Por RAFAEL ASSUMPÇÃO DE ABREU*
É preciso abandonar, o quanto antes, a crença na neutralidade da burocracia moderna, inclusive aquela defendida por uma esquerda neoliberal
Como docente de um Instituto Federal, há quase sete anos, sempre me incomoda o modo como colocam os Institutos Federais como solução quase que mágica para os problemas enfrentados no Ensino Médio brasileiro. Recentemente, tal argumento fora recuperado, mais uma vez, durante a campanha pela revogação do Novo Ensino Médio. Sempre quando vejo elogios incondicionais aos Institutos Federais, fico a me perguntar: será que essas pessoas imaginam que a chamada Rede dos Institutos Federais representa instituições que possuem as mesmas condições, independentemente de sua região e de seu tempo de existência? Será que os que clamam pela solução “Institutos Federais” para a educação conhecem, de fato, o real modo de funcionamento dessas instituições?
O serviço público federal, do qual os Institutos de Educação, Ciência e Tecnologia fazem parte, enfrenta um processo pautado por profundas transformações, sejam elas anunciadas ou silenciosas. Redução orçamentária, déficit de servidores, por exemplo, são apenas alguns dos problemas enfrentados por instituições e agências, sobretudo desde meados da década passada – após os “anos dourados” que reestruturaram diversos setores, como os da educação e ciência.
Nas próximas linhas, gostaria de compartilhar algumas notas que formulei na condição de docente e servidor público federal; anotações que dizem respeito ao meu contexto de trabalho, mas que podem ser úteis para pensarmos as recentes mutações no serviço público no Brasil, por meio de certa compreensão sobre os efeitos do neoliberalismo.
O elemento que melhor caracteriza as instituições modernas, do modo como nos acostumamos a acessá-las ou nelas trabalhar, é a burocracia. Foi a burocracia, portanto, o dispositivo criado e mobilizado para garantir um modo específico de organização e reprodução institucional. As instituições públicas, assim, se estruturaram por meio de legislações, normas e regras (internas ou externas).
A normatização, por um lado, garantiria, mesmo que idealmente, o exercício de um agente público segundo o princípio da impessoalidade, enquanto que, por outro, determinaria os limites e as atribuições de cada servidor público, dividindo o trabalho e hierarquizando-o segundo organogramas organizacionais. A burocracia, de tal modo, significou uma reprodução institucional rotinizada, com um ritmo compassado, metódico, marcada pela repetição e pela disciplina. Não por acaso, essa arquitetura fria foi vista por Max Weber como contraponto e esvaziamento da política.
Obviamente, a descrição acima representa um tipo ideal das instituições públicas modernas, não se atentando para os detalhes, para a sua vida interna, seu cotidiano, que relativiza, por exemplo, a impessoalidade e frieza das burocracias (veja bem: não estou, aqui, a falar de uma compreensão equivocada sobre o funcionamento das instituições no Brasil, como aquela que apela para um suposto dado cultural/universal denominado “jeitinho brasileiro”). No entanto, mesmo considerando as contradições presentes no quadro weberiano, gostaria de argumentar sobre rupturas e mudanças que estão a alterar as estruturas das burocracias que orientam as instituições públicas.
Mesmo que gradual e processualmente, os princípios organizadores de tais estruturas estão se metamorfoseando diante de outros tipos de necessidades, para os quais o modelo moderno não é mais capaz de atender completamente. Obviamente, quando falo em processualidade, não trato de uma substituição automática, mas de combinações e simbioses que passam a ser orientadas por outros elementos, que tentarei descrever adiante.
Quando penso nesses deslocamentos e novas direções na chave do neoliberalismo, lanço mão de uma compreensão teórico-conceitual formulada, por exemplo, pelos franceses Pierre Dardot e Christian Laval: “A tese defendida por esta obra é precisamente que o neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica, é em primeiro lugar e fundamentalmente uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados. A racionalidade neoliberal tem como característica principal a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação. O termo racionalidade não é empregado aqui como um eufemismo que nos permite evitar a palavra “capitalismo”. O neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, de um capitalismo desimpedido de suas referências arcaizantes e plenamente assumido como construção histórica e norma geral da vida. O neoliberalismo pode ser definido como o conjunto de discurso, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência”.[i]
Poderia dizer, assim, que pelo menos boa parte das instituições públicas vivenciam um processo pautado no encontro entre a racionalidade burocrática e a racionalidade neoliberal. De tal modo, o Estado, a instituição e o agente/servidor público passam a produzir e reproduzir discursos, práticas e dispositivos que sejam capazes de responder aos próprios problemas e exigências que o neoliberalismo apresenta: “Se admitirmos que sempre há ‘intervenção’, esta é unicamente no sentido de uma ação pela qual o Estado mina os alicerces de sua própria existência, enfraquecendo a missão do serviço público previamente confiada a ele. ‘Intervencionismo’ exclusivamente negativo, poderíamos dizer, que nada mais é que a face política ativa da preparação da retirada do Estado por ele próprio, portanto, de um anti-intervencionismo como princípio”.[ii]
De tal modo, é assim que podemos compreender o ponto de partida das mais variadas reformas, reduções orçamentárias e ausência de concursos para reposição de servidores públicos. Mas não apenas isso: concomitantemente, uma nova linguagem, uma nova forma de “gerir” as instituições vai se consolidando, como resposta possível ao processo de precarização; uma resposta que se ampara no modelo da empresa privada. Os gestores públicos, por exemplo, devem garantir o funcionamento com pouco, como se fossem hábeis gerentes em busca de um saldo final positivo em condições extremamente desfavoráveis. Por outro lado, como afirmou Vicente Dubois, assistimos, ainda, mesmo nas instituições educacionais, uma mudança do serviço público para o serviço ao público, visando, agora, “à satisfação dos usuários considerados principalmente como clientes”.[iii]
Tudo isso passa a ser lido, por outro lado, como reformas modernizadoras, de modo a substituir uma burocracia arcaica, que caracterizaria um Estado lento, corrupto e ineficiente. É nesse contexto, consequentemente, que emerge uma espécie de servidor público-colaborador ou, seja, o servidor público neoliberal: um indivíduo ágil, polivalente e multifuncional, em substituição ao servidor público tradicional, lento, mal-humorado e com um carimbo na mão. O novo servidor público, muito mais antenado com a popularização do espírito empreendedor, não se limita diante das dificuldades, resolvendo individualmente, de modo proativo, problemas que são estruturais e/ou institucionais – aqui, faço menção ao modo como Wendy Brown caracteriza o neoliberalismo.[iv]
Para atender a essa nova lógica do trabalho, portanto, o novo servidor público passa a se opor, discursivamente e em suas práticas, ao servidor público tradicional. Para tanto, passa a responder positivamente a um tipo de flexibilização dos limites e fronteiras que orientaram a burocracia moderna, ou seja, aqueles que dizem respeito a uma disciplina do tempo do trabalho e da garantia do tempo da vida privada. Agora, mesmo nas instituições públicas, o trabalho e a vida privada se confundem, desfazendo-se os limites e as fronteiras.
O servidor público neoliberal, sendo gestor, o agente do guichê – para citarmos os termos de Vincent Dubois – ou o docente (para além) da sala de aula, comprovará a sua eficiência rompendo as barreiras de sua vida privada, fazendo com que o trabalho, assim, invada outros tempos e temporalidades da sua vida. Este movimento foi facilitado, por exemplo, com a plataformização e digitalização do trabalho.
No entanto, o maior símbolo que representa com exatidão esse momento é o uso profissional do whatsapp. Ao borrar as fronteiras que determinavam o limite do trabalho, anima-se no ambiente institucional (agora, mais próximo da ética e estética que conformam a empresa privada) uma lógica competitiva entre servidores e, no caso que acompanho de perto, de concorrência entre os campi de um mesmo Instituto Federal. Neste cenário, poderíamos nos questionar: qual o objetivo da competição entre trabalhadores que, ainda, possuem estabilidade no emprego? Qual é o mercado que anima esta lógica concorrencial?
A busca pela eficiência, por parte do servidor público-colaborador/neoliberal, consequentemente, não pode se apegar as atribuições de sua função específica, do seu cargo. Abre-se, aqui, um novo cenário para a sociologia das profissões: o servidor público-neoliberal deve aceitar e promover a flexibilidade para transitar por vários setores e especialidades – comprovando, assim, sua busca pela eficiência. É curioso observar, nesse processo, que a eficiência representa uma conduta de vida a ser reconhecida pelos seus pares, sem necessariamente alcançar uma comprovação material – a não ser quando expressada na planilha do Excel, em linguagem matemática, comprovando índices cada vez mais individuais de produtividade.
Nós, servidores públicos, portanto, respondemos ao processo de precarização do trabalho, de falta de dinheiro e de estrutura, praticando os princípios que, do ponto de vista da instituição pública, já não são mais os tradicionais da burocracia moderna, mas de uma espécie de burocracia neoliberal. A nova burocracia, necessariamente, gera, também, incongruências entre a legalidade e os fatos do cotidiano dos servidores públicos. Ou seja, para flexibilizar funções e atribuições, torna-se necessário, muitas vezes, flexibilizar a lei.
Por outro lado, nem de longe se torna dispensável a lei que penaliza e disciplina o trabalho: por exemplo, o servidor que deve bater o ponto que registra a sua frequência, que deve responder a todas as formas de controle sobre o seu trabalho, é o mesmo que trabalha além das horas registradas – sem necessariamente receber, em seu salário, pelas horas extras. O trabalho além das 40 horas semanais, é importante dizer, representa a ação que comprova o comprometimento com a firma, ou seja, com a instituição pública.
E é nesta intersecção entre controle e descontrole do trabalho, que as instituições ganham novos contornos pautados em uma crescente arbitrariedade e por um ambiente que passa a naturalizar o sofrimento e o esgotamento, físico e mental, dos trabalhadores (sejam eles servidores efetivos, temporários, terceirizados ou estagiários).
O servidor público-colaborador/neoliberal, que se adequa às formas de controle e se mostra eficiente por meio de um trabalho descontrolado, a ser realizado para além dos muros institucionais, gradualmente, vai se transformando no modelo hegemônico que atende as novas exigências e necessidades da instituição. As novas exigências, no contexto de precariedade e competição, de crença no modelo empresarial para responder aos desafios contemporâneos, são animadas, por sua vez, por um contexto de imprevisibilidade (tudo pode mudar a qualquer momento), de vulnerabilidade (não existem mais posições e direitos assegurados de forma perene) e urgência (um ritmo acelerado que comprime o tempo dos prazos institucionais), que resultam no domínio do medo, enquanto afeto central, e do espírito da competitividade, enquanto conduta a ser almejada e realizada.
Diante desse quadro, conforma-se o bom servidor. Em um período de escassez, o funcionamento e sobrevivência da instituição pública – sobretudo as educacionais – passa a depender de indivíduos cuja força deve estar além de suas funções e especialidades, até que se esgote a importância das atribuições burocraticamente definidas. Em instituições educacionais – como no caso que orienta minhas reflexões –, flexibilidade, eficiência, produtividade e competição produzem uma estranha combinação com as bandeiras e valores caros aos movimentos de luta pela educação, como os de justiça social e democratização do ensino – muito embora a questão da qualidade do ensino e da produção científica fiquem cada vez mais distantes.
É neste contexto que o servidor público neoliberal deve confirmar o seu sacrifício pela instituição e seu compromisso com a missão social da instituição pública. Ou seja, especialmente nos espaços institucionais de educação e ciência, diante da precariedade, escassez e desestruturação, o compromisso eficiente do servidor educacional mede-se por sua entrega e sacrifício, independentemente das condições para a realização do trabalho.
O interessante, neste processo em curso, é observar que, de alguma forma, a frieza da burocracia moderna passa a ser substituída por uma política que anima o contexto institucional, seja na flexibilidade de leis e normas, para atender aos objetivos de grupos hegemônicos, seja no combate informal ao servidor público-resistente, que tenta questionar e se opor ao modelo institucional e à conduta neoliberal.
No ambiente educacional, percebe-se que a criminalização da imagem do professor realizada pela extrema direita,[v] encontra algum respaldo nos discursos contra o servidor e/ou professor que não quer trabalhar; esse servidor e/ou professor, a depender do momento, pode ser qualquer um que não se adeque às exigências dos novos tempos: qualquer servidor público-desviante, em meio a um estado de crescente vigilância (institucional e entre pares), pode ser classificado – formal ou informalmente – de ineficiente, ou seja, pouco dedicado às novas necessidades institucionais; incapaz, portanto, de se sacrificar de modo a cumprir a missão institucional.
Não há, neste percurso, outro caminho ao servidor-resistente: é preciso abandonar, o quanto antes, a crença na neutralidade da burocracia moderna, como solução para o avanço, quiçá inexorável, das forças que estão a mudar completamente as instituições públicas. Não é mais possível esperar, por outro lado, qualquer mudança oriunda de um programa de governo de centro-esquerda, pois o processo que sobre nós avança é legitimado, também, por uma esquerda neoliberal. A única saída é a reinvenção política daqueles e daquelas que resistem nas instituições públicas neoliberais.[vi]
*Rafael Assumpção de Abreu é professor de sociologia no Instituto Federal Baiano, campus Itapetinga.
Notas
[i] DARDOT, Pierre; LAVAL, CHRISTIAN. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. p.17
[ii] DARDOT, Pierre; LAVAL, CHRISTIAN, 2016, p. 15.
[iii] DUBOIS, Vicent. Políticas no guichê, políticas do guichê, p. 107. In: PIRES, Roberto (Org). Implementando desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas. Rio de Janeiro: IPEA, 2019. p. 105-125.
[iv] BROWN, Wendy. American nightmare: neoliberalism, neoconservatism, and de-democratization. Political Theory, Vol. 34, No. 6 (Dec., 2006), pp. 690-714. Disponível em: https://sxpolitics.org/wp-content/uploads/2018/05/Wendy-Brown-American-Nightmare.pdf
[v] Refiro-me, aqui, aos discursos, ao denuncismo por conta das acusações de ideologização e partidarização que atingiu currículos escolares, componentes curriculares e docentes. São muitas as informações que podem comprovar minha afirmação, mas segue uma das mais recentes: disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/eduardo-bolsonaro-compara-professores-a-traficantes-pf-deve-analisar-fala/.
[vi] O conteúdo e os argumentos presentes no texto são inteiramente de minha responsabilidade. No entanto, ninguém escreve realmente sozinho. Portanto, dedico este ensaio às autoras e autores de algumas das vozes que povoam a minha cabeça: Camila Silveira, Euvaldo Gomes, Chintamani Alves, Jeferson de Andrade e Pamella Picolli
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