Por SERGIO SCHARGEL*
Mais do que nunca, precisamos chamar e classificar o bacilo da extrema direita por seu nome verdadeiro: fascismo
“O espírito sou que sempre nega! / E com razão: pois tudo quanto nasce / De extermínio total somente é digno; / Pelo que, nada haver melhor seria” (Goethe).
Como devemos chamar os movimentos de extrema direita que não param de crescer em todo o mundo, tendo como mais nova vítima a Argentina?
Populismo, em si, é insuficiente. Fascismos são necessariamente populistas, embora a recíproca não seja verdadeira. Chamar a extrema direita apenas de “populista” é confortável para ela, que acaba por não ser combatida com a veemência que é preciso.
O fascismo não morreu em 1945 com o suicídio de Hitler, limitá-lo de forma hermética a um período histórico é negar que qualquer conceito e ideia se adapta e evolui através do tempo. Tanto mais: Benito Mussolini deu nome a essa fusão de populismo, reacionarismo, nacionalismo e autoritarismo, mas em que pese que o seu movimento fascista seja o mais famoso, outros semelhantes existiam na mesma época e inclusive o antecederam. Na própria Itália, Gabriele d’Annunzio mobilizou uma campanha nacionalista pela cidade fronteiriça de Fiume (na época, com a Iugoslávia) que pode, no mínimo, ser visto como predecessor do Fascismo.
Qualquer fascismo distinto do italiano será diferente, assim como o próprio fascismo mudou internamente durante o vintênio. O nazismo é o exemplo mais claro. Com frequência tomado como uma espécie de versão radicalizada do fascismo, sua pauta de purificação racial é estranha à sua contraparte italiana. Umberto Eco (2018, p. 43) lembra, por exemplo, que Ezra Pund colocava um anticapitalismo extremado, enquanto Julios Evola recriava o mito do Graal, elementos também estranhos ao fascismo de Mussolini. Para Roger Griffin (2015, p. 26), “O fascismo é um gênero de ideologia política cujo cerne mítico, em suas permutações, é uma forma palingenética de ultranacionalismo populista”.
Alguns pontos são essenciais e mantêm-se em todas as manifestações. O fascismo, por exemplo, é frequentemente confundido como uma espécie de movimento conservador. Basta ver como movimentos de extrema direita no contemporâneo são tratados pelo estranho prefixo “ultra”. Um ultraconservadorismo, na prática, trata-se de um fascismo, ou no mínimo de um reacionarismo. O conservadorismo pode – e, inclusive, o faz com frequência – aliar-se ao fascismo, mas não se confundem.
Trata-se mais de uma ligação por conveniência, do que uma associação orgânica. Por seu discurso de retorno a um passado visto como glorioso, de resgate de uma nação degenerada e pautada pelo messianismo (somente o Messias pode promover esse retorno), o fascismo é necessariamente reacionário, não conservador. Não é à toa que se pauta por um irracionalismo assumidamente anti-iluminista. A desumanização, paranoia e conspiracionismo sobre algum grupo específico também passam pelo mesmo caminho: o fascismo escolhe um alvo por ser visto como o responsável por essa suposta degeneração – no passado, antes “deles”, a nação era gloriosa. Não é uma conservação, mas uma reação.
Esses inimigos, não importa o quão frágeis sejam, são vistos como forças políticas e econômicas muito superiores. É uma inversão: o grupo fascista, muito mais forte, culpa e acusa um grupo minoritário de fazer exatamente o que eles próprios fazem. Quando há uma crise – econômica, política, social –, o fascismo se espalha para além de meia dúzia e encontra respaldo na população, que catalisa sua frustração em torno desse grupo desumanizado. É, portanto, um movimento que absorve diretamente crises e trabalha com um ressentimento melancólico.
Conservadorismo e reacionarismo podem ter a mesma origem – oposição à Revolução Francesa – mas não se confundem. Burke não se coloca contra qualquer revolução, mas se posiciona contra o que enxerga como desrespeito às tradições do povo francês. Em outras palavras, se coloca contra uma ruptura baseada em abstracionismos, rejeita que a noção de liberdade seja absoluta para justificar uma revolução. Não nega as imperfeições do Antigo Regime, mas ressalta sua ordem e moral, e diz que a verdadeira liberdade advém da estabilidade: “Há dez anos, teria eu podido, em sã consciência, felicitar a França por possuir um governo (pois ela tinha um) […] Posso hoje felicitar esta nação pela sua liberdade?”.
Embora mais secularizado do que Joseph de Maistre, sua contraparte reacionária, não nega que a religião é um dos pilares de um bom governo, embora não exclua outros essenciais como o poder público, a disciplina, a boa distribuição de impostos, a moralidade, a prosperidade e a paz. A verdadeira liberdade vem da relação harmônica entre esses pilares, junto com o respeito pelas tradições e pelos antepassados. Sem eles, a liberdade é uma abstração irrelevante. É uma abordagem, portanto, racional e bastante distinta do fanatismo fascista.
O conservadorismo foca no presente, o reacionarismo e o fascismo no passado. O reacionário deseja um resgate deste passado idealizado, e o fascismo lança mão de uma base de massas para levar este reacionarismo ao limite. O conservadorismo rejeita que o presente deva ser sacrificado em função do futuro, mas não deseja um retorno, tampouco se opõe a mudanças lentas e graduais. Apenas entende que o presente é resultado de uma construção geracional que, mesmo imperfeito, não deve ser sacrificado. Em suma, não trocar o certo, com todos seus defeitos, pelo duvidoso.
Já De Maistre percebia o presente imerso em uma crise de valores morais, habitado por indivíduos frágeis e autodestrutivos, que haviam se afastado do divino. Vale ressaltar que o reacionarismo surgiu como resposta direta à Revolução Francesa e, em um âmbito mais amplo, ao movimento iluminista. O movimento contemporâneo autodenominado neoreacionarismo, não sem razão, também se autointitula “dark enlightenment” (iluminação obscura).
Mas o fascismo não é só reacionário. Há outro conceito que é tão ou mais inerente a ele: o autoritarismo. No entanto, o fascismo difere em muito de outras formas de autoritarismo, como a ditadura militar. Enquanto uma ditadura, em geral, se impõe de cima para baixo e se caracteriza por uma ruptura brusca, o fascismo perpassa todos os setores sociais e lança seus tentáculos do autoritarismo pouco a pouco, corroendo a democracia de dentro para fora até não restar mais do que uma casca oca. Resquícios de aparência democrática, que em nada servem.
Um exemplo claro é a Constituição de Weimar, que se manteve praticamente intacta durante o nazismo, conferindo uma fachada de normalidade democrática ao regime, mesmo com toda a sua violência. Conforme cresce em força, mecanismos autoritários clássicos como censura e ataque à imprensa, à academia (anti-intelectualismo), perseguição de grupos minoritários e rejeição da democracia agonística passam a ser empregados. Curiosamente, é frequente que os fascismos não digam que estão acabando com a democracia, mas afirmem estar reformulando-a, retirando suas supostas imperfeições.
Entretanto, todos esses elementos convergem para o pilar mais básico do fascismo: o mito da nação. Para essa corrente política, a grandeza nacional é o ideal supremo, equiparando-se à importância da liberdade e igualdade para o liberalismo e socialismo, respectivamente. Mussolini (2020) enfatizou: “Nosso ideal é a nação. Nosso ideal é a grandeza da nação, e tudo o mais se subordina a isso”.
O nacionalismo constitui o pilar fundamental, a partir do qual todos os outros conceitos se desdobram no fascismo. O reacionarismo surge como uma consequência do desejo de restaurar a grandeza da nação, e o autoritarismo, juntamente com o apoio massivo das massas, tornam-se os métodos para alcançar esse objetivo. Essa dinâmica ajuda a explicar por que o fascismo só emergiu no século XX. Não apenas o nacionalismo se intensificou com a Revolução Francesa, como destacado por Eric Hobsbawm (1990), mas também houve a necessidade de uma base de massa que buscasse uma alternativa tanto ao liberalismo quanto ao socialismo.
Umberto Eco (2018) ressalta que o fascismo cria uma seita dentro da própria nação, onde a única característica excepcional dos indivíduos é o simples fato de terem nascido naquela região. A partir desse mito da nação, surgem características secundárias que permeiam o fascismo. A figura do Messias, o líder carismático capaz de restaurar a glória perdida, ganha destaque. Além disso, o belicismo e a desumanização de grupos minoritários, particularmente estrangeiros ou considerados “internos” – ou seja, grupos que fazem parte da região, mas não são assimilados pela cultura dominante – são uma consequência direta desse mito nacional.
A própria noção de nacionalismo é disputada e não é de simples entendimento. Prevalece a definição de Benedict Anderson (1993), alargada por Eric Hobsbawm (1990), do nacionalismo como uma “comunidade imaginada”, um amalgama identitário que mescla elementos como linguagem, região, cultura e religião. Identificação ancestral, mas intensificada e com novo significado após a Revolução Francesa. O nacionalismo, por extensão, é um sentimento de pertencimento e dedicação a esta comunidade imaginada, unindo os cidadãos em torno de valores e objetivos compartilhados.
Se antes até 1884 o Dicionário da Real Academia Espanhola definia nación como “o agregado de habitantes de uma província, de um país ou de um reino”, depois disso ampliou a definição para “um Estado ou corpo político que reconhece um centro supremo de governo comum” e “o território constituído por esse Estado e seus habitantes, considerados como um todo” (HOBSBAWM, 1990, p. 27). A maior complexidade sobre a noção de nação se reflete diretamente na centralidade dela para os fascismos.
Também não fica de fora o populismo. Já falamos do apelo às massas por meio de mecanismos como ressentimento e a construção do inimigo objetivo. Mas o fascismo necessita de uma base de massas. Esta é a sua maior diferença em relação ao autoritarismo tradicional: ele precisa que o poder se disperse de forma circular e penetre em todos os setores e segmentos sociais. Claro que se trata de um apoio paradoxal e localizado – receber apoio de parcela marginais da sociedade não o impede de ser elitista e hierarquizado, ao contrário.
No discurso, a massa é referida como mola propulsora à grandeza nacional. Na prática, os fascismos são hierarquizados e a massa não passa de um mecanismo para se legitimar. Para Paxton (2007, p. 76), “Os fascismos procuram em cada cultura nacional os temas mais capazes de mobilizar um movimento de massas de regeneração, unificação e pureza, dirigido contra o individualismo e constitucionalismo liberais e contra a luta de classes da esquerda”.
Por fim, trata-se de um movimento/regime/ideologia essencialmente autoritário. Embora se difira do autoritarismo por si por várias características, uma das diferenças fundamentais é que o fascismo surge da democracia para devorá-la por dentro. Não há, na história, fascismo que não tenha chegado ao poder pelas vias democráticas e legais, e isso envolve tanto a Alemanha de Hitler quanto a Itália de Mussolini. É apenas após conquistar o poder, que o movimento vai gradualmente minando o processo democrático e aparelhando as instituições, até que, enfim, dá um golpe.
Isso não significa afirmar que o fascismo é democrático, como uma leitura apressada pode assumir, mas apenas que tende a surgir em democracias de massa quando se aflora a sensação de crise e de antipolítica. No entanto, ele fere os princípios básicos de qualquer identidade democrática, como a possibilidade de dissenso, do conflito, e da divergência, pois, como lembra Umberto Eco (2018, p. 49), o consenso só pode existir no fascismo, autoritarismo ou totalitarismo.
Considerando que a democracia agonística se baseia no respeito pelo consenso superposto e, por conseguinte, na própria essência da democracia, o fascismo, inegavelmente, nunca pode ser considerado democrático. É antitético com a própria noção de democracia, dado a essencialidade que desloca para a desumanização de grupos específicos. O fascismo rejeita qualquer existência fora de sua seita, qualquer mínimo arranhão deve ser condenado e combatido.
Essas são apenas algumas das características mais proeminentes e discerníveis do que podemos entender como fascismo, baseado principalmente na interpretação de Paxton. É crucial ressaltar que, à medida que o fascismo se difunde, ele absorve idiossincrasias específicas. Da mesma forma, é importante destacar que esses conceitos existem de maneira independente e sua manifestação simultânea, mesmo quando ocorre em conformidade com mais de um conceito, não implica necessariamente a presença do fascismo. No entanto, à medida que mais características e conceitos dessa lista se apresentam, maiores são as chances de estarmos diante de um fenômeno fascista.
Mesmo que Anatomia do fascismo, de Paxton, tenha sido escrita há quase 20 anos, permanece essencial na compreensão deste fenômeno tão atual. Mais do que nunca, precisamos chamar e classificar o bacilo da extrema direita por seu nome verdadeiro: fascismo.
*Sergio Schargel é professor de ciência política na Universidade Federal de São João del Rei.
Referências
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
ECO, Umberto. O fascismo eterno. Rio de Janeiro: Record, 2018.
GRIFFIN, Roger. The nature of fascism. Abingdon: Routledge, 2015.
HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.MUSSOLINI, Benito. Mussolini as revealed in is political speeches. 2020. Disponível em: https://www.gutenberg.org/files/62754/62754-h/62754-h.htm#Page_xxi.
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