Por REMY J. FONTANA*
Comentário sobre o livro de Pedro Port
“a liberdade mestre é filha da ventania \ não obstante ela é a alma da democracia” (Pedro Port)
A dança da grou pernalta de Pedro Port (Pedrinho) mesmo para quem já leu algo de suas poesias e poemas e que conhece seu estilo preciso e elaborado, que se vale de uma erudição clássica, ao se deparar com esta obra de sua maturidade tardia, que levou duas décadas para completar, encontra uma pletora de imagens estonteantes, é confrontado com uma densidade de palavras estranhas e referências enigmáticas que desafiam a compreensão mesmo de uma pessoa com razoável formação literária, conhecimento acadêmico e ilustração cultural.
Se fosse um escrito de um jovem poeta, de um escritor iniciante, poderíamos ver neste rebuscamento uma ostentosa pedanteria, mas tal não é o caso, pois cá estamos diante de alguém que já processou estas fúteis ambições, já digeriu seus clássicos, já os metabolizou em sua própria linguagem; sabe do que está falando, apurou seu próprio estilo, quer agora expressar-se com a naturalidade de quem domina seu ofício e o exerce com aplicada e constante paixão.
Pedrinho é de uma estirpe de poetas tal como sugerido pelo velho clichê, vive só e integralmente de e para poetar; é algo inepto para as demandas prosaicas da vida nua, crua, cruel e cotidiana. Nada respira além de versos, come pouco além de palavras, bebe alegorias, devaneia imagens e metáforas. Sua conversa é entremeada de seus versos já escritos ou em elaboração. Sua fé estética é luckacsiana, estreou poetando numa antologia em meados dos anos 1960 em Porto Alegre, prefaciada por Mário Quintana, viajou pelos mundos latino-americanos, morou um tempo em Portugal e, finalmente, aterrissou em Florianópolis nos anos 1970, pelas bandas praianas de Bom Abrigo, Sambaqui, Lagoa da Conceição e Campeche.
Seus temas, figuras de linguagem, conceitos e termos raros ou obscuros exploram as dores e alegrias, as aventuras e desventuras, o poder, a tirania, a democracia, as conquistas, a desolação e o desamparo das misérias humanas, pelo recurso de alegorias e mitologias.
Mesmo para um leitor como eu próprio, não muito afeito, nem exatamente assíduo ou familiarizado com a linguagem poética, nesta dança da grou pernalta corre o risco de entusiasmar-se com as inspiradas construções textuais, com seus achados surpreendentes, com suas imagens poderosas, com seu virtuosismo semântico, mesmo que tenha de dançar com um pé só.
Suas sentenças rimadas e ritmadas, quebradas ou truncadas e trincadas, encadeadas ou interrompidas, seguem por vezes pelo automatismo do correr da pena do autor, jorrando fluxos de uma consciência inquieta, por vezes atormentada, mas sempre arguta no que aponta, instigante no que sugere, e provocativa no que afirma ou questiona.
É uma intentona de palavras, uma guerrilha semântica, um caos de filigranas, uma ode à abundância de termos, sim, rebuscados, que giram, regurgitam, avançam, rompem, abrem ou fecham caminhos e passagens, aclaram sombras, embaralham figuras ou personagens em suas danças e rodopios, velozes ou saltitantes, pulantes ou pululantes num frenesi de movimentos no interior de labirintos, a beira dos abismos e “dos mares que ruminam para depois sossegar nas calmarias bovinas”.
Um leitor desavisado ou uma leitura superficial, no entanto, desatenta às inflexões da linguagem, das curvaturas do argumento, da instabilidade dos significados e de outros tantos requisitos a uma boa interpretação, pode sim, eventualmente, ter aqui uma experiência tormentosa.
De outra parte, os que aqui se debruçarem com atenção, mas não com tensão, antes com espírito relaxado, deixando-se envolver pela torrente de palavras e expressões, serem penetrados pela enxurrada de significantes, ênfases e entonações poéticas e imagéticas terão seu momento feliz, serão recompensados e compensados pelo mergulho fundo de onde emergirem, ofegantes.
Tal leitor atento e eventualmente aficionado pela escrita poética não deve se afligir porque aqui não lerá demagogia, nada há “de falas falsas loas fingidas”, é pura poesia, palavras justas, sentenças finas, verbo a dançar, curso a seguir, discurso a proferir. Para este leitor o risco é ser tocado por uma leve brisa encantatória.
A dança da grou pernalta é um poema épico, com inflexões dramáticas e líricas, que flui com ímpeto incansável pelas páginas do livro. Não há nele uma estória linear contada, nem simples é sua linguagem. Na linhagem dos longos poemas em prosa, não há partes ou capítulos, só uma torrente expressiva de palavras ditas/escritas e lidas de um só fôlego, que saltitam e dançam em torno de eventos, lendas, mitos, alegorias, personagens e situações.
É um convite para imersão na oceânica mitologia grega, onde há embates titânicos, tragédias homéricas, tiranias cruéis, dores de mães com corações lacerados, tarefas hercúleas, castigos exemplares, deuses olímpicos, oráculos que descortinam o porvir, musas inspiradoras, democracia na ágora das cidades-Estado.
Este pano de fundo é certamente um desafio à compreensão para um leitor médio não versado em mitologia[i] ou na arte poética, mas ao mesmo tempo é uma oportunidade para aproximar-se de um trabalho de qualidade literária, inspirado, elaborado, com achados estilísticos e narrativos de grande sutileza e expressividade.
Mas nem tudo é complexidade e dificuldades; o texto alterna passagens exigentes que demandam esforço interpretativo e mente arejada, receptiva, desarmada, longe dos clichês e de previsíveis ações de personagens e de seus esperados sentimentos e emoções, com outras claras e inteligíveis que remetem às várias dimensões da vida cotidiana, seja a nível individual, seja às que se dão em torno do poder, com suas tramas, intrigas, abusos e prepotência.
Essa contínua alternância de referências alegóricas com as da vida como ela é no âmbito real e existencial, evidencia-se quando do plano das danças da grou pernalta, em suas múltiplas representações, roupagens e encarnações somos transpostos para os domínios puramente humanos, nos quais podemos, por efeito de espelhamentos e similitudes, reconhecer eventos e personagens de nossa contemporaneidade.
Há, pois, neste texto poético trechos que podem nos impacientar, quando não exasperar que são, no entanto, compensados por uma expressividade inventiva, por construções verbais altamente sugestivas tanto dos estados da alma, quanto do estado das coisas do mundo. Um deleite, uma abertura para compreender as sutilezas da vida, suas inflexões, seus dramas, seus riscos, suas alegrias e plenitudes.
Falo aqui, então, de um texto primoroso, um tour de force literário, de uma erudição acachapante no universo de referências clássicas em que se move. Há que atravessá-lo com certa disposição, mas há para orientar-nos um fio condutor, uma sequência textual dançante, de uma dança que conduz e articula os movimentos da ave pernalta e de outros tantos personagens. Tudo e todos entram na dança, uma dança louca, em que graciosos movimentos de sutil leveza sucedem outros de instável e precário equilíbrio. Dançam as legendas, os mitos e as figuras alegóricas em seus etéreos espaços fantásticos; dançam outros no chão duro da realidade, pisando na materialidade de suas existências prosaicas.
Desta forma, se não ficarmos contidos, intimidados ou trancados nos labirintos mitológicos que permeiam o texto, a compreensão se faz pela totalidade da escrita, pela integralidade do texto que vai tecendo a trama da vida, engatando os eventos, as ações, as artimanhas, os ardis de que é feita a vida, a sociedade e o poder.
Veja-se a passagem em que o autor denuncia a encenação dos que dizem atuar em nome do povo, a farsa grotesca de seus desmandos, seus demagógicos arrivismos falastrões, gente que garante seu poder no berro, que se nutre das crendices e ingenuidades dos que os supõem deuses salvadores, mas que nas tratativas humanas são apenas os que oprimem o povo. Ressonâncias e remissões de um período escabroso recém superado em nosso país, governado com rudeza por um idiota canastrão, “cuja débil atuação o garrote da tirania desglosava e pervertia por sua vez a democracia”.
Um país, diga-se, em que ainda não prosperou a equivalência civil entre seus indivíduos reais, onde desde seus inícios são restritos direitos e liberdades, quando, e ainda, imperava e continua a imperar a sanha sanguinária e espoliativa do predador, que segue alimentando sua usurpação com os “butins de seus malefícios”.
Ou então atente-se para uma passagem que nos sugere a origem e a condição de tantos:
éramos sombras senhora
não tínhamos dinheiro nem direitos
aliás não tínhamos eira nem beira
éramos sombras da história enxames ó senhora
de sombras errantes hordas sem nome
de origens incertas
fomos trazidos pelos ventos
quentes que sopram das ilhas
orientais mais remotas
para revolver a terra jônica
nela morrer como sombras platônicas
mas nós sombras ainda copulamos
com todo respeito senhora mãe
de sombras populosas povoamos
o chão que era da história
os eitos que não nos pertenciam
segundo o sagrado direito
que netas gerações de terratenentes
sempre só para si arrogavam
sempre em detrimento
do umbroso movimento
da massa sombria
que viam adensar-se que viam dançar
na cona agigantada da fêmea
que sombras nunca deixou de parir.[ii]
Tantas vezes invocado ou inspirado pelos Cantos de Maldoror, talvez o Pedrinho pudesse abrir seu texto com uma epígrafe retirada da obra do autor francês, Comte de Lautréamont (Isidore Lucien Ducasse): “Não é certo que todos leiam as páginas que se seguem; apenas alguns serão capazes de saborear este fruto amargo impunemente. Consequentemente, encolhendo a alma, vire-se e volte antes de penetrar ainda mais em terras tão desconhecidas e perigosas”.
Contra os espíritos já gastos e os cérebros sem memória, nas imagens de Pedro Port, encontram-se aí uma pauta de intervenção para estes tempos tão rasos, tão violentos e desguarnecidos de dignidade e humanidade.
Qual Palamedes, príncipe na mitologia grega associado à invenção do alfabeto, que fez as palavras dançarem e as letras cantarem, Pedrinho nos põe na dança das letras com que grafa seus versos, nos faz rodopiar pelos salões de sua semântica, embalados na musicalidade de sua eloquência poética.
Nos convoca para a soberania do homem, nunca deixando “que a natureza simplesmente brutalizasse-lhe a força ingente e incansável que o assistiu nas andanças fabulosas e vitais de suas aventuranças…, vinculando-o à causa inquebrantável ainda hoje todavia não entendida da democracia…”.
Do emaranhado percurso que atravessamos fica-nos, entre tantos legados deste poema, uma remissão à herança da democracia, e de sua pedagogia, pois é de intrigar como e por que consentimos que um politiqueiro “um charlatão ominoso lançasse mórbido augúrio sobre nossa jovem democracia, não é este o assunto que ora tratamos de pôr em dia? Então vamos a ele, porém sem metafísica…”.
Tal é a dança da grou pernalta, “a dança das danças, é a dança mais louca, é a dança mais loquaz, louca dança, louca de dança, … celerado cordão de folias de danças sem fim”.
*Remy J. Fontana, sociólogo, é professor aposentado da UFSC. Autor, entre outros livros, de Da esplêndida amargura à esperança militante – ensaios políticos, culturais e ocasionais (Ed. Insular). [https://amzn.to/3O42FaK]
Referência
Pedro Port. A dança da grou pernalta. Florianópolis, Editora Insular, 2023, 196 págs. [https://amzn.to/48WFVkY]
Notas
[i] Não seria descabido, ousaria sugerir, que um glossário das referências mitológicas fosse incluído ao final deste poema.
[ii] p.124, 125.
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