Turbulências e desafios

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Por RICARDO MUSSE*

Prefácio do livro recém-lançado de Jorge Almeida & Eliziário Andrade

1.

Livros redigidos a quatro mãos não são incomuns na tradição socialista europeia. Os exemplos mais eminentes são as obras escritas em parceria por Karl Marx e Friedrich Engels durante a década de 1840: A sagrada família, A ideologia alemã e Manifesto do partido comunista. Nesses casos, a forma de colaboração nem sempre foi a mesma.

Tudo indica que o procedimento utilizado em A sagrada família tenha sido o seguinte: Marx redigiu partes determinadas do livro que foram revisadas (e refeitas) por Engels e vice-versa.

O manuscrito de A ideologia alemã foi escrito no inverno de 1845-1846, no exílio em Bruxelas, num período em que Engels residia a poucos quarteirões da casa de Marx. Ao final de cada encontro, colocavam nos cadernos os resultados convergentes das discussões. O desenrolar da obra – planejada como uma crítica das ideias filosóficas de Ludwig Feuerbach, Bruno Bauer e Max Stirner – com certa frequência exigiu eliminação, emendas e retoques de trechos anteriores.

No Manifesto do partido comunista a participação de cada um deles foi muito distinta. Premido pelas circunstâncias, sem tempo e oportunidade de consultar o parceiro, Marx redigiu-o sozinho no período entre dezembro de 1847 e janeiro de 1848. Engels já se transferira de Bruxelas para Paris, e Marx ainda não obtivera autorização para retornar à França ou à Alemanha. A autoria dupla se deve um fato simples: a encomenda a Marx feita pela “Liga dos Comunistas” viera com a recomendação expressa de dar forma a uma série de pontos apresentados por Engels no congresso de fundação deste partido. A mão de Engels, a partir da edição de 1883, se tornou mais presente com a redação de uma série de notas explicativas que desde então foram incorporadas em quase todas edições do livro.

No século XXI, a coautoria mais destacada na tradição socialista foi a de Toni Negri e Michael Hardt, iniciada com a publicação em 2002 de Império: a nova ordem da globalização, continuada, entre outros, com Bem-estar comum. Não se trata apenas da colaboração, muito usual, entre mestre e discípulo, mas de uma convergência e comunhão de ideias, marca distintiva do pertencimento a um mesmo grupo e linha política.

Apesar desses antecessores bastante conhecidos e ilustres, pode causar estranhamento no leitor a dupla autoria deste volume, pois no Brasil, livros a quatro mãos são poucos e ainda mais raros na tradição socialista.

2.

A parceria de Jorge Almeida e Eliziário Andrade seguiu um caminho inusitado. Recolhidos durante a pandemia do coronavírus, ambos enfrentaram a quarentena se dedicando ao trabalho intelectual, aprofundando pesquisas em andamento e, sobretudo, redigindo artigos postados em sites na internet. Na contramão do isolamento forçado, buscaram a comunicação ampla com uma comunidade virtual que os efeitos da Covid consolidaram. Uma reação próxima daquela dos personagens de Decamerão, obra de Giovanni Boccaccio redigida durante a Peste Negra, entre os anos de 1348 e 1553.

Neste livro, os artigos foram agrupados cronologicamente. Essa ordenação formal faz com que, só após percorrer a totalidade da obra, o leitor perceba o diálogo implícito, a orientação comum, as convergências de visão de mundo e de linha política que justificam a reunião desses artigos em um mesmo volume.

No Brasil, a tragédia da pandemia foi ainda mais aguda, pois transcorreu durante a presidência de Jair Bolsonaro. Com ações e omissões, o ex-capitão intensificou o quadro sanitário, colocando o país no topo da lista das nações com maiores taxas de mortes por Covid. A indicação de remédios comprovadamente ineficazes e uma campanha sistemática contra a vacinação em massa não teriam, no entanto, causado tantos estragos se não contassem com o aval de uma parcela ponderável das elites (econômica, financeira, militar, judiciária, midiática, médica etc.) e da população.

Os dois autores estavam cientes de que se tratava de uma situação na qual a efetividade da resistência demandava a compreensão dos fatores que possibilitaram a ascensão ao poder da extrema direita. Além de uma recapitulação dos episódios que estiveram na origem do golpe de 2016 – no bojo de uma análise histórica, política e social –, sobressaltava a necessidade de explicar o estranho vínculo que cimentava a adesão das massas a um líder cujo programa contrariava explicitamente os interesses materiais da maioria dos brasileiros.

Bons leitores da obra de Karl Marx, Jorge Almeida e Eliziário Andrade evitaram se prender à situação de momento, à visão petrificada de um presente eternizado em segunda natureza. A atenção à dinâmica em incessante transformação, própria do modo capitalista de produção, ao desenvolvimento histórico, em curta e em longa duração, serviu como contraponto das predominantes imagens reificadas da sociedade. Mesmo no exame circunstanciado da conjuntura, sempre mantiveram um olho no presente e outro no futuro.

Os traços mais salientes do período, concentrados na emergência de uma corrente de extrema direita com força suficiente para reordenar a vida econômica, política, institucional e social brasileira não se lhes afiguraram como uma especificidade local. Buscaram reconstituir as relações, as similitudes (e mesmo as divergências) entre o bolsonarismo e a ultradireita organizada em seções nacionais como movimento mundial. Mantiveram assim um olho no Brasil e outro no mundo.

3.

Os artigos de Jorge Almeida, redigidos no calor da hora, constituem uma exposição precisa de acontecimentos históricos recentes, o que por si só justifica a sua recolha em livro. Mobilizando conhecimentos nas áreas de ciência política, economia, relações internacionais, história etc. fornecem explicações aprofundadas sobre o governo de Jair Bolsonaro, a eleição de Gabriel Boric, a ascensão e o novo papel da China na geopolítica mundial.

As análises da conjuntura brasileira combinam o relato circunstanciado dos eventos recentes mais relevantes com determinações econômicas e sociais estruturais, que modelam o cenário onde se desenrola o jogo político. O fio condutor é enunciado já no título do primeiro artigo, na indagação nada óbvia acerca de “quem governa o Brasil?”.

A resposta é mais complexa que a enumeração das forças que apoiavam Jair Bolsonaro no âmbito do Estado – oficialidade militar, burocracia estatal, aparelho jurídico coercitivo –; do empresariado – grande capital, médio e pequenos empreendedores, mídia comercial –; e da sociedade civil – igrejas fundamentalistas, grupos de extrema direita (neofascistas, ultraconservadores e ultraneoliberais). Não se trata apenas da consideração de que esses grupos e setores de classes possuem interesses divergentes e mesmo conflitantes, gerando um quadro de instabilidade permanente, mas de delimitar o espaço de poder de cada um, narrando como hegemonias provisórias foram construídas e desfeitas. Aponta-se assim para desdobramentos que indicam o caráter político do governo.

Jorge Almeida é incisivo. Jair Bolsonaro é um neofascista, mas seu governo não chega a tanto. Trata-se de uma administração hegemonizada pela extrema direita que não conseguiu alterar o teor do regime político: uma democracia liberal representativa, com tinturas de autoritarismo e centelhas de arbitrariedades.

No acompanhamento dos três últimos anos do mandato do ex-presidente, o autor nunca perde de vista a queda de braço entre o ex-capitão (insistente no projeto de uma inflexão autoritária) e a tutela civil militar burguesa, exercida pelas frações hegemônicas do capital, das Forças Armadas e da elite política. Eventos recorrentes nesse período inserem-se nesse quadro mais amplo, como anúncios e tentativas de golpes de Estado, derrotas institucionais do ex-presidente, cooptação de parlamentares agrupados no Centrão. As emoções (medo ou esperança) presentes em cada momento são contrabalançadas pelo olhar objetivo do analista. Redimensionando a situação aparam-se os exageros que circulavam na mídia e nas redes sociais.

Uma entrevista realizada pouco antes do primeiro turno da eleição presidencial e um último artigo postado em 21 de novembro de 2022 fazem o balanço das campanhas de Lula e de Jair Bolsonaro, e dos resultados eleitorais nos estados e no parlamento. É desnecessário destacar a precisão das observações, pois Jorge Almeida é um reconhecido analista eleitoral, autor de relevantes trabalhos nessa área, como o livro Como vota o brasileiro (Xamã). Cabe, no entanto, ressaltar a exposição dos obstáculos que Lula deveria enfrentar a partir da transição e da posse do novo governo, num cenário de dificuldades decorrentes da capacidade de mobilização e dos apoios civis e militares ao bolsonarismo, incrementados por meio de uma extensa rede de fake news, na mídia e nas redes sociais.

As relações diplomáticas entre Brasil e China, mapeadas em uma série de artigos, podem ser lidas como uma comprovação da pertinência (e ao mesmo tempo como uma derivação) da mencionada queda de braço entre o ex-capitão e a tutela civil militar burguesa.

Na campanha eleitoral de 2018, Jair Bolsonaro não escondeu sua aversão ao modelo político chinês, tendo inclusive visitado Taiwan. Depois da posse, em lugar da esperada moderação, tivemos reiterados pronunciamentos, às vezes vocalizados por Eduardo e Carlos Bolsonaro, que, repetindo os mantras de Donald Trump, acusaram a China de delitos não comprovados como espionagem em larga escala, geração e disseminação deliberada do coronavírus, etc.

A força oposta, vitaminada por pressões e interesses do grande capital vinculado ao setor primário-exportador, prevaleceu, no entanto, tanto no Itamaraty e no parlamento como entre os militares. As ameaças de veto à participação da Huawei na implantação do 5G tornaram-se palavras ao vento, e o tráfego comercial entre os dois países se intensificou. Jair Bolsonaro visitou a China e lá disse que estava em um país “capitalista”, invertendo um tópico de sua campanha eleitoral.

No bojo desse debate Jorge Almeida publicou, em parceria com Renildo Souza (seu colega na UFBA, especialista em economia e história chinesa) dois artigos que buscam esclarecer as peculiaridades do caminho chinês. Neles, examinam a sua gênese na Revolução de 1949, as oscilações programáticas sob o comando de Mao Tsé-Tung, as reformas consolidadas no governo de Hu Jintao, repaginadas, recentemente, por Xi Jinping.

O artigo sobre a eleição chilena de 2021 constitui um dos pontos altos do livro. Isso se deve em parte por ter sido escrito com a emoção de quem viveu parte de sua adolescência em Santiago e com os conhecimentos de quem sempre acompanhou de perto a política do país vizinho, mas, sobretudo, pelo diagnóstico preciso, patente, por exemplo, nesse trecho que merece citação: “a moderação política de Gabriel Boric desde o processo constituinte, evidencia um risco de transformação dessa ‘nova esquerda’ em mais uma experiência frustrante, como a que aconteceu com o Syriza na Grécia e o Podemos na Espanha”.

4.

Os artigos de Eliziário Andrade abordam os desdobramentos econômicos, sociais, políticos e culturais da crise estrutural do capitalismo. A atenção aos seus diferentes efeitos converge num diagnóstico comum: a percepção de manifestações recorrentes de uma barbárie generalizada.

Walter Benjamin, em uma das teses do manuscrito Sobre o conceito de história, já havia alertado que, seja no curto ou no longo prazo, “a tradição dos oprimidos ensina-nos que o estado de exceção em que vivemos é a regra”. Essa lição foi retomada pelos participantes da Escola de Frankfurt – sobretudo por Max Horkheimer e Theodor Adorno em Dialética do esclarecimento – para compreenderem tanto o mundo posterior à Segunda Guerra Mundial, como as contradições da história humana desde o neolítico.

A maioria dos autores da assim chamada primeira geração da Teoria Crítica faleceu entre 1969 (Adorno) e 1979 (Marcuse). Seus sucessores, Jürgen Habermas à frente, abandonaram essa linha de investigação, privilegiando pretensos consensos no Estado de Bem-Estar Social da Europa e dos EUA. Ironicamente, foi nesse decênio que a crise latente do capitalismo aflorou com a combinação inusitada de estagnação e inflação.

Eliziário Andrade demonstra aqui e ali que acompanhou de perto os desdobramentos da crise da década de 1970 e que domina a bibliografia atinente a esse tópico. Seu objeto, no entanto, é a crise estrutural do capitalismo no século XXI: uma crise que, segundo ele, “se diferencia em alguns aspectos das circunstâncias históricas passadas pela sua abrangência e graus explosivos de contradições na totalidade econômica, social, política e ambiental”.

Eliziário Andrade destaca a emergência dessa crise em 2007-2008 nos EUA com a derrocada do mercado de subprimes e de capitais fictícios. Não se trata, portanto, da mera repetição de mais uma crise cíclica, decorrente da desregulação do capital especulativo. A identificação dessa gênese orienta a investigação de seus efeitos – não só no campo econômico, mas também em termos políticos, sociais e geopolíticos.

A partir de 2020, a crise adquire formato distinto com a disseminação em escala mundial da pandemia da covid. Os economistas do mainstream, o jornalismo da grande mídia e os governantes se ativeram à explicação conjuntural. Eliziário Andrade, na contramão desse discurso unívoco, vê no coronavírus o detonador “que faz explodir o que já estava em curso, maturado para se manifestar na forma de crise financeira, embora sua causa principal esteja mesmo nas contradições sociais da produção capitalista”.

Os seus sintomas já haviam se manifestado antes, em especial no âmbito da política, com o ressurgimento de tendências de extrema direita em todos os cantos do planeta e com a adoção do receituário ultraneoliberal para tentar conter os efeitos do capitalismo financeirizado. Na caracterização dos movimentos neofascistas, da radicalização das políticas econômicas neoliberais ou do tratamento concedido à população no decorrer da pandemia, Eliziário Andrade ressalta aspectos novos e antigos do nosso estado permanente de exceção, atualizando as determinações da barbárie estudadas pelos frankfurtianos.

As ameaças à democracia política decorrem dos obstáculos encontrados pela burguesia – já apontados pelos marxistas desde o século XIX – em manter a dominação política recorrendo apenas aos ideais da Revolução Francesa e do Iluminismo. O uso da violência e da coerção política abre caminho para a “ascensão das forças sociais de extrema direita neofascista, expressando as dificuldades crescentes das classes dominantes de construir consenso e unidade em torno de sua universalidade social, cultural e política hegemônica”.

Desde 1848, há uma alternância entre formas de governo autoritárias e modelos institucionais que preservam a fachada democrática. Essa oscilação, aponta com pertinência Eliziário Andrade, “decorre de necessidades intrínsecas à lógica de reprodução do capital, em conjunturas específicas”. Adverte ainda que “nada disso é estático, está perpassado por um movimento dialético entre a necessidade dos monopólios que avançam em um processo avassalador de concentração e centralização, de um lado, e de outro, os diversos interesses dos capitais concorrentes que requerem condições econômicas e políticas favoráveis e ‘normais’”.

A espiral da crise capitalista se faz patente, hoje, em guerras imperialistas, disputas acirradas de hegemonia geopolítica, ofensivas da extrema direita neofascista, descumprimento de metas ambientais acordadas etc. A crise estrutural do capital se arrasta (e se intensifica) desde a década de 1980 desdobrando “dois fenômenos inter-relacionados: a discrepância entre os ativos financeiros globais em relação à desaceleração do PIB global e a baixa lucratividade, produzindo realidades econômicas, sociais e políticas devastadoras”.

O livro se encerra com uma frase que poderia ter sido escrita tanto por Jorge Almeida como por Eliziário Andrade. Remetendo à crítica de Antonio Gramsci ao ideário liberal-burguês e ao transformismo político ideológico da esquerda, afirma-se “a convicção da necessidade e possibilidade sócio-histórica de construir um novo projeto societário, com uma política efetivamente socialista, para além da colaboração de classe e do capital”.

*Ricardo Musse é professor do Departamento de Sociologia da USP. Autor, entre outros livros, de Trajetórias do marxismo europeu (Editora da Unicamp). [https://amzn.to/40ZkKMz]

Referência


Jorge Almeida e Eliziário Andrade. Turbulências e desafios: O Brasil e o mundo na crise do capitalismo. São Paulo, Dialética, 2023, 260 págs. [https://amzn.to/3T5qlPo]

Lançamento em Salvador – dia 30 de novembro, quinta-feira, a partir das 19 horas no Museu de Arte da Bahia (Corredor da Vitória, 2340).


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