórias significativas, que não devem ser menosprezadas na luta política e sindical. Aliás, esse é um tema que atravessa a obra de Richard Hyman: a atividade sindical não se restringe a questões diretamente ligadas ao trabalho, como salário, carreira e benefícios trabalhistas. Muito embora haja sindicatos que privilegiam demandas materiais e imediatas, sua atuação não deixa de expressar uma dimensão política, para além da econômica. Nesse sentido, é impossível pensar num sindicalismo puramente “de negócios”.

Assim, Richard Hyman nos ensina que não há “leis de ferro” nas relações de trabalho. Se os constrangimentos objetivos e as relações de poder estabelecidas determinam parte das regularidades observadas, a ideologia e a consciência de classe possuem um papel igualmente importante, podendo modificar a correlação de forças e contribuir para o desenvolvimento de projetos políticos alternativos ao capitalismo.

*Thiago Barison é doutorando em ciência política na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e advogado em direito previdenciário e sindical, autor de, entre outros, A Estrutura Sindical De Estado No Brasil E O Controle Judiciário Após A Constituição De 1988, LTr. https://amzn.to/3PUjS7R

*Andréia Galvão é professora do Departamento de Ciência Política da Unicamp, autora de, entre outros, Neoliberalismo e Reforma Trabalhista no Brasil, Ed. Revan. https://amzn.to/3LFPQlU

Referência


Richard Hyman. O marxismo e a sociologia do sindicalismo. Tradução: Thiago Barison; Revisão técnica: Davisson C. G. de Souza. São Paulo, Enunciado Publicações, 2023, 112 págs.

Bibliografia


ANDERSON, Perry (1967). “The limits and possibilities of trade unions action”. In: BLACKBURN, Robin; COCKBURN, Alexander. The incompatibles: trade union militancy and consensus. London: Penguin.

GALVÃO, Andréia (2023). “Relações de trabalho e sindicalismo em Richard Hyman”. In: VÉRAS DE OLIVEIRA, Roberto; RAMALHO, José Ricardo; SANSON, Cesar. (Org.) Diálogos Críticos: o pensamento estrangeiro e a sociologia do trabalho no Brasil. São Paulo: Annablume/Abet, no prelo.

HYMAN, Richard. (1975). Industrial relations: a Marxist introduction. London, The Macmillan Press.

______. (2001). Understanding European trade unionism: between market, class and society. London: Sage.

Notas


[i] COS EGEA, Manrique. “El derecho de libertad sindical como manifestación del carácter transaccional del Estado Social”, in: Revista de la Facultad de Derecho de México, Tomo LXXIII, n. 285, Enero-Abril/2023, pp. 126-148. VILLAGRA, Priscilla Carballo. “Hacia un reposicionamiento de los estudios del trabajo: el desarrollo de la Sociología del Trabajo y sus principales debates.”, in: Anuario de Estudios Centroamericanos, vol. 37, 2011, pp. 307–25. D’URSO, Lucila.; LONGO, Julieta. “Radical Political Unionism as a Strategy for Revitalization in Argentina”. Latin American Perspectives, vol. 45, n. 6, 2018, pp. 97–113. ROMO, David Molina. “Las relaciones partidos-sindicatos desde la perspectiva de la ciencia política”. Universidad Internacional de Andalucía, 2010. PAQUET, R. ; TREMBLAY, J.-F; GOSSELIN, É. «Des théories du syndicalisme: synthèse analytique et considérations contemporaines». Relations industrielles, 59(2), 295–320. MARTÍNEZ LUCIO, M. “Union politics, purpose and democracy: To be or not to be? Optimism, pessimism and the continuing importance of Richard Hyman’s early contributions.”, In: Capital & Class, vol. 36, Issue n. 1, 2012, pp. 35–51. FREGE C., KELLY J., MCGOVERN, P. “Richard Hyman: Marxism, trade unionism and comparative employment relations”. British Journal of Industrial Relations, vol. 49, issue n. 2, 2011, pp. 209–230. COHEN, Sheila; MOODY, Kim. “Unions, Strikes and Class Consciousness Today”, Socialist Register, vol. 34, 1998. YILDIRIM, E. “Ad Honorem Richard Hyman”. Çalışma İlişkileri Dergisi, vol. 4, Issue n. 1, 2013, pp. 1-14. JI, Minsun. “With or Without Class: A Comparative Study of Union-Worker Cooperative Relations in the U.S. and South Korea”. University of Denver, Electronic Theses and Dissertations, 2016, n. 1.230. NG, Sek Hong; IP, Olivia. “Hong Kong’s Trade Unions as an Evolving Social Organisation and Their Prospects for the Future”. In: Kuah-Pearce, K. E., & Guiheux, G. (Eds.). Social movements in China and Hong Kong: the expansion of protest space (ICAS Publications Series, 9). Amsterdam: Amsterdam Univ. Press., 2009, pp. 205-227.

[ii] Retomo a seguir, de forma sintética, alguns argumentos desenvolvidos em Galvão (2023), em que abordo as contribuições do autor em diferentes momentos de sua trajetória intelectual: Industrial relations: a Marxist introduction (1975), em que propõe uma “economia política das relações industriais” e Understanding European trade unionism: between market, class and society (2001), em que analisa as identidades e ideologias sindicais a partir de um “eterno triângulo” de geometria variável no interior do qual os sindicatos atuam: entre o mercado, a classe e a sociedade. Esta segunda, que incorpora outros referenciais teóricos além do marxismo, é a obra de Hyman mais frequentemente citada pelos pesquisadores brasileiros.


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