A fé e o fuzil – crime e religião no Brasil do século XXI

Imagem: Khaled Hourani
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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

Comentário sobre o livro recém-lançado de Bruno Paes Manso

Bruno Paes Manso, autor de A República das Milícias (2020), publicou outro livro de leitura obrigatória para quem deseja entender o Brasil contemporâneo. Trata, em especial, das condições de vida urbana popular e as consequências socioeconômicas e políticas: A fé e o fuzil: Crime e religião no Brasil do século XXI.

Ele entrevistou antigos criminosos e se questionava se o dito era uma mistura de ilusões e autoenganos decorrentes da confusão causada pela própria fé adotada para “a ressurreição”. Esta não era um episódio incomum entre os relatos de conversão mais fantásticos. Seriam “licenças poéticas” do entrevistado para convencer a si próprio?

Havia um fosso cognitivo entre os mundos do entrevistado e do entrevistador. Um era repleto de dogmas e dependente de uma fé sem compartilhamento. Outro só colocava dúvidas e buscava explicações para testar hipóteses apriorísticas.

Exigia o entrevistador ter empatia: capacidade de se identificar com outra pessoa, de sentir o que ela sente, de querer o que ela quer, de apreender do modo como ela apreende. As conversões pessoais (e sociais) fantásticas chamavam a atenção pela capacidade de transformar situações de forma efetiva.

Envolvia arrependimento das pessoas em apuros, abandonadas, sozinhas, e a compreensão verdadeira de sua postura inadequada diante da vida ser uma das causas do seu infortúnio. As igrejas pentecostais abriam as portas para essas pessoas se integrarem a uma nova rede, ofereciam verdades para transformar os excluídos em “cidadãos de bem”. Para os agraciados com o dom de acreditar nessas verdades, havia a chance de se reinventar de modo a seguir as regras e as expectativas da sociedade.

O perdão servia para anistiar os pecados acumulados, aliviando assim a consciência e fortalecendo o amor-próprio. Tudo depende de uma decisão-chave do convertido: arrepender-se dos erros passados, abandonar a vida de pecado e seguir em frente ao lado de Jesus. Quem se sente à beira da morte abraça a chance com abnegação.

Esta expressão é referente à ação caracterizada pelo desprendimento e altruísmo, no qual a superação das tendências egoísticas da personalidade é conquistada em benefício da pessoa por uma causa ou princípio. Ela tem duplo sentido. Quando se refere à crença, trata da renúncia ascética à própria vontade em função de anseios místicos ou princípios religiosos. Quando se refere à filosofia, é o sacrifício voluntário dos próprios desejos ou das tendências humanas naturais em nome de qualquer imperativo ético.

Essas metamorfoses mentais podiam ser feitas sem apelar para o sagrado? Dava para dispensar os pensamentos mágicos? Era possível realizar tal empreendimento a partir de uma educação formal? Como a lógica do pensamento religioso podia ajudar na construção de uma autoridade racional, reconhecida como legítima?

Essa reprogramação mental transforma comportamentos, estabelece novos parâmetros de “certo e errado” e determina outro sentido para a vida. Ocorre “de dentro para fora” porque se vincula à vontade e ao compromisso pessoal, surgidos na mente.

Depois da mudança, a nova crença continua a oferecer saídas inteligentes para problemas complicados. Era preciso, ao mesmo tempo, perdoar e ser perdoado por matadores contumazes.

Exige renunciar à violência para lidar com seus conflitos e parar de usar drogas, de fumar e de beber. Também mudar a forma de se relacionar com as mulheres e costurar uma nova rede de amigos com o abandono da antiga.

A conversão, nesse sentido, se revela como uma estratégia de sobrevivência, ao desarmar conflitos por meio de pactos de não agressão. Permite desenvolver uma rede de apoio para empreender – e ganhar a vida honestamente.

Na “Metanoia” (conversão), a pessoa renasce e torna a viver uma encarnação no mesmo corpo, sem precisar morrer. Manso colecionou muitos desses casos porque eram histórias pessoais extraordinárias em contextos urbanos de violência.

Os casos eram os mais variados porque as conversões atingiam grupos, ocupações e classes de renda e riqueza diversas. Muitos ocorriam depois de longos períodos de depressão. Mas também havia os gatilhos das epifanias – um recado dos céus, uma voz, um sonho, um acontecimento marcante –, a revelar a urgência da mudança de rumo.

Também policiais passaram a usar a violência para impor suas vontades diante das adversidades, como se assim fossem livres, capazes de fazer suas próprias leis e julgamentos sumários. Na visão desses grupos, o extermínio de bandidos funcionava em duas frentes: fazia desaparecer os jovens considerados perigosos e ensinava obediência aos demais sobreviventes das chacinas policiais.

Foi o caso de muitos justiceiros – moradores das periferias paulistanas tornados matadores, financiados por comerciantes locais – e de policiais militares. Começaram a matar achando, assim, reduzirem o crime.

Na prática, disseminaram mais violência. Cada morte promovia círculos de vinganças e conflitos. Fizeram as taxas de homicídios explodirem.

Policial antes honesto acabava descobrindo corrupções dentro da própria polícia. Mandava os suspeitos para a delegacia de manhã e, à noite, já os encontrava na rua.

Perguntava como tinham saído; eles diziam para ele ir “buscar sua parte do dinheiro com o delegado”. A revolta contra o sistema vai crescendo e com o tempo amadurece a ideia de executar os suspeitos.

No processo de autoengano, passa a “matar por idealismo”. Assassina os garotos reincidentes, vistos como incuráveis, porque, em sua perspectiva de juiz sem contraditório, deviam sumir do mundo para torná-lo mais seguro.

Após um vacilo como prender, na frente de diversas testemunhas, um suspeito a ser executado, vai para a prisão. Quando passa anos preso em regime fechado, recebe convites para fugir e trabalhar em quadrilhas formadas por policiais, com conexões fora do país, especialistas em extorsão, roubo e furto de carros.

Quando vai se adaptando à vida de detento, ao mesmo tempo, vai perdendo contato com “o lado de fora” da prisão. Vê a família se afastar, seus filhos crescem à distância e sua mulher não vai mais visitá-lo. Por esse abandono, aceita o convite dos evangélicos para ir a um culto dentro do presídio.

Ali, “cai na real”: sua vida havia sido um erro, uma imensa ilusão, e sua nova identidade seria moldada pelas novas crenças. Deus teria deixado um manual, a Bíblia, para os crentes seguirem suas instruções.

A história de muitos ex-policiais matadores ao se converterem em crentes, contém certa transformação. Muitos haviam se tornado exterminadores por acreditarem os bandidos não terem salvação por serem essencialmente ruins, malvados, sem chance de recuperação. Por isso, deveriam ser eliminados em vez de presos.

Contudo, quando os próprios policiais matadores se transformavam e passavam a acreditar na possibilidade de mudança, passavam a acreditar: todos devem ter chances de se transformar. Afinal, “um homem não pode querer assumir o papel de Deus sobre a vida e a morte de outros seres humanos”.

Quando o ex-policial se encontra abatido, sem esperança de escapar da morte, ameaçado dia e noite pelos outros presos, sentindo-se vulnerável a ponto de tentar o suicídio, passa a estar aberto para mudar suas crenças. Aprende a ter amor pela vida.

Muitos, mesmo depois de convertidos em crentes, sofrem retaliação de criminosos do PCC, em atentados contra policiais, assassinados até na frente da nova família. Eles haviam se transformado, mas o mundo continuava o mesmo.

Outros crentes mais pragmáticos e/ou realistas assumem, por exemplo, uma missão na Cracolândia para trabalhar com as travestis ou transsexuais. Pregam elas não mudarem suas identidades ou orientações, mas deixarem as drogas e as ruas.

Meros fenômenos isolados não ajudam a explicar alterações estruturais da sociedade. Com o tempo, contudo, os casos de conversão se mostraram sintomas visíveis de uma sociedade em mutação, cujos integrantes tentavam se adaptar aos sobressaltos e mudanças pelos quais o país vinha passando.

Segundo Bruno Paes Manso, em seu livro de leitura fundamental para entender o Brasil urbano, ou mais precisamente, a periferia metropolitana, “a modernidade e a urbanização carregam um passado de escravidão e de violência. Ele nos assombrará por muito tempo”.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/3r9xVNh]

Referência


Bruno Paes Manso. A fé e o fuzil: Crime e religião no Brasil do século XXI. São Paulo, Todavia, 2023, 304 págs. [https://amzn.to/3RYP2fX]


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