Leonardo da Vinci

Leonardo da Vinci, O retrato de um homem de giz vermelho, (1512) | Biblioteca Reale, Turin (Itália)
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Por OSCAR XAVIER*

Da Vinci estava inserido em um contexto sócio-histórico com dadas circunstâncias que contribuíram para o surgimento do renomado artista/ pensador que conhecemos hoje

Falar do Renascimento e não falar de Leonardo da Vinci seria um erro discrepante. Talvez esse artista seja o que melhor sintetiza a maneira como funcionava a concepção de mundo daquele período em que o arquétipo de ser humano era ser multifacetado.

Como sabemos, o trabalho é a categoria fundante do ser social, e Leonardo da Vinci exercendo o papel de pintor, escultor, engenheiro, arquiteto, cientista, dentre outras atividades – todas elas surgidas do fato de Da Vinci ser não apenas um exímio observador da natureza, mas também um modificador – nos mostra como as condições materiais se desenvolveram na transição feudalismo-capitalismo, fazendo com que se ampliassem as potencialidades do ser humano. Não se pode negar o papel revolucionário da arte se ela for utilizada de tal maneira a romper com o velho mundo.

A arte renascentista agiu como uma ferramenta de utilidade inimaginável para a burguesia revolucionária e sua concepção de mundo, criando a ideia do gênio, do indivíduo, do ser humano desvinculado das vontades divinas e dos “representantes de Deus” na terra. Reproduzir o movimento da água em um quadro, dissecar animais, saber como funciona a mecânica de ferramentas, a lista é imensa, o que nos faz refletir acerca do papel do ser humano na natureza, pois não foi apenas observando a natureza que saímos da pré-história e chegamos a uma estrutura social complexa, foi observando-a e transformando-a.

A modificação de nossa realidade material é um processo dialético onde nossa consciência é o reflexo da nossa realidade material e social, mas não de forma cristalizada, trata-se de um reflexo que, posteriormente, com surgimento contínuo de novas necessidades humanas, surgem novas formas de se modificar a realidade através do trabalho – e com essas novas formas objetivas oriundas do trabalho, novas necessidades surgem bem como novos elementos conscientes, e assim sucessivamente. É de um reducionismo absurdo crer que apenas o mundo material influencia o campo das ideias de maneira engessada. Afirmo aqui que nossa consciência é secundária em relação à realidade circundante, porém sem excluir o fato de que a consciência possui um importante papel de mutabilidade na realidade circundante, do contrário estaríamos negando o próprio materialismo dialético no curso da história.

O nível de exatidão de nossa consciência advém também do progresso técnico que as relações sociais geraram. O desenvolvimento de ferramentas que auxiliaram no ramo da ótica certamente contribuiu com o aperfeiçoamento de determinadas manifestações artísticas. Dito isso, é válido explanar as enormes contribuições fornecidas pelos pensadores do islamismo no período medieval que foram importantíssimas quando estas se espalharam pela Europa renascentista, desde o hispano-berbere Abbas ibn Firnas (809-887) com suas pedras polidas que foram precursoras dos óculos modernos, até o polímata iraquiano Ibn Al-Haitham (965-1040) também conhecido com Alhazém, que demonstrou a dinâmica de funcionamento do olho humano. Estes, dentre outros tantos estudiosos, desenvolveram enormemente o alcance desse sentido que nos é tão importante não só no ramo artístico, mas no ramo do conhecimento como um todo. O avanço técnico contribuiu e continua a contribuir para a ampliação dos nossos órgãos dos sentidos.

Através do trabalho, constrói-se elementos conscientes e a possibilidades de teorizar acerca da totalidade circundante. O próprio Lênin afirmara que “a teoria sem a prática de nada vale, a prática sem a teoria é cega”, (obviamente que Lênin e Da Vinci pertencem a diferentes campos, mas o raciocínio é válido), e foi o que Leonardo da Vinci fez, buscou teorizar tudo aquilo que absorvera ao observar a natureza sob uma perspectiva científica, uma pena que apesar das condições materiais daquele período serem mais desenvolvidas do que as condições no período da alta idade média, ainda não haviam se desenvolvido o suficiente para que um lote de teorias de Da Vinci fossem postas em prática.

Assim como qualquer tipo de produção, a arte também necessita de um dado desenvolvimento técnico para que seja realizada harmonicamente. Vejamos o que diz L. A. Tckeskiss: “As relações entre o lado material da arte e a técnica são evidentes: tomando, por exemplo, a música, notamos que somente pode existir e se desenvolver sua riqueza e múltiplas formas com a existência e evolução da técnica (instrumentos), porque para a música são necessários instrumentos musicais; isto quer dizer, em outras palavras, que a própria arte exige também certa técnica. […] Podemos, portanto, estabelecer que a arte, refletindo a vida, as aspirações e as ideias de certa classe, tem sua existência completamente ligada a técnica e em sua forma e conteúdo depende do desenvolvimento das relações sociais e deste modo também da evolução das forças produtivas. Entre a arte e as forças produtivas é necessário passar por uma gradação completa de várias fases: forças produtivas, relações de produção, relações sociais, manifestações psicológicas e sua expressão harmônica então, chegaremos à arte”.¹

Da Vinci pondo em prática suas teorias se defronta com uma porção de equívocos e sabemos disso hoje pelo simples fato de já termos posto em prática muitos de seus planos, como voar ou mergulhar em águas profundas. Dito isso, os rascunhos de Leonardo da Vinci possuem algumas estruturas técnicas obsoletas se analisarmos através de uma perspectiva de um indivíduo do ramo da engenharia do século XXI. E que fique bem claro que não tento desmerecer os trabalhos teóricos de Leonardo da Vinci, os quais possuem contribuições riquíssimas, afinal são as teorias que nos dão um norte de como agir na prática. O que venho tentando sustentar é que as teorias jamais estarão livres de equívocos técnicos, os quais hão de ser solucionados através da prática.

Como ele mesmo afirmava: “Os que se encantam com a prática sem a ciência são como os timoneiros que entram no navio sem timão nem bússola, nunca tendo certeza do seu destino” – assim como dizia Lênin: “A prática humana demonstra a exatidão da teoria materialista do conhecimento, diziam Marx e Engels, qualificando de ‘escolástica’ e de ‘subterfúgios filosóficos’ as tentativas feitas para resolver a questão gnosiológica fundamental, sem recorrer à prática”.²

Homem Vitruviano

Estudo sobre anatomia de Leonardo da Vinci

Leonardo da Vinci era obcecado pelo saber, um perfeccionista que nunca estava totalmente satisfeito com seus trabalhos, jamais em repouso, diferenciado inclusive na maneira de escrever, da direita para a esquerda era como Da Vinci o fazia. Suas pinturas causam um choque imediato até hoje e podem servir de ferramenta para explicar uma das leis fundamentais da dialética – tudo está simultaneamente interligado ao mesmo tempo emque há elementos com suas particularidades.

Friedrich Engels em sua obra Anti-Dühring afirma: “Para o metafísico, as coisas e seus retratos ideais, os conceitos, constituem objetos de investigação isolados, a serem analisados um após o outro e um sem o outro – objetos sólidos, petrificados, dados de uma vez para sempre. Ele pensa unicamente mediante antagonismos não mediados: ele diz sim, sim, não, não, e o que passar disso é do mal. Para ele, uma coisa existe ou não existe: uma coisa tampouco pode ser, simultaneamente, ela própria e outra coisa. Positivo e negativo se excluem de modo absoluto; causa e efeito igualmente se encontram num antagonismo petrificado. À primeira vista, esse modo de pensar nos parece extremamente plausível, porque é o do assim chamado senso comum. Só que o senso comum, um camarada tão respeitável quando se encontra no território caseiro das suas quatro paredes, passa a viver aventuras admiráveis assim que ousa adentrar o vasto mundo da pesquisa; e a concepção metafísica, por mais justificada e até necessária que seja em campos tão vastos, que se expandem de acordo com a natureza do objeto, cedo ou tarde topa com alguma barreira, além da qual ela se torna unilateral, tacanha e abstrata, perdendo-se em contradições insolúveis, porque diante das coisas individuais esquece o nexo entre elas, diante do ser dessas coisas esquece seu devir e fenecer diante do seu repouso esquece seu movimento, porque de tantas árvores não vê mato. […] todo ser orgânico, a cada instante, é o mesmo e não é o mesmo; a cada instante ele processa substâncias trazidas a ele de fora e excreta outras; a cada instante morrem células do seu corpo e novas se formam; depois de um período mais ou menos longo, todas as substâncias desse corpo foram totalmente renovadas, substituídas por outros átomos dessas substâncias, de tal forma que todo ser organizado é sempre o mesmo e, ainda assim, sempre diferente. Num exame mais preciso, descobrimos também que os dois polos de um antagonismo, como positivo e negativo, são tão inseparáveis um do outro quanto opostos um ao outro e que, apesar de todo o seu caráter antagônico, interpenetram-se reciprocamente; descobrimos igualmente que causa e efeito são representações que só tem validade como tais quando aplicadas ao caso individual em sua conexão universal, na causa causas e efeitos trocam continuamente sua posição, e o que agora e aqui é efeito depois e ali se transforma em causa, e vice-versa”.³

Em um período em que a arte se torna mercadoria (estimulada financeiramente pela nova classe em ascensão, a burguesia, como forma de adquirir prestígio e se autopromover), Leonardo da Vinci talvez tenha sido um dos primeiros a conseguir unificar organicamente todos os elementos em um quadro, tudo fruto do pragmatismo exacerbado que ele possuía, sempre questionando, sempre experimentando, sempre se desenvolvendo. Feitas a óleo, técnica desenvolvida nos países baixos, Leonardo da Vinci alcançou através de outra técnica, o esfumaçado, uma nova perspectiva dos contornos onde não havia mais linhas fixas determinando onde se encerra um elemento e onde se inicia outrem, uma nova forma impactante e acima de tudo enigmática se iniciava ali, onde a totalidade nos quadros estava finalmente assumindo um caráter genuinamente homogêneo, e consequentemente, tornando aquilo que fora produzido anteriormente obsoleto.

Na obra A última ceia (feita entre 1495 e 1498 no refeitório do Monastério Santa Maria delle Grazie, em Milão), Da Vinci atinge uma simetria inigualável, onde a linha do horizonte, ponto de vista, ponto de fuga e as linhas de fuga, estão harmonicamente convergindo para a figura central de Jesus Cristo.

Da Vinci usou e abusou dos seus riquíssimos conhecimentos matemáticos nutrindo suas obras com os princípios geométricos necessários para suscitar no observador uma canalização a imagem central da obra. A linguagem corporal era muito importante para Da Vinci, em A última ceia vemos o exato momento em que Jesus afirma que há um traidor entre eles, tão logo a postura dos apóstolos nos transmite uma conexão com a psique dos personagens dos mesmos, notamos o espanto, a indignação, e perplexidade, o medo, a angústia.

A técnica de esfumaçado permitiu também que cada observador possuísse uma interpretação distinta mais vigorosa a cerca de uma obra de arte, um exemplo claro disso seria sua obra mais conhecida, a Mona Lisa, onde é possível notar o espectro de humores não só por indivíduos diferentes, mas uma mesma pessoa observando a obra em diferentes momentos, notará uma alternância de humor.

Antes de finalizar torno a reforçar, de nada valeria se Leonardo da Vinci com sua coordenação motora cirúrgica nascesse em um local onde a sociedade não estivesse suficientemente desenvolvida para pôr em prática alguns de seus trabalhos. De nada valeriam seus “dotes” se tivesse nascido na Alta Idade Média por exemplo. A Europa feudal e sua concepção de mundo limitado às esferas teológico-feudais iria igualmente formar um Leonardo da Vinci limitado a essas esferas, pois esse era o contexto social do período. As obras artísticas carentes de escorço técnico e carregadas de simbolismos advindos do “mundo suprassensível” narrado pela Igreja Católica seriam também os atributos de um Da Vinci medieval.

Vale lembrar que sequer saberíamos o seu nome, afinal o conceito de gênio surgiu no período Renascentista, cabendo a ele nesse cenário hipotético o anonimato trivial da Idade Média. Não tento aqui desenvolver especulações idealistas, mas em outras palavras, ele estaria alicerçado na materialidade do período – moldado aos seus conteúdos e formas presentes nas artes do qual não caberiam suas complexas obras. Se de alguma forma nesse cenário hipotético ele ainda assim concebesse o mesmo lote de trabalhos técnicos que ele viria a dar origem somente no período renascentista, seria negligenciado pelas estruturas sociais devido ao fato de não estar seguindo o percurso ideológico da classe dominante do período.

Leonardo da Vinci estava inserido em um contexto sócio-histórico com dadas circunstâncias que contribuíram para o surgimento do renomado artista/pensador que conhecemos hoje, contexto esse que deve ser examinado em sua totalidade, cada esfera o qual compõe essa totalidade, cada elemento com suas particularidades e sua ação no todo.

Como Walter Benjamin afirmou: “Ao longo de grandes períodos históricos transforma-se todo o modo de existência das sociedades humanas, e com ele o seu modo de percepção. O modo como se organiza a percepção humana – o meio por que se realiza – não é apenas condicionado pela natureza, mas também pela história”.4 Dito isso podemos afirmar, Leonardo da Vinci não foi um homem a frente de seu tempo, é o contrário, foi acima de tudo um homem de seu tempo.

Oscar Xavier trabalha como assistente administrativo de empresas.

Notas


¹ L. A. Tckeskiss, O Materialismo Histórico em 14 lições.

² Vladimir Lênin, Materialismo e Empirocriticismo.

³ Friedrich Engels, Anti-Dühring.

4 Walter Benjamin, Estética e sociologia da arte.


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