Por NILDO VIANA
Considerações sobre o livro de Roberto Gomes
Crítica da Razão Tupiniquim, publicado em 1977, em sua primeira edição, apresenta uma reflexão interessante sobre a “filosofia brasileira”. O livro não obteve o reconhecimento que merecia. A importância da temática (especialmente para os filósofos brasileiros, mas que extrapola o âmbito das questões filosóficas e adentra na questão da cultura brasileira), a originalidade da abordagem, o seu senso crítico diante do que denomina “dependência”, entre outros aspectos, revelam alguns de seus méritos. Por conseguinte, torna-se importante resgatar essa obra e realizar uma reflexão crítica ao seu respeito.
Roberto Gomes é um intelectual que produz obras literárias e reflexões filosóficas, membro da Academia Paranaense de Letras. Ele apresentou uma reflexão muito interessante sobre a “razão tupiniquim”. Infelizmente, tal obra é menosprezada ou desprezada por muitos. Isso limita seu alcance, influência e divulgação, bem como as reflexões críticas ou desdobramentos que poderiam suceder ao debate em torno dela. Talvez a sua recusa de certo tipo de “seriedade” seja uma das determinações desse processo, embora não seja a mais importante.[i]
O principal motivo do não reconhecimento de sua obra reside em sua crítica à diversas produções culturais, bem como sua crítica à razão afirmativa e à razão ornamental, que continuam predominando na sociedade brasileira, mesmo que sob outras formas. Além disso, revela os vínculos desse processo com o que denomina “dependência”, o que abre espaço para uma crítica geral da cultura brasileira que muitos querem evitar.
O problema de uma “filosofia brasileira”
A obra de Roberto Gomes reflete sobre a possibilidade de uma “filosofia brasileira”, ou de uma “razão tupiniquim”. Roberto Gomes constata que não existe uma “razão brasileira” e discute a questão da originalidade e dos seus obstáculos no caso brasileiro. Ele afirma que no contexto brasileiro, marcado pelo culto do estrangeiro e pelo formalismo, uma reflexão que necessita ser realizada é “sobre as condições de possibilidade de um juízo filosófico brasileiro” e complemente com a pergunta: “a filosofia, de terno e gravata, pensa?”.
Roberto Gomes chega a esta questão por partir de alguns pressupostos, entre os quais que a filosofia é uma “razão que se expressa” e que seu objetivo é a “autorrevelação”, ou o “strip-tease cultural”. Foi isso, segundo esse autor, que realizou a filosofia grega. A descoberta é sempre autodescoberta: “de fato, descobrir-se é encontrar-se em, pelo simples fato de não haver um ‘outro’ que eu deva descobrir – desde o início sou eu quem está em questão. A descoberta é, pois, fenômeno primário: um re-conhecimento” (Gomes, 1994, p. 19). Dessa forma, Gomes vincula filosofia e realidade.
Ao inverso do comumente suposto, não é a desvinculação do lugar e do tempo que confere profundidade a um pensamento, como, por exemplo, o de Platão. Seu grande mérito é ser a expressão realizada do espírito grego num dado momento – pois este homem foi, sem dúvida, um grego. Compreendemos mal o que disse se quisermos conservar de sua obra aquilo que não se “mistura” impuramente com as atribulações de sua época. A consciência aguda, altamente diferenciada da Razão grega naquele momento, eis a raiz de sua profundidade e a natureza de sua lição.
Seu pensamento torna-se incompreensível se não levarmos em conta a íntima conexão que aí existe entre política e filosofia, sendo esta esclarecida por aquela, na medida em que reflete a seu respeito. O fracasso político na Sicília, as condições políticas perturbadoras, a morte de Sócrates o levaram ao postulado fundamental de seu idealismo: o mundo material deve ser modificado – quer dizer: negado – a partir das verdades obtidas na intuição das ideias. Assim, ao postular a reforma da cidade, o “mundo das ideias” mostra-se como o não-ser negador do vigente, a síntese de sua crítica a seu tempo. E só assim, visto em sua essência inegavelmente política, faz pleno sentido. Fora disso, parecerá construção vazia e “platônica” – o que de fato nunca foi (Gomes, 1994, p. 19-20).
A concepção de Roberto Gomes é parcialmente verdadeira e parcialmente falsa. Sem dúvida, nenhuma concepção filosófica surge, e nem poderia surgir, fora do lugar e época em que surgiu. Isso é verdade. Também é verdade que Platão expressou, sob forma filosófica, os problemas e questões de sua época e sociedade. Da mesma forma, é correto afirmar que se quisermos compreender Platão, é preciso contextualizá-lo social e historicamente.
Assim, parece que não há nada de equivocado nas afirmações de Roberto Gomes. Porém, é preciso entender que nesse breve trecho se confunde o vínculo da filosofia com a realidade, o seu caráter expressivo (ela expressa sob forma específica determinadas relações sociais historicamente constituídas), com seu mérito e com o significado do pensamento filosófico. Se Platão teve algum mérito, foi quando ele foi além do “espírito grego”. Quando, em A República (1974), ele justifica e legitima a sociedade escravista e propõe uma alteração no governo, que deveria ser atribuído aos filósofos, foi um homem de sua época, mas apenas gerou uma ideologia, no sentido marxista do termo, ou seja, um sistema de pensamento ilusório (Marx; Engels, 1982; Viana, 2017).
E aqui encontramos outro problema de Roberto Gomes, que perpassa toda a sua obra, que é sua compreensão da realidade, pois em momento algum percebe a existência das classes sociais e suas lutas, bem como outras divisões sociais, e como isso afeta a filosofia. Quando Roberto Gomes contrapõe “mundo material” e “mundo das ideias” dizendo que para Platão o primeiro deve ser “modificado”, não percebe plenamente o significado disso, embora, quando aponta para a “reforma da cidade” (a polis grega), vislumbra que se trata de reformar e não de transformar (no sentido de revolucionar).
O que Platão realiza não é uma negação radical e total da sociedade grega e sim uma oposição moderada e parcial que beneficia ao grupo social ao qual pertence, os filósofos. Platão não nega a escravidão e sim a justifica e legitima. E, nesse contexto, a valoração do “mundo das ideias” não é expressão do “homem grego” e nem da “sociedade grega” e sim de um grupo social específico no seu interior. Sua negação é “platônica” no sentido que não desenvolveu nenhuma ação visando concretizar sua ideia, apenas propôs. A famosa “Alegoria da Caverna” expressa esse processo ideológico, pois aponta para a razão, logo, os seus portadores, os filósofos, como quem deve, legitimamente, governar e faz isso levando a “luz”, uma alegoria para ideias, aos que vivem no mundo das trevas, da “doxa”.
A ideia é mudar um aspecto da sociedade para conservá-la em sua totalidade, beneficiando os filósofos. Aristóteles também justificou e legitimou a sociedade escravista e seu mérito não residiu na sua produção ideológica e sim quanto tratou de questões mais abstratas, mais distantes da época, e foi menos “contaminado” por sua época e sociedade, com exceção, por exemplo, de sua tese das “quatro causas” (Chauí, 1992). Porém sua reflexão sobre as categorias, entre outras, mesmo que não se possa acatá-las em sua totalidade, são contribuições para pensar a realidade e seu vínculo com a época e lugar era menor.
Dessa concepção problemática de filosofia, deriva sua ideia de “originalidade”. Segundo o autor, um pensamento original não é aquele que supera sua situação, o que seria, segundo ele, “impossível”, “mas precisamente por dar forma e consistência a este tempo e apresentar uma revisão crítica das questões de sua época, aí tendo origem” (Gomes, 1994, p. 21). O problema da originalidade, segundo Gomes, remete para o problema da origem, da raiz. A ideia de originalidade não remete para a questão de onde ela se origina e sim daquilo que ela gera.
Uma ideia é original não por estar enraizada em determinado momento e lugar e sim por dar luz a uma ideia nova. E isso o que Merleau-Ponty (1989) expressou com a ideia de “pensar o impensado”. Sem dúvida, isso é efetivado numa determinada época e lugar e estes são geralmente os seus elementos motivadores, mas a originalidade está em, partindo dessa realidade, lançar uma nova luz sobre ela, revelar o que estava oculto. Esses problemas, no entanto, não retiram os méritos da obra de Roberto Gomes e por isso vale a pena analisar o resto da obra e o seu conjunto.
Roberto Gomes avança, a partir dessa concepção de filosofia e originalidade, para pensar o tema chave de sua obra, a filosofia brasileira. Segundo ele, “se exigirmos da filosofia não ser apenas algo entre-nós, mas filosofia brasileira,[ii] é claro que estamos supondo uma originalidade, a nossa. Um erro seria, portanto, apegar-se a uma resposta estranha, que aqui não tenha nascido” (Gomes, 1994, p. 21). Nesse momento, Roberto Gomes questiona, corretamente, embora parcialmente, a busca do pensamento estrangeiro (internacional) para pensar a realidade brasileira, o que, segundo ele, impossibilita uma “filosofia brasileira”.
Assim, a filosofia estaria ligada a uma “posição”. Toda filosofia aponta para uma posição e uma verdade derivada dessa posição. “A originalidade da Filosofia consiste em descobrir-se em determinada posição, assumindo-a reflexivamente” (Gomes, 1994, p. 23). Ele realiza um vínculo entre “posição” e “verdade”: “se sua pretensão básica é a verdade, vale lembrar que esta só faz sentido quando é minha” (Gomes, 1994, p. 23). Essa concepção subjetivista de verdade é problemática, mas trataremos disso adiante. Assim, “uma filosofia brasileira só terá condições de originalidade e existência quando se descobrir no Brasil. Estar no Brasil para poder ser brasileira. E isto não tem ocorrido. Desde sempre nosso pensar tem sido estranho, providenciado no estrangeiro” (Gomes, 1994, p. 23).
Tratar das questões importantes e urgentes nas quais o filósofo se encontra é a condição de possibilidade de toda filosofia, segundo este autor. O que é estrangeiro só assume importância quando se torna “nosso problema”. “Assim, não há um ‘problema’ para a Razão Brasileira que nos esteja esperando. Urge, isto sim, inventá-lo no próprio ato de inventar uma filosofia brasileira. Nosso strip-tease cultural” (Gomes, 1994, p. 24). Mas, alerta o autor, essa invenção “não se dá no vazio” e cita Tales, Hegel e Marcuse como exemplos, que produziram uma “consciência reflexiva” dos problemas de sua época.
Roberto Gomes distingue ciência e filosofia. A ciência se movimenta em relação ao “objeto”, ao que possui existência independente do cientista, possuindo, contemporaneamente, um caráter pragmático e medindo seu valor em termos de técnica. A filosofia teria outra atitude diante do universo. Ela coloca a existência em questão, não seleciona um “objeto”, mas o inventa. A filosofia só tem importância quando não é usada para justificar atitudes, pois, nesse caso, se torna “ideologia”. A importância da filosofia emerge quando ela é “consciência negadora”. Filosofia significa “dizer o contrário”.
Esse foi o caso de Tales, Sócrates, Platão e Aristóteles, entre outros. Sócrates nega a filosofia anterior, Platão nega Sócrates e Aristóteles nega Platão.[iii] Qualquer filosofia surge como negação, pensamento essencialmente crítico. Porém, é uma posição e, nesse sentido, expressa um tempo e lugar. É um strip-tease cultural. Isso se diferencia do “mito da imparcialidade” existente no Brasil, no qual há a tendência no sentido de buscar evitar o “choque de ideias” e as “tomadas de posição”. Se busca o “meio termo”, mas “no meio está o medíocre”. Roberto Gomes conclui dizendo que “não assumindo uma posição nossa, um pensar brasileiro torna-se impossível” (Gomes, 1994, p. 31). Ele é impossível se não se aceitar “destruir o passado que nos impuseram”, “recusando assumir sua condição básica: que seja nosso, negador do alheio” (Gomes, 1994, p. 31).
Essas colocações de Roberto Gomes apontam para questões interessantes e alguns momentos de verdade, mas também possuem pontos problemáticos e momentos de falsidade. Quando diz que “entre-nós” (quando ele se refere aos brasileiros) há o mito da imparcialidade, assim como em outros casos, há certa generalização. Ao lado de uma generalização apontada como existente, tal como a da adoção do “mito da imparcialidade” (e outras como o “jeitinho brasileiro”, a “cordialidade”, etc.), que é criticada, aparece outra generalização, a ideal, que diz o que o brasileiro e a filosofia brasileira deveriam ser. Voltaremos a este ponto adiante.
A miséria da razão brasileira
A partir desses pontos, Roberto Gomes começa a efetivar uma crítica ao “mito da imparcialidade”, o ecletismo (capítulo 05); ao “mito da concórdia”, o jeito (capítulos 06 e 07); à “filosofia entre-nós” (capítulo 08); à “razão ornamental” (capítulo 09); à “razão afirmativa” (capítulo 10), para encerrar a obra com um capítulo sobre “Razão dependente e negação”. Esses capítulos são os mais interessantes da obra e neles se vê um diagnóstico lúcido e verdadeiro da produção filosófica (e não apenas filosófica, mas cultural em geral) brasileira e seus problemas. Porém, não poderemos realizar uma análise detalhada de cada um destes capítulos, nem realizar uma crítica mais aprofundada. Vamos tão somente apresentar brevemente alguns aspectos que consideramos mais importantes e fazer algumas considerações sintéticas para chegar ao último capítulo e, após isso, realizar uma análise totalizante da obra.
A crítica ao ecletismo começa com a constatação de sua existência antiga na sociedade brasileira. Roberto Gomes retoma Victor Cousin, um “filósofo menor”, e seu ecletismo, que teria como traços mais importantes: (i) a desconfiança em relação aos sistemas de pensamento, que seriam limitadores do “espírito”; (ii) a ideia de a verdade seria o resultado de um mosaico que reuniria vários pensadores; (iii) a ideia narcisista e imatura de que isso significaria um “não-dogmatismo”, um “espírito aberto” ou “esclarecimento”. Esse ecletismo se disseminou no pensamento brasileiro, sendo derivado da dependência cultural ao qual o Brasil está submetido, e que gera o “mito brasileiro da imparcialidade”.
O autor coloca que, “entre-nós”, se busca frequentemente “dissolver oposições”, justapondo “subjetivismo e objetivismo, materialismo e idealismo, racionalismo e empirismo”, não percebendo que há um preço a ser cobrado para tal posição. “Assim, nos falseamos, nada sendo. E nada assimilamos. A condição mínima de assimilação é a existência prévia de uma estrutura que assimile” (Gomes, 1994, p. 37). Não é possível uma “assimilação neutra”, “na qual só a objetividade bruta do conhecido importe. Exige-se a presença do fator originante do conhecimento: a posição do sujeito” (Gomes, 1994, p. 37). É ingenuidade, segundo o autor, “querer tudo assimilar”, realizando a dissolução de oposições e tentando extrair o “melhor” de cada um. Para realizar tal “extração”, é preciso seletividade, o que pressupõe um critério. “O vazio nada assimila”.
Essas afirmações de Roberto Gomes são interessantes e não poderemos realizar uma análise mais profunda e detalhada de tudo que isso implica. É preciso, no entanto, destacar alguns aspectos. A ideia de “dissolver oposições”, tomada em si, é problemática, mas a manutenção das oposições também é. No fundo, as oposições citadas por Roberto Gomes (materialismo/ idealismo; racionalismo/ empirismo; subjetivismo/ objetivismo) são antinomias da episteme burguesa (Viana, 2018) e não se trata de mantê-las (o que se deduz de sua crítica a quem quer dissolvê-las).
Assim, as antinomias do pensamento burguês devem ser criticadas e superadas, e não “dissolvidas” através da sua união eclética ou da sua manutenção ou tomada de partido em relação a algum lado. Tanto o racionalismo quanto o empiricismo são problemáticos e limitados, são obstáculos para uma apreensão da realidade. Não é unindo essas duas posições, como pode fazer o ecletismo, ou tomando partido de uma delas, como defende Roberto Gomes, que resolveremos o problema e sim através da análise crítica de seus fundamentos, características e problemas e indo além delas e apreendendo o real que elas ocultam, pois é assim que poderemos avançar.
Nesse contexto, Roberto Gomes discute a questão da assimilação (e entra em contradição com outras passagens na qual ele coloca tal termo pejorativamente). Essa é uma das partes mais interessantes de sua obra. Ela está presente na sua retomada da discussão da antropofagia. Sem dúvida, qualquer concepção pode assimilar elementos de outra concepção, desde que: (a) o faça efetivamente; (b) tenha consciência disto (e não confunda assimilar com “interpretar”, pois aí atribui ao discurso alheio o que é próprio); e (c) promova uma real transformação no que foi assimilado (caso contrário, se corre o risco justamente do ecletismo). E isso coloca a questão do que o autor denomina “critério” para a assimilação. E a questão, segundo ele, é qual é esse critério, o que revela mais um ponto problemático na argumentação de Roberto Gomes, tal como colocaremos adiante.
Tendo em vista que o vazio não pode assimilar nada e determinar o que é o “melhor”, um critério é necessário e Roberto Gomes afirma que “a posição do sujeito é quem organiza a seletividade”. Aqui é possível questionar o uso dessa abstratificação: “o “sujeito”. O que significa “sujeito”? Quem é o “sujeito”? No fundo, Roberto Gomes retoma um construto da episteme burguesa que é abstratificado para pensar a questão da assimilação e assim se perde.[iv] Mas, deixando isso de lado, o autor insiste na necessidade de “consciência clara dos critérios adotados” visando abandonar a neutralidade e possibilitar a assimilação. “Se no ecletismo se fizer presente algum critério, deixa de ser ecletismo, passando a ser uma posição caracterizada pelo critério existente” (Gomes, 1994, p. 38)[v].
E o autor afirma que essa é uma posição ingênua e que “o ecletismo é impossível”. Ora, se o ecletismo é impossível, ele não existe. Não existindo, qual o sentido de criticá-lo? O autor tenta resolver essa contradição afirmando que sempre haverá, por mais obscuro que seja, um critério. O ecletismo, no Brasil, seria uma “filosofia enlouquecida” que não sabe de si mesma, ou seja, de seus critérios. “Não usamos nossos critérios, somos suas vítimas” é uma afirmação curiosa e contraditória. E a pergunta que permanece ao autor é qual é o critério? Ele esboça uma resposta que, supostamente, superaria o “paradoxo”.
Um país sem memória não pode ficar esperando que um passado caia do céu: precisa construí-lo, pois mesmo um passado se constrói – quando o faço para mim. E o paradoxo se dissolve: construímos um passado voltando-nos para o futuro, escolhendo um projeto, um ponto de vista. Nossa posição (Gomes, 1994, p. 39).
Seria possível questionar a ideia de que se “constrói” um passado, inclusive por seu caráter subjetivista[vi]. As ideias de projeto e de “nossa posição” são interessantes, mas imprecisas e vamos acompanhar o autor até o final para ver se finalmente se revela qual posição, critério, projeto, são estes.
Outro elemento do pensamento “tupiniquim” criticado pelo autor é o “mito da concórdia”, o “jeito”. A epígrafe do capítulo é “a gente dá um jeito”, cuja autoria é atribuída ao “povo”. O autor avança dizendo que “creio que o elemento constitutivo do jeito seja a não-radicalização”, o que combina bem com a “imparcialidade” já criticada e evita o “fanatismo”. Assim, o autor reproduz a ideia do “jeitinho brasileiro”. Para tanto, coloca o princípio da burocracia, a desconfiança, bem como seu formalismo, e como os brasileiros escapam dela (“o ascensorista dá um jeito e não vê o cigarro que acendi. O guarda rodoviário dá um jeito se meu exame de vista está vencido. Faço matrículas condicionais, a própria institucionalização burocrática do jeito”). Assim, se estabelece o “mito da concórdia” num país no qual “nada há mais parecido com um saquarema do que um luzia no poder”, citando o autor de As Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda, que retoma a frase apontada por Holanda Cavalcanti.
“O mito da concórdia” desemboca na intolerância, ou seja, no seu oposto. “Divergir é crime. Discordar é subversão. Perguntar já é um ato de desobediência. Isso no país do jeitinho, do homem cordial, do carnaval eterno” (Gomes, 1994, p. 47). A cordialidade e jeitinho gera “intolerância, sectarismo, partidarismo estéril, repressão, censura – um campo fértil para a atuação da autoridade irracional e para os regimes que dela façam uso” (Gomes, 1994, p. 47). Nesse contexto, a filosofia no Brasil se recusou a cumprir a sua missão, não buscou ser o centro da consciência crítica e negação das falsificações, tornando-se inexpressiva.
Roberto Gomes também aborda a questão da razão conciliadora presente na filosofia produzida no Brasil. Nesta se une conciliação e supressão. Ao lado do discurso conciliador, vem o ataque supressor. Esta razão não trataria da realidade, mas sim de ideias, pois é uma conciliação eclética de pensamentos.
Duas são as possibilidades de defesa desta razão alienada: ou conciliar ou suprimir. Expressões de seu abandono do real, a conciliação e a supressão não se realizam com relação às coisas circundantes, mas com as teorias que versam sobre o real. A razão conciliadora lida com razões anteriormente dadas do real não com o real enquanto tal. O polo que centraliza nossa razão são teorias enquanto verbalizações, posto que o real sobre o qual versam é o estrangeiro (Gomes, 1994, p. 52).
Roberto Gomes afirma que a supressão da filosofia, tal como se vê no tomismo e no neopositivismo, que fizeram sucesso nos meios intelectualizados da sociedade brasileira durante muito tempo, mostram que a conciliação não permite a “originalidade”. Isso, afirma o autor, é estranho à atitude filosófica. A conciliação de ideias, tomadas como coisas dadas, é uma atitude não-filosófica e toda tentativa nesse sentido fica a serviço da “razão ornamental”.
O autor discute a questão da filosofia brasileira no Capítulo 08. Ele apresenta um debate a esse respeito realizado entre alguns autores e depois apresenta sua posição. O que nos interessa aqui é a posição de Roberto Gomes. Ele afirma que é um absurdo a afirmação segundo a qual a filosofia não tem um país, nem geografia, nem história.[vii] Roberto Gomes afirma que “só a partir de uma reflexão crítica a respeito de nosso modo de existir, de nossa linguagem, de nossas falsificações existenciais e históricas é que poderemos chegar aos limites de uma filosofia nossa” (Gomes, 1994, p. 61).
Uma filosofia brasileira, segundo ele, como já havia dito antes, só pode existir quando estiver enraizada e responder aos problemas brasileiros. Nesse contexto ele questiona as objeções apresentadas para a existência de uma filosofia brasileira. A primeira objeção afirma que o brasileiro não possui um “espírito capaz de filosofia” e a segunda afirma que a língua portuguesa é incapaz de realizar, adequadamente, uma expressão filosófica. Ele cita Álvaro Lins como representante, embora não diretamente, dessa primeira objeção e retoma a afirmação desse autor segundo a qual a herança portuguesa seja, possivelmente, “a causa da ausência de um filósofo no Brasil”. Os luso-brasileiros não parecem ser habituados ao uso das faculdades especulativas e abstratas, nem o “dom” do “estudo paciente, desinteressado e introspectivo”.
Para Roberto Gomes, essa concepção é problemática. Em primeiro lugar, afirma ele, todo conhecimento é interessado. O que é necessário é distinguir entre “um interesse sério” e um “interesse a sério”. Em segundo lugar, o caráter introspectivo como condição para reflexão é algo questionável, pois, segundo o autor, Marx e Aristóteles são extrovertidos quase que em “estado puro”.[viii] Em terceiro lugar, o que pode ser paciência e ordem para um indivíduo, pode não ser para outro. Sem dúvida, Roberto Gomes acerta parcialmente nos dois primeiros casos, mas no terceiro já cai no subjetivismo e demonstra não entender o que significa “estudo paciente”. O autor afirma que Portugal realmente não deixou uma “herança filosófica” rica, mas tenta escapar desse obstáculo afirmando que filosofia não se herda.
Roberto Gomes também discute a questão da língua portuguesa. Ela seria considerada um entrave que afastaria dos temas considerados “elevados” da filosofia, possuindo uma debilidade inerente. Isso explicaria não existir uma “filosofia brasileira”. É um verdadeiro drama para os professores de filosofia[ix] a tradução de expressões alemãs, francesas e latinas para o idioma português. Isso promoveria uma “avalanche de citações” e “hermeticidade imbecil”. O que Álvaro Lins se esquece, argumenta Roberto Gomes, é que essas expressões são originais e enraizadas, vinculados aos problemas e urgências do lugar e tempo, e por isso sua tradução é “coisa impossível”.
Esse é um problema interpretativo de Roberto Gomes, cujo foco nas nações o impede de enxergar o universal. Sem dúvida, Aristóteles, Kant, Hegel, trazem a marca da sua época e sociedade, mas essa não é a totalidade das obras desses autores, que possuem elementos que vão além desse contexto social e histórico. A discussão desses três autores sobre as categorias (quantidade, qualidade, tempo, espaço, etc.) podem trazer as marcas da época e lugar, mas trazem também reflexões que ultrapassam esses limites e podem ser assimiladas num sentido que as ultrapassa, reconhecendo o que é singular e o que é universal. Esses pensadores não exprimiram apenas o alheio, mas também o comum.
Porém, Roberto Gomes aponta para uma questão importante ao citar a solução de Mário de Andrade: “ao invés de imaginarmos que não temos pensamento por falta de linguagem, por que não supomos que não temos linguagem por falta de pensamento?” (Gomes, 1994, p. 68). No entanto, Roberto Gomes volta ao problema nacional, pois, segundo ele, podemos enriquecer nossa linguagem se partirmos de “nossas importâncias e urgências” para a linguagem ao invés de partir desta para aquela.
A questão da língua portuguesa remete para duas questões. Sem dúvida, existem limites no idioma português (bem como nos demais idiomas, especialmente no inglês, mas esses limites foram superados parcialmente pela produção das reflexões). O limite formal, no entanto, pode ser superado pela criatividade. Não se trata do tema/fenômeno ser alheio e sim a determinação formal do idioma. Se existe uma determinação formal negativa, trata-se de superá-la desenvolvendo o idioma no plano noosférico (filosófico, científico, teórico, etc.). A solução, no entanto, não está em partir apenas dos problemas brasileiros e sim dos problemas reais em geral (desde os universais até os especificamente brasileiros), pois assim emerge a necessidade de uma linguagem abstrata em idioma português e um conjunto de conceitos e noções que expressem as necessidades da sociedade brasileira, unindo o universal e o singular.
Roberto Gomes encerra criticando a confusão que se faz entre “autores entre-nós” e “filosofia brasileira”, o que gera a ideia da incapacidade dos brasileiros pensarem por conta própria e justificativa disso através de uma suposta insuficiência da língua portuguesa, o que traz a necessidade de “destruir esses equívocos”. Após isso ele parte para sua análise da “razão ornamental”.
Razão ornamental, razão afirmativa e razão dependente
A razão ornamental é um atributo do brasileiro, afirma Roberto Gomes se inspirando em Sérgio Buarque de Holanda.[x] Uma frase de Roberto Gomes sintetiza o que ele quer dizer com “razão ornamental”: “o tipo de inteligência que nos agrada é aquele que sabe brilhar através das palavras. Nunca ter feito uma frase de efeito, eis a falta que intelectual brasileiro jamais cometerá” (Gomes, 1994, p. 73). Porém, ela é “dosada com pitadas de sábia malandragem”, pois “o herói brasileiro é o esperto” (Gomes, 1994, p. 73). Podemos sintetizar essa ideia na afirmação de que “os intelectuais brasileiros são macunaímas das letras”. Roberto Gomes acrescenta que o intelectual brasileiro precisa aderir a um modismo, seja ele qual for. A linguagem hermética é a chave para a iniciação do intelectual brasileiro.
Para ele, a adesão frenética a uma corrente, a um rótulo ou chavão constitui a morte do pensamento. Na origem, todo pensamento é crítica e negação, e o limite de sua vitalidade encontra-se identificado com o limite de sua sistematização e vigência. Eis o que é preciso cuidar: um pensamento deve ter validade, não necessariamente vigência, pois esta costuma lhe ser conferida a partir do momento em que começa a morrer (Gomes, 1994, p. 74).
A crítica de Roberto Gomes aos modismos, subserviência intelectual à cultura estrangeira, se complementa com essa crítica à adesão incondicional ao hegemônico. E ele complementa afirmando que “confundimos” o pensamento original com o “novidadeiro”. Para fundamentar isso, Gomes realiza uma distinção entre o original e o novo. O novo é mero “acidente” do original. O que é original é o que remete para as origens e não para o que vem por último no tempo. O intelectual brasileiro se agarra à novidade, pensando que está se aproximando da verdade, o que significa que lhe falta originalidade. “Eis por que o rótulo de ‘ultrapassado’ é puro equívoco” (Gomes, 1994, p. 74). “A uma estrutura mental e social fechada e conservadora, superpomos uma ornamentalidade de novidadeiros, como se a verdade fosse, num leilão, algo a ser arrebatado por quem desse o último lance” (Gomes, 1994, p. 74).
O autor retoma Álvaro Lins para complementar sua discussão. Lins afirma que a literatura brasileira é praticada como “se fôssemos um subúrbio literário da França, da Inglaterra e dos Estados Unidos da América” (apud. Gomes, 1994, p. 74). O caráter colonizado da cultura brasileira é expresso por este autor, no qual o estrangeiro, por pior que seja, é sucesso garantido, enquanto que o brasileiro, por melhor que seja, não é reconhecido[xi].
Desses elementos, Roberto Gomes retira algumas características do pensamento brasileiro: a dependência econômica se generaliza para todas as áreas, fazendo do brasileiro um “colonizado por excelência”; ser culto na sociedade brasileira é ter erudição sobre algo estrangeiro; a razão ornamental gera uma supressão do que é brasileiro em favor do que é estrangeiro; o que Lins afirma sobre a literatura, vale ainda mais para a filosofia produzida no Brasil.
Esse colonialismo cultural é complementado por um provincianismo, pois existe uma lamentação por não sermos reconhecidos pelo estrangeiro. Assim, o “intelectual tupiniquim” se volta para fora e espera dele o reconhecimento. Nesse contexto, Roberto Gomes coloca que “devemos ser o que somos” e, somente assim, poderemos ser reconhecidos. A razão ornamental não tem intencionalidade e não está comprometida com a verdade. Ela é inconciliável com a filosofia. A filosofia busca erguer o véu que esconde o real e a razão ornamental tem como essência uma “espécie de véu superposto ao real”.
O diagnóstico de Roberto Gomes é o seguinte: a razão brasileira é alienada devido ao fato de que o intelectual brasileiro se recusa em assumir a própria identidade. Ele possui um pavor de “nossa brasilidade” e se refugia “numa constelação de conceitos esvaziados e de sonoras palavras” que a exorcizam. O caso de Oswald de Andrade e a crítica de Antonio Cândido encerra essa discussão retomando a questão da seriedade (cobrada pelo último e negada pelo primeiro), pois o primeiro, segundo Gomes, estaria buscando inaugurar uma nova razão, distinta da europeia e sua seriedade.[xii]
A razão ornamental produz uma realidade à parte e se perde em seu “universo palavroso”, gerando intelectuais ressentidos que se julgam vítimas e infelizes, cidadãos sensíveis “a seus próprios calos”. Eles somente criticam “o sistema” quando este os rejeitam. O intelectual brasileiro é um individualista que aceita colocar tudo em questão, menos o que é vigente (hegemônico). Ela produz um pensamento servil vinculado ao ecletismo, predominância do positivismo, etc.
Incapaz de pensar, exigindo brilhar, a razão ornamental conduz à fuga nos modismos, no último grito cultural, o leilão de ideias. Compreende-se assim o recente suicídio que foi representado pela moda estruturalista, refúgio de uma intelectualidade que busca um lugar qualquer no mundo da tecnoburocracia. E compreendemos também o sucesso absurdo e fora de propósito do neopositivismo e de seus cursos obtusos de estudos de lógica e teoria do conhecimento a contaminarem as universidades brasileiras – diante dos quais, de resto, todos se deslumbram. Ah, logrados indígenas (Gomes, 1994, p. 83).
O arsenal de certezas apresentado pelo simplismo e formalismo da filosofia brasileira não incomoda a ninguém. A síntese da discussão sobre a razão ornamental é realizada em uma frase: “o pensamento pode existir entre-nós sob a condição de não pensar” (Gomes, 1994, p. 83).
Da razão ornamental se passa para a razão afirmativa. Essa é a “razão que diz sim”. O positivismo, na sociedade brasileira, “só poderia ter sido aceito em função dos interesses vigentes e da reprodução das classes dominantes” (Gomes, 1994, p. 85). A filosofia brasileira teria a predominância de duas concepções, o ecletismo e o positivismo. Até o “marxismo caboclo” foi contaminado por elas. No Brasil, o positivismo teve uma longa história, desde a proclamação da república e seu vínculo com o militarismo até os dias de hoje (que aqui remete anos 1970, que é quando Roberto Gomes escreve sua obra).
“E o intelectual brasileiro – que tem conseguido ser o protótipo de nossos defeitos mais chocantes – assumiu, na fascinação pelo passado europeu, o papel de ser-dependente” (Gomes, 1994, p. 90), pois não deve fazer revisão crítica e sim ser um “assimilador” (no sentido que atribui Gomes a tal palavra). Ele deve “dizer sim”. Nesse contexto, uma filosofia brasileira se tornou impossível, já que se optou pela certeza e a verdade é patrimônio alheio e que nos resta apenas “assimilar”. A filosofia, no entanto, não é certeza, é razão negadora, e que produz destruição e dúvida. Mas, do ecletismo ao positivismo, não há criação na filosofia brasileira, apenas a reprodução de certezas oriundas do estrangeiro.
Uma razão afirmativa é o mesmo que uma sem-razão. Complemento desesperado do senso impensado da razão eclética. Equivale a agarrar-se ao dado na pretensão de perpetuá-lo, quando a função radical do pensamento é destruir a positividade do dado. Se a razão eclética perdia-se numa indiferenciação amorfa e despersonalizada, a razão afirmativa tende a sacralizar o passado, fonte de todas as certezas – certezas que já não sabemos verdades caducas. E ambas encontram na razão ornamental a forma adequada à sua expressão: o pensamento não pensado, alegórico. Que não incomoda nem arrisca. O pensar anestésico e esterilizado (Gomes, 1994, p. 95).
Por fim, Roberto Gomes aponta para a questão da “razão dependente e negação”, título do último capítulo de sua obra. Ele inicia o capítulo citando a suposta revolução que o modernismo promoveu:
Se a função da consciência é explodir um mundo, podemos dizer que a Semana de Arte Moderna, em 1922, realizamos uma primeira tentativa de real independência cultural face ao passado europeu e aos modelos estrangeiros. Com exagero – este sim, basta nosso – efetuamos a constatação do óbvio: à nossa volta não havia fog, neve ou castelos medievais – mas bananeiras, coqueiros, casas de caboclo e gente de nariz batatudo e lábios grossos. O parnaso superrefinado, os traços suaves das madonas, o bom gosto oficial vieram abaixo; nossos artistas retiraram de seus ombros a carga de um passado alheio e que lhes pesava. Tornava-se possível criar. O resultado foi uma revolução. De Mário e Oswald a Drummond e João Cabral de Mello Neto, súbito percorremos os caminhos de uma emancipação artística. Os imensos pés das figuras de Portinari denunciam: encontrou-se um chão sobre o qual pisar (Gomes, 1994, p. 98).
Sem dúvida, há um exagero por parte de Roberto Gomes, que o reconhece parcialmente. Porém, não vamos comentar o significado do modernismo e de seu caráter meramente cultural, bem como os limites de sua originalidade, que, aliás, o próprio Roberto Gomes reconhece (ao citar a influência do italiano Marinetti, mas que vai bem além disso). Roberto Gomes diz que mudou o espírito e a atitude. Segundo Roberto Gomes, “o modernismo brasileiro instalava-se sobre o signo da negação” (Gomes, 1994, p. 99). Oswald de Andrade aparece com sua contribuição, tal como quando afirma que “a revolução modernista eu a fiz contra mim mesmo” e que Gomes considera que significava uma busca por destruir as condições (“internas e subjetivas”) da dependência. Assim, seria necessário lutar contra nós mesmos, pois o escravo carrega em si o senhor, ou a Europa idealizada.
Mário de Andrade apresentaria três princípios do movimento modernista: a pesquisa estética como direito permanente; a atualização da produção artística de caráter nacional; “a estabilização de uma consciência criadora nacional”. Esse autor, no entanto, não teria superado totalmente a razão eclética, afirma Roberto Gomes, o que não retira seus méritos. Da mesma forma, Mário de Andrade tinha consciência crítica em relação ao próprio modernismo. A partir da reflexão de Roland Corbisier, Roberto Gomes coloca que a revolução cultural do modernismo não encontrou eco na filosofia.
Por fim, Roberto Gomes busca fazer uma reflexão que explique as características do pensamento brasileiro e remete para as “peculiaridades de nossa formação histórica”. Nesse contexto, a colonização portuguesa e sua especificidade ganha importância explicativa. O “mercantilismo selvagem”; a “saudade” (dos portugueses em relação à Portugal); a “força da metrópole”; a “mente do bandeirante” (atividade extrativa, predatória e desinteressada); a centralidade do além-mar; entre outros aspectos mostram as condições externas e internas da dependência. Daí o transplante cultural e a formação de uma cultura transplantada. O Brasil passa de país colonizado para um país formalmente livre (e sempre saudoso) e a dependência econômico-cultural teve deslocamentos (inclusive para os Estados Unidos, “parte da Europa”, espiritualmente falando, segundo Gomes). Em gerações recentes, acrescenta Gomes, há o desejo de ser norte-americano. Assim, submetidos ao colonialismo cultural, o brasileiro nega ser o que é. Os estadunidenses se assumiram culturalmente com sua pretensão de ser um “novo mundo”.
Assim, Roberto Gomes retoma o sociólogo Octávio Ianni para colocar a problemática é externa e importada tanto para a sociologia (abordada pelo sociólogo paulista) quanto para a filosofia. Disso resulta a dificuldade em aplicar as concepções importadas à realidade brasileira, bem como o prestígio intelectual dos sociólogos latino-americanos ser relacionado com informação sobre as últimas novidades sociológicas estrangeiras.[xiii] “O pensar latino-americano e particularmente o brasileiro se encontram presos a importâncias e urgências que não são nem importantes nem urgentes, senão para europeus e norte-americanos – motivo pelo qual a razão entre-nós se perdeu nas alegorias da ornamentalidade” (Gomes, 1994, p. 106).
Essa “filosofia alegórica” corresponde aos interesses da manutenção da dependência. Isso traz a necessidade de libertar a sociedade brasileira das pressões econômico-culturais e da papel introjetado de dependente e assimilador. Não se trata de defender, afirma Roberto Gomes, um isolamento cultural e sim de realizar “o exercício de uma impiedosa antropofagia”.
O que impede o surgir de um pensar nosso é a recusa implícita de enfrentarmos algo brasileiro. Se os modelos de ver que assimilamos são os de um outro, não nos vemos a não ser de modo distorcido e sem chegarmos a nos assumir teórica e praticamente. Nossos temas são recusados por não serem de odor tão refinado quanto as questões europeias. Nosso modo específico de abordar o real, tornando-o importante, é esquecido.
O mesmo se dá com os problemas que deveríamos efetivamente problematizar, pois não se enquadram entre aqueles que possamos pensar com “isenção”, “distanciamento”, de modo “neutro”. Quer dizer: não poderiam ser objeto de uma filosofia esterilizada sem contaminá-la, obrigando-a a assumir seu papel histórico entre-nós. Contaminada, esta Filosofia viria a ser muito incômoda, já não permitindo a infindável conciliação. O que não é recomendável, quer do ponto de vista do vigente – e o vigente entre-nós é a dependência –, quer do ponto de vista das instalações que providenciamos para nos proporcionar certezas (Gomes, 1994, p. 110).
Roberto Gomes acrescenta que tal filosofia (esterilizada, asséptica, refinada, ornamental) é a “voz do dono”. Ela evitar se comprometer e sujar as mãos, se limitando ao “puro jogo formal”. Não deixa de ser estranho que Gomes dedique sua obra quase inteira para mostrar a “dependência” cultural (derivada da econômica) e, ao mesmo tempo, afirme que o “nosso modo específico de abordar o real” é esquecido. Ora, ele mesmo comprovou que tal “modo específico” não existe. E nem deveria existir, pois, assim como não existe um modo específico francês, alemão, italiano, russo, americano, chinês, já que a abordagem do real não é uma questão nacional.[xiv]
Aliás, Roberto Gomes exige uma filosofia brasileira, mas a contrapõe não a outra filosofia nacional e sim à cultura europeia, que é continental e não nacional. Esse elemento seria suficiente para o questionamento (não é esse um atributo da filosofia apontado por Gomes?) da oposição entre o “europeu” e o “brasileiro”. Mas voltaremos a isso adiante.
Gomes encerra seu livro com a solução para o problema que enfrentou durante toda a obra. Uma filosofia brasileira para existir teria que destruir as “condições subjetivas e objetivas da dependência”, gerando uma consciência crítica e negação do papel de “assimiladores” e uma “crítica severa ao passado”, relendo nossa história. Nesse contexto, é necessário, afirma o autor, “inventar as condições de nosso futuro”, ou seja, nossas importâncias e urgências, desde que nos livrando de “todo contexto dependente”, sem um “outro” para se agarrar, gerando um pensamento comprometido (“a sério”) oposto a toda razão ornamental e essencialmente negador.
Aprendamos duas coisas. Que nesta altura dos acontecimentos um soco na mesa, violento e sonoro, é mais importante do que sabermos da validade dos juízos sintéticos a priori E que, do ponto de vista de um pensar brasileiro, Noel Rosa tem mais a nos ensinar do que o senhor Immanuel Kant, uma vez que a filosofia, como o samba, não se aprende no colégio (Gomes, 1994, p. 112).
Essa é a afirmação final que encerra o livro. De certa forma, ela sintetiza em um parágrafo um conjunto de equívocos do autor. Trata-se de uma afirmação nacionalista e sem sentido. Noel Rosa pouco ensina sobre a realidade brasileira e mundial e o mesmo se pode dizer de Kant. Porém, filosoficamente, Kant fornece mais ferramentas intelectuais do que Noel Rosa, bem como outros elementos.
Noel Rosa pode trazer questões e apontar problemas, mas não ferramentas e respostas. A afirmação é pouco “séria”, no sentido positivo da palavra. Noel Rosa contribui com a cultura brasileira da forma como ele se propôs a contribuir e segundo as condições que ele tinha. Kant é um pensador de suma importância, mesmo que se discorde amplamente dele. Um sambista e um filósofo não se comparam, pois não possuem as semelhanças básicas que permitam a comparabilidade.
Crítica à Crítica da razão tupiniquim
Após essa síntese da obra de Roberto Gomes, é importante um balanço geral e uma análise crítica. Sem dúvida, esboçamos vários elementos de crítica, mas em relação à questões mais pontuais. Agora é o momento de uma abordagem mais geral da Crítica da razão tupiniquim. Cabe destacar, inicialmente, os méritos da obra.
Roberto Gomes demonstra ousadia e criticidade, dois elementos geralmente ausentes na cultura e sociedade brasileiras, especialmente num sentido mais amplo e original. Ele realiza uma crítica ao que vem se produzindo na sociedade brasileira em matéria de cultura e, especialmente, de filosofia, apontando tanto casos individuais como o problema geral da produção filosófica em nosso país. Outro mérito é sua originalidade, algo, como ele mesmo destaca, pouco comum no Brasil. A originalidade aparece mais na crítica e na exigência que ele realiza, e embora tais elementos, especialmente no segundo caso, sejam questionáveis, ainda assim é um mérito indubitável.
A questão da razão ornamental e razão afirmativa, a análise do ecletismo e positivismo, são importantes para uma compreensão da evolução e características da filosofia no Brasil, mesmo se discordando de alguns aspectos mais pontuais. A discussão sobre a produção intelectual no Brasil e seus limites é fundamental e o autor não se omite em fazê-la e sob forma crítica. Roberto Gomes apresenta um retrato da cultura brasileira, realizando uma das análises mais interessantes sobre essa temática, ao contrário de lugares-comuns repetidos em diversos livros existente sobre o assunto.
A necessidade de uma produção intelectual autônoma e independente, tal como solicitada pelo autor no âmbito da filosofia, é outro aspecto fundamental, em que pese se possa discordar das bases que o autor solicita para a efetivação disso. A reprodução dos modismos estrangeiros que acompanha a história da produção intelectual brasileira, é um problema grave e a sua superação é uma necessidade (embora não para todos os brasileiros, pois é preciso reconhecer que a sociedade brasileira não é homogênea e sim dividida em classes sociais com necessidades e interesses antagônicos).
Outros méritos poderiam ser destacados, inclusive alguns mais pontuais. Porém, julgamos que até aqui colocamos os principais e mais amplos. Podemos encerrar com o mérito de discutir a cultura e, principalmente, o foco do livro, o problema da produção filosófica no Brasil, e, mais ainda, numa perspectiva crítica. Enquanto emergem, periodicamente, algumas “celebridades intelectuais” de mérito duvidoso (e, como coloca Roberto Gomes, apenas reproduzindo modismos estrangeiros), esse autor não é citado e trabalhado nas universidades brasileiras, a não ser no caso de raras exceções. Ele não é indicado e lido, nem é tema de debates.
O debate que ele lança, é, no mínimo, instigante e que traz reflexões necessárias sobre a cultura brasileira, concorde-se ou não com ele. Mas, tal como Wright Mills (1982) colocou, e Karl Marx (1988) já havia assinalado a sua manifestação em seu caso particular, o silêncio é a primeira forma de marginalizar um pensador divergente e isso explica a pouca ressonância de Crítica da razão tupiniquim. Nesse sentido, apesar da obra ter sido publicada originalmente em 1977 (e depois dela novos modismos emergiram, embora o ecletismo continue forte e tenha roubado espaço de outras ideologias), ela continua atual.
A sua atualidade pode ser percebida no fato de discutir “temas” que geralmente não são abordados nas universidades brasileiras. Não deixa de ser surpreendente como que o caráter subordinado da cultura brasileira permanece sendo sua principal característica, inclusive quando se produz ideologias que vociferam contra o “eurocentrismo”, o “colonialismo”, etc. A crítica do eurocentrismo tem origem “eurocêntrica”,[xv] o que revela, desde já, seus limites.
Porém, existem elementos problemáticos na concepção de Roberto Gomes e que devem ser destacados. Os principais problemas da Crítica da razão tupiniquim são derivados de uma questão básica que perpassa toda a obra: o nacionalismo. No fundo, a preocupação fundamental de Roberto Gomes é a inexistência de uma filosofia brasileira e a defesa da necessidade de sua produção, bem como a sua solução é a formação de uma filosofia nacional (voltada, como ele diz, para suas “importâncias e urgências”). Isso gera vários outros problemas. Vamos tratar desses problemas e depois voltar à questão do nacionalismo.
Um dos limites da obra de Roberto Gomes é a ausência das classes sociais. Sem dúvida, em algumas passagens se usa o termo “classes sociais”, tal como numa passagem sobre a “classe dominante”. Contudo, as classes não aparecem com sua importância social e explicativa, suas contradições e interesses antagônicos. Da mesma forma, embora trate abundantemente de “dependência”, “colonização”, e termos correlatos, a realidade concreta não aparece, pois o imperialismo e as relações internacionais não são abordados. E isso permite substituir os problemas sociais e a exploração internacional por uma questão meramente cultural. Assim, o problema maior é o eurocentrismo (mesmo sem usar tal termo) e até os Estados Unidos aparece como sendo, “espiritualmente”, europeu.
A existência de um eurocentrismo é algo sem sentido nos dias atuais. A supremacia cultural da Europa foi solapada desde o fim da Segunda Guerra Mundial e passou para os norte-americanos, tendo os russos como principais concorrentes mundiais durante o período da “guerra fria”. Sem dúvida, os países europeus são imperialistas e ainda possuem grande força cultural a nível mundial, mas hoje é muito inferior à influência norte-americana e de outros países (China, Japão, etc.).
A filosofia europeia ainda tem força, mas grande parte dela provém da herança histórica (não a é possível ensino de filosofia sem os gregos antigos, os iluministas, a filosofia alemã de Kant e Hegel, entre diversos outros). Porém, a filosofia hoje é um resquício cultural sem grande popularidade e que é muito menos conhecida do que o K-pop (música popular coreana). Aliás, as últimas ideologias filosóficas francesas e europeias em geral colaboraram com isso, ao se afundar no paradigma subjetivista e nas ideologias irracionalistas e relativistas.
Roberto Gomes cobra a criação de uma filosofia brasileira, mas não define exatamente o que isso significa. Fica subentendido que se trataria de uma filosofia autenticamente brasileira, enraizada na sociedade brasileira com seus problemas e urgências, retirando daí sua linguagem e sua originalidade. O que isso significaria no âmbito da filosofia? Seria possível, por exemplo, uma lógica brasileira? Ou a ideia é que a filosofia deixe de ser um pensamento especulativo e reflexivo e se torne um pensamento concreto, que pensa o Brasil? Isso seria filosofia?
A abordagem de Roberto Gomes não é dialética[xvi], o que é perceptível no seu procedimento intelectual e em diversas afirmações. A relação entre o universal e o singular lhe escapa, pois ele não consegue perceber o universal na cultura europeia (dos diversos países europeus) e na cultura brasileira, bem como pensa que o singular (no caso, o que seria original do Brasil) sem o universal[xvii].
Uma filosofia brasileira é uma impossibilidade, a não ser que o termo seja usado descritivamente, significando a produção filosófica realizada no Brasil por brasileiros. A filosofia alemã é filha da época e da sociedade alemã, mas esse era o seu problema, tal como apontou Marx (Marx; Engels, 1982), e, mais ainda, sua pretensão de universalidade. Porém, Hegel e, principalmente, Marx, foram além da época e da sociedade ao desenvolverem a dialética, o que é um elemento universal. Nesse sentido, quanto mais presa ao Brasil, mais pobre seria uma “filosofia brasileira”. Gomes critica o provincianismo, mas acaba caindo nele. Quanto mais universal, mais válida é uma ideia.
Porém, isso não significa desconsiderar os problemas e questões singulares, mas não é possível compreendê-las sem o acesso ao universal. E é por isso que a leitura de Aristóteles, Kant, Hegel, Feuerbach, é muito mais importante para compreender a realidade do que ouvir um samba de Noel Rosa. Aliás, uma coisa não impede a outra, mas se o objetivo é compreender a realidade brasileira de forma teórica (ou “filosoficamente”, como diria Gomes), então não é ouvindo samba que se conseguirá isso.
Outro problema de Crítica da razão tupiniquim é a ausência da sociedade brasileira. Curiosamente, Gomes pede enraizamento na realidade nacional e, assim como aqueles que ele critica, não o realiza. A única coisa que aparece é elementos da cultura brasileira, alguns literatos, filósofos, intelectuais, mas as relações sociais concretas da sociedade brasileira, aparece muito pouco e apenas historicamente. A sociedade brasileira dos anos 1970, na qual ele se inseria e escrevia, não aparece.
O regime militar e suas contradições, a composição de classes sociais, as divisões regionais, as condições sociais da produção cultural, as universidades, a condição social dos intelectuais brasileiros, a posição do Brasil na divisão internacional do trabalho, o significado dos meios oligopolistas de comunicação, entre diversos outros elementos que ajudariam a entender a cultura brasileira, não aparecem. Entender o capitalismo subordinado brasileiro e sua posição na divisão internacional do trabalho seria fundamental para entender a reprodução da subordinação cultural aos países imperialistas.
Este conjunto de problemas da obra de Roberto Gomes convive com seus méritos. E, no entanto, o título de sua obra serve tanto para aqueles que ele critica quanto para ele mesmo, pois uma “razão tupiniquim” é algo tão problemático quando a cultura subordinada atualmente existente (e que surge com o processo histórico de colonização e subordinação da sociedade brasileira).
Considerações finais
Assim, para finalizar, é preciso retomar a questão da ausência das classes sociais e suas lutas na abordagem de Roberto Gomes. A inexistência de uma filosofia brasileira, em muitos momentos de sua obra, parece ser uma falha dos filósofos que aqui vivem. A luta de classes, a nível mundial e nacional, não se encontra presente, e, inclusive numa época de regime militar, na qual a censura e a repressão atuavam e, mesmo considerando os períodos anteriores, houveram outras ditaduras, populismo, etc. que só podem ser compreendidos na dinâmica da luta de classes, bem como a hegemonia burguesa a nível mundial com supremacia europeia e norte-americana, além da “soviética”.
Porém, a ausência de classes ocorre também no silêncio de Roberto Gomes sobre quem são os agentes e qual é a perspectiva que permitiria o desenvolvimento de um pensamento crítico e inovador no Brasil (ou seja, não de uma filosofia brasileira e sim de uma produção intelectual independente e autônoma). Bastaria a boa vontade e o mergulho nas “raízes brasileiras” para surgir tais agentes? A perspectiva seria a nacionalista?
E aqui reencontramos a base do pensamento de Roberto Gomes: o nacionalismo. O nacionalismo de Gomes foi além da razão ornamental, da razão afirmativa e da razão dependente. Contudo, não deu o passo seguinte e fundamental: a crítica à razão nacionalista. Se tivesse aprofundado a análise da sociedade brasileira, e do capitalismo subordinado como um todo, Gomes teria descoberto que o nacionalismo é uma ilusão para países submetidos ao imperialismo. Se tivesse analisado a composição de classes da sociedade brasileira, suas divisões e interesses, teria percebido que não existe uma burguesia nacional autônoma e independente, o que inviabiliza uma cultura e uma filosofia igualmente autônoma e independente.
Por outro lado, teria percebido que autonomia e independência, indo além do nacional e retomando o universal da humanidade, só pode ocorrer através da luta do proletariado e das classes inferiores, pois o interesse de desvendar o véu, tal como ele identificou, pressupõe a existência de interesse nesse sentido. Assim, o agente que pode realizar o desenvolvimento de uma produção intelectual autônoma e independente na sociedade brasileira é proletariado e seus representantes intelectuais, bem como a perspectiva é a vinculada a ele, expressando as concepções, sentimentos, valores e interesses correspondentes ao movimento operário revolucionário.
Os limites de Roberto Gomes são os do nacionalismo que servem de base para a sua crítica. Sem dúvida, trata-se de um nacionalismo contestador, produzido no capitalismo subordinado (e, portanto, percebe parcialmente a subordinação), mas tal como o antigo “terceiro-mundismo”, ao ficar nos estreitos horizontes nacionais, não compreende a totalidade do capitalismo mundial e a impossibilidade de autonomia e independência nacional nesse contexto, bem como a armadilha da ideologia nacionalista. O aspecto crítico está vivo e presente, mas tem limites. O aspecto propositivo é voluntarista e sem alcance real.
Apesar disso, a abordagem de Roberto Gomes sobre o problema da filosofia e cultura brasileiras é uma das mais interessantes escritas até hoje. Numa perspectiva crítica, mesmo que com limites, ele mostra que a filosofia brasileira é “enlatada”, tal como Guerreiro Ramos já havia falado da sociologia brasileira. E aponta para os problemas da cultura brasileira e da produção filosófica em nosso país, desvendando os artifícios da razão ornamental e da razão afirmativa. Nesse sentido, Roberto Gomes contribui muito mais que diversos autores canonizados e sucessos de temporada e deveria, portanto, ser mais lido e discutido, pois é um bom ponto de partida para questionar os problemas culturais da sociedade brasileira.
*Nildo Viana é professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Goiás (UFG). Autor, entre outros livros, de Hegemonia burguesa e renovações hegemônicas (CRV).
Referência
Roberto Gomes. Crítica da Razão Tupiniquim. São Paulo, Criar, 2001, 130 págs. [https://amzn.to/469Yl05]
Bibliografia
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WRIGHT MILLS, C. A Imaginação Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
Notas
[i] O próprio autor distingue e explicita diferentes formas de seriedade. Uma é a do “homem sério”, formal e aparente, a outra é “levar algo a sério”, que denota profundidade. No primeiro caso, temos o formalismo, ritualização, etc. No segundo, temos reflexão e aprofundamento. Vamos voltar a isso mais adiante.
[ii] Muitas questões poderiam ser apresentadas aqui. O que seria uma “filosofia brasileira”? Seria uma filosofia do Brasil (que diria o que é o Brasil)? Uma filosofia da sociedade brasileira (gestada nessa sociedade e vinculada a ela)? Uma filosofia no Brasil? Uma filosofia original feita por brasileiros? Uma filosofia originalmente “brasileira”?
[iii] Consideramos que a questão é mais complexa e seria preciso refletir sobre o caráter da negação e seu significado, bem como a base histórica e social desse processo. No fundo, o que esses filósofos realizam é a suplantação – conservação e alteração – e não superação – que significa abolição sem conservação, pois da forma como foi colocado não se percebe o processo de desenvolvimento, que conserva e altera simultaneamente.
[iv] Não será possível aprofundar essa questão e por isso indicamos uma obra (Viana, 2019) na qual efetivamos uma análise crítica do uso do termo “sujeito” para que quiser entender melhor o que estamos questionando.
[v] O critério é um elemento abstratificado do pensamento e por isso é algo problemático para se tratar de assimilação. A questão é mais complexa. Se quero discutir um critério para realizar assimilação, estou realizando uma discussão mais abstrata sobre esse processo e não algo concreto, como sugere a discussão sobre “filosofia brasileira” e, nesse nível maior de abstração, basta exigir “o critério”. Porém, concretamente, cada teoria, ideologia, etc., realiza o processo de assimilação sob formas diferentes, ou, para usar termo problemático de Gomes, cada uma tem seus próprios critérios.
[vi] Não se “constrói” o passado, pois ele já passou e se caracterizou por relações sociais reais. O que ocorre é que ele é rememorado sob formas diferentes e aí é possível elaborar “versões” sobre o passado, mas ele já foi e continua intacto (Viana, 2020). Se a versão dominante da Guerra do Paraguai no Brasil é a de que Duque de Caxias foi um herói, existe a versão de Chiavenatto (1983) segundo a qual ele era um “ladrão de mulas” e um indivíduo nada heroico, assim como existem outras versões e nenhuma delas irá alterar o que aconteceu efetivamente e o que ele significou verdadeiramente, embora uma possa ser fidedigna ou pelo menos mais próxima da realidade, enquanto que outras podem ser muito distantes, inclusive quando interesses de setores poderosos da sociedade apontam para a elaboração de versões sobre os acontecimentos históricos
[vii] A princípio, qualquer pessoa que concorda com o materialismo histórico-dialético deveria concordar com tal posicionamento. Porém, a questão é mais complexa. E não poderemos desenvolvê-la aqui, mas tão somente fazer breves considerações. Uma coisa é a raiz social, as determinações sociais e históricas de uma determinada (portanto, particular, concreta) produção filosófica, outra coisa é o que é a filosofia e se ela pode ser nacional. Nesse caso, a filosofia é uma forma de pensamento e, por conseguinte, ela está acima das divisões nacionais. Agora, suas manifestações concretas em cada país e suas especificidades existem e só são compreensíveis no sentido histórico e social, mas isso é diferente de tratar de uma “filosofia nacional”.
[viii] Afirmação problemática, pois afirmar que os dois eram extrovertidos pode ter algum embasamento em informações (mais difíceis no caso de Aristóteles), mas em “estado puro” já é um exagero. Outra questão é a confusão entre “introvertido” (um elemento do temperamento) com introspectivo (um processo mental).
[ix] Gomes afirma que Lins acerta ao colocar “professores de filosofia”, pois “contamos com professores de filosofia e não com filósofos”, o que é verdade parcial, pois este não é um problema apenas brasileiro, pois a história da filosofia mostra a diminuição quantitativa e qualitativa da produção filosófica e a substituição de filósofos (como pensadores originais) por professores e historiadores da filosofia.
[x] “Para bem corresponder ao papel que, mesmo sem o saber, lhe conferimos, inteligência há de ser ornamento e prenda, não instrumento de ação e conhecimento” (Holanda, apud. Gomes, p. 72).
[xi] “Com efeito, não há autorzinho estrangeiro de segunda ordem com algum sucesso, não há movimentozinho de Saint Germain-des-Prés ou do Boulevard Saint-Michel, não há pequeno ensaio de crítico inglês ou insignificante exercício para estudantes de qualquer crítico universitário norte-americano –, não há nada, de tudo isso, que deixe de receber aqui amplo noticiário, em nossas revistas e jornais, enquanto tantos trabalhos de autores nacionais, às vezes de valor equivalente ou mesmo de melhor categoria, ficam na sombra, sem publicidade e sem repercussão” (Lins, apud. Gomes, 1994, p. 75).
[xii] Gomes afirma que o humorismo estaria ligado a uma consciência desperta, crítica, etc. e coloca que não vê antagonismo entre filosofia e humor. Porém, é preciso perceber que o humor e o humorismo podem servir para muitas coisas, inclusive para a crítica (e aí é necessário discutir qual forma de crítica). Vincular humorismo e crítica (esta num sentido contestador) sem essa percepção é um equívoco. Por outro lado, a seriedade não se vincula, necessariamente, com o conservador. Claro que Gomes distinguiu entre tipos de seriedade (que não as nomeia, mas poderíamos chamá-las de formal e substancial), mas, mesmo assim, é preciso diferenciar a própria seriedade que ele atribui sentido positivo, pois nem sempre a profundidade significa veracidade. E inusitadamente Gomes não distingue, como fez com a seriedade, as formas do humorismo.
[xiii] Não deixa de ser inesperado que Ianni (1971) não só reconhecia como praticava isso, tal como se observa em suas obras sobre “globalização”, sendo um pioneiro em terras brasileiras na divulgação das ideologias estrangeiras sobre esse tema (1992; 1996; 1997).
[xiv] O que não quer dizer que não existam especificidades culturais nacionais, mas estas não são “modos específicos de abordar o real”.
[xv] No fundo, é uma crítica ideológica que esconde suas próprias bases ideológicas, como se o problema fosse a “cultura ocidental”, ou “europeia”, e não o contexto social e histórico, as relações internacionais concretas, os interesses existentes, determinadas ideologias (inclusive as que supostamente questionam o predomínio europeu), etc.
[xvi] O que aqui significa que não usa o método dialético.
[xvii] As categorias da dialética são pouco desenvolvidas, pois Marx usou várias, mas nas realizou uma reflexão sobre elas. Essa lacuna é, geralmente, preenchida com um retorno a Hegel ou então com o apelo aos ideólogos da antiga União Soviética, ou, ainda, um ou outro filósofo específico. Porém, é possível, a partir do conjunto das contribuições existentes, entender que o singular é uma manifestação do universal, além de ser uma categoria relativa, pois o singular num outro contexto pode ser universal e vice-versa.