Gênero, neoconservadorismo e democracia

Imagem: Mariana Tassinari / Jornal de Resenhas
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Por FLÁVIA BIROLI, JUAN MARCO VAGGIONE & MARIA DAS DORES CAMPOS MACHADO*

Leia um trecho do livro recém-lançado

A reação à agenda da igualdade de gênero e da diversidade sexual é um fenômeno com dimensões globais, mas é preciso compreender seus padrões regionais. Neste livro, defendemos a tese de que está em curso na América Latina uma atualização do conservadorismo religioso, fenômeno que se desenvolve em uma temporalidade marcada pelo avanço dos direitos reprodutivos e sexuais, mas também pelas mudanças na correlação de forças no campo religioso, com o declínio do catolicismo e a expansão do pentecostalismo por toda a região.

Trata-se, portanto, de uma nova configuração do conservadorismo, em que atores e grupos religiosos reagem a transformações societárias e lançam mão de alianças políticas com segmentos não religiosos para garantir a hegemonia moral em sociedades distintas.

A nova configuração do ativismo conservador, o neoconservadorismo, se sofisticou ao longo dos últimos anos, tanto nos discursos quanto nas estratégias. Ainda que as instituições religiosas e suas hierarquias continuem sendo atores relevantes, o neoconservadorismo também é composto por organizações da sociedade civil que realizam campanhas a favor da vida ou da família e por representantes de diferentes partidos políticos, os quais priorizam a recusa aos direitos sexuais e reprodutivos como parte de suas agendas públicas.

Nessa disputa de moralidades, destacam-se, de um lado, atores religiosos conservadores e, de outro, os movimentos feministas e LGBTQI. O que foi chamado neste livro de “politização reativa” e, de mais especificamente, “juridificação reativa” explicita o modo como essa disputa tem se configurado. A politização do religioso também se reconfigura, com cristãos maximizando o uso dos canais democráticos de participação para ampliar sua representação em espaços de discussão e deliberação das políticas sexuais, de gênero e da família. Assim, a política reativa desses atores religiosos mobiliza milhares de fiéis e tem grande impacto na formulação e aprovação de leis, na implantação de políticas públicas e nos processos eleitorais de vários países.

Apesar de ter se tornado possível em contextos democráticos nos quais a pluralidade política se ampliou, esse conservadorismo atualizado tem conexões significativas com os padrões atuais do autoritarismo e os fenômenos reconhecidos como processos de desdemocratização ou de erosão da democracia, que se apresentam em países da região e globalmente em graus diferentes.

De uma perspectiva, abre-se toda uma agenda de investigação sobre a instrumentalização do combate à pauta da igualdade de gênero e da diversidade sexual por movimentos, líderes e governos de direita e de extrema direita. De outra, colocam-se como problemas fundamentais, discutidos neste livro, o antipluralismo dos movimentos contra o gênero e o modo como a defesa da “família”, nos termos em que é feita, legitima violências e restrições de direitos, assim como processos de privatização e erosão da dimensão coletiva da política.

Políticas ancoradas na defesa de “maiorias” e de supostas tradições nacionais ou religiosas promovem retrocessos que diminuem a possibilidade de participação e influência de grupos que atuam em defesa de direitos humanos, sobretudo nas pautas feministas e LGBTQI. Podem ocorrer a estigmatização, o silenciamento e, no limite, a criminalização dos movimentos feministas e LGBTQI, assim como da produção de conhecimento que explicita desigualdades e violências de gênero. Enquanto isso, intensifica-se a participação dos atores religiosos na construção de políticas públicas. Assim, também para a análise dos processos de transformação das democracias e de autocratização dos regimes, é crucial compreender as alianças entre diferentes atores, os padrões de atuação dos atores religiosos conservadores protagonistas nos movimentos que analisamos e seus efeitos sobre agendas de direitos que dependem da desnaturalização do caráter religioso das normas seculares.

Análises das mobilizações antigênero em diferentes sociedades sugerem alianças entre distintos segmentos religiosos, com divisão de tarefas entre líderes católicos e evangélicos. Um estudo recente de Franklin Gil Hernandez mostra que, enquanto os primeiros foram responsáveis pela difusão da narrativa da “ideologia de gênero” na Colômbia, os segundos se destacaram pela grande capacidade de mobilização dos fiéis em redes sociais, ruas e casas legislativas para combater as políticas sexuais e de gênero no ano de 2016.

No Brasil, análises da atuação parlamentar de evangélicos e católicos carismáticos no Congresso Nacional nas duas primeiras décadas do século XXI chamam atenção para o fato de que tais atores políticos se revezam no desenvolvimento de atividades complementares, como a redação e apresentação de projetos de leis e a relatoria das propostas nas comissões permanentes e temporárias da Câmara e do Senado Federal, quando os temas são os direitos sexuais e reprodutivos.

Na mesma direção, Denise Carreira identifica a distribuição de tarefas entre os atores cristãos no combate à inserção da perspectiva de gênero na política educacional, com os atores evangélicos assumindo mais prontamente a ofensiva no Plano Nacional de Educação (PNE), em âmbito federal, e os católicos se destacando nos embates em torno dos planos regionais e municipais. Dados levantados por Sonia Corrêa e Isabela Kalil demonstram, ainda, que o número de publicações evangélicas sobre “ideologia de gênero” cresceu muito depois de 2014, ano da votação do PNE, e hoje é superior aos escritos de intelectuais católicos na sociedade brasileira. São fenômenos que sugerem o compartilhamento progressivo, por católicos e evangélicos, do discurso neoconservador em combate à agenda da igualdade de gênero e da diversidade sexual no país, assim como uma atuação conjunta (ainda que nem sempre coordenada) em sua difusão.

Argumentamos que o crescimento expressivo das igrejas pentecostais na América Latina ampliou a participação de atores individuais com identidade evangélica na política partidária e nas disputas eleitorais de vários países, criando as condições para uma aliança conjuntural desse segmento religioso com setores católicos conservadores. Trata-se de um processo complexo, envolvendo interesses diferenciados – por um lado, o desejo de maior projeção política dos setores evangélicos; por outro, as pretensões do integralismo de se fortalecer frente às versões mais liberais do catolicismo –, mas que tem impactado demasiadamente o debate público e as instituições da região.

Nesse sentido, grupos evangélicos não só vêm incorporando as formulações discursivas de intelectuais católicos com posições tradicionalistas, como também vêm adotando estratégias de intervenção na esfera pública que as investigações científicas associavam ao universo católico (criação de organizações não governamentais e redes transnacionais, realização de eventos internacionais “pró-vida” e “pró-família”, adoção de linguagem e estratégias jurídicas para a resolução de conflitos etc.).

É comum observar a colaboração de atores conservadores católicos e evangélicos na recusa a projetos vinculados à liberalização do aborto, ao reconhecimento de direitos para casais do mesmo sexo ou à implementação da educação sexual nas escolas, entre outros temas. Esses atores, outrora em tensão devido aos privilégios da Igreja católica, articulam-se em diversas alianças e colaborações conjuntas, evidenciando importantes transformações no campo religioso. Sustentadas pela obsessão comum com a moral sexual, essas alianças terão estabilidade nos próximos anos, caso as distintas ênfases e diferenças entre os atores se intensifiquem por questões morais ou políticas? É algo a ser pensado também no que diz respeito à aliança com atores seculares, como grupos e líderes de direita e de extrema direita, para quem hoje parece ser conveniente instrumentalizar a agenda “pró-família”.

Deve-se destacar, contudo, que, para além das influências do meio católico, os evangélicos da região, nas últimas décadas, estreitaram muito os laços com a direita cristã, a qual integra a base de apoio de Donald Trump, eleito presidente dos Estados Unidos em 2016 e candidato à reeleição em 2020, no momento em que finalizamos este livro.

A agenda neoconservadora dos evangélicos latino-americanos é construída e implantada a partir da circulação de valores, de atores e de estratégias de organização e de mobilização oriundas tanto do Norte global (Estados Unidos e Europa) quanto das trocas entre atores religiosos da própria América Latina. Da Teologia da Prosperidade às investidas do Capitol Ministries com o objetivo de influenciar a política regional, passando por iniciativas de contenção sexual dos jovens cristãos, como o movimento Eu Escolhi Esperar, são muitos e diferenciados os bens imateriais e materiais que circulam entre os evangélicos estadunidenses e os latino-americanos.

Se, por ora, a aliança entre setores evangélicos em crescimento e católicos conservadores parece render frutos para os dois lados, a médio e longo prazo, a tendência é que as tensões aumentem em virtude da pretensão de segmentos evangélicos de assumir a hegemonia cultural na região. A multiplicação das universidades evangélicas, os investimentos crescentes das igrejas em redes de comunicação – eletrônica, impressa e digital –, assim como as disputas em torno das associações que regulam o exercício profissional em distintos campos – direito, psicologia, serviço social, medicina, bioética etc. –, que já ocorrem em diferentes sociedades, podem gerar estremecimentos nas relações com os católicos, que por séculos conseguiram influenciar as principais instituições e a cultura da região. Se a renaturalização da moral religiosa como ética pública interessa a diferentes grupos religiosos, resta saber como se manifestarão suas diferenças em disputas de poder bastante concretas, que envolvam acesso a recursos econômicos e simbólicos, assim como espaço político-institucional.

A despeito do caráter patriarcal e sexista das campanhas antigênero, atualizando as iniquidades sociais na família e nas sociedades de uma forma mais ampla contra a crítica e a agenda de justiça promovidas pelos movimentos feministas e LGBTQI, as iniciativas dos segmentos cristãos neoconservadores da América Latina mobilizam mulheres de diferentes grupos confessionais. Algumas são pastoras ou políticas que desenvolveram a habilidade da oratória e a capacidade de liderança nos eventos religiosos, mas a maioria das mulheres cristãs que atende ao chamado dos religiosos neoconservadores/das religiosas neoconservadoras para a cruzada contra o gênero engaja-se nos movimentos levada pela emoção. Vivendo em situação de grande marginalização social e impotência, essas mulheres acreditam lutar pela preservação da família e de seus filhos.

A análise das mobilizações nas sociedades colombiana e brasileira, bem como da participação dos religiosos neoconservadores na Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) de 2019, revela que os segmentos evangélicos vêm adotando a estratégia dos setores católicos de abrir espaço para as mulheres cristãs – pastoras, missionárias, políticas etc. – na reação política às conquistas dos movimentos feministas e pela diversidade sexual na região. O ativismo neoconservador dessas cristãs tem uma dimensão simbólica importante no embate público com as feministas e os defensores da laicidade do Estado.

Afinal, são mulheres que assumem a contestação das teses emancipacionistas de outras mulheres – caso do direito de decidir sobre o próprio corpo, mas também das hierarquias “naturais” entre homens e mulheres e seu impacto na definição da autoridade na família e dos papéis desempenhados por uns e outras nas esferas privada e pública – e reafirmam a importância da religião na sociedade contemporânea. Elas podem ter um papel importante, também, na socialização de meninas e meninos, em um momento no qual a disputa de moralidades se torna mais aguda. Dito de outra forma, o engajamento dessas mulheres na cruzada moral dos cristãos conservadores explicita as diferenças ideológicas dentro do segmento feminino, ampliando os desafios daquelas e daqueles que lutam pela equidade de gênero.

Faz-se necessária, assim, uma profunda reflexão dos movimentos feministas e pela diversidade sexual sobre a importância da religiosidade na vida social, um esforço na construção de pontes cognitivas com os segmentos religiosos, assim como o planejamento de linhas de ação junto a grupos de jovens cristãs/cristãos.

A existência de coletivos com propostas inovadoras nos campos teológico e político – Rede de Teólogas, Pastoras, Ativistas e Líderes Cristãs; Feministas Cristãs; Frente Evangélica pelo Estado de Direito; Evangélicas pela Igualdade de Gênero etc. – indica que essa via de atuação pode ser fecunda e que as vozes femininas dissonantes no meio cristão precisam tornar-se visíveis para os demais setores da sociedade.

As disputas se dão em muitas arenas; neste livro, mostramos a relevância do Judiciário e do direito mais amplamente. A agenda de direitos reprodutivos e sexuais, em seus avanços na segunda metade do século XX, leva a um novo limiar a reivindicação de laicidade do Estado moderno, assim como a separação entre o direito e as influências religiosas. Como dito na introdução, explicita o religioso enquanto tal – isto é, em seus conflitos com a política – e coloca a agenda de direitos humanos no centro dos embates.

O neoconservadorismo é, em grande medida, um movimento reativo às transformações na ética e na legalidade sexual, à (des)ordem sexual que se inscreve no e a partir do direito. Um de seus principais objetivos é recristianizar a sociedade por meio da mobilização do direito. Desse modo, os atores religiosos conservadores buscam restaurar uma ordem moral que consideram em crise e, para tanto, o campo jurídico e as estratégias legais ocupam um lugar privilegiado. Os diversos atores que compõem o neoconservadorismo confluem, assim, em ações visando incidir sobre o papel do direito na definição de um ordenamento hierárquico do gênero e da sexualidade.

As relações entre Estado e sociedade civil e as redes em que a participação política se efetiva têm se transformado. Nas últimas décadas, sobretudo a partir do processo de democratização em vários países da América Latina, movimentos feministas e LGBTQI foram atores na construção de leis e políticas públicas na região.

Participaram da reconfiguração do sistema internacional de direitos humanos, que passaria a ser referenciado pela igualdade de gênero e pelo respeito à diversidade sexual, e foram ativos nas disputas nos espaços nacionais. Em alguns países, encontraram oportunidades para atuar em espaços renovados de participação institucionalizada, com a vitória de governantes de centro- -esquerda – embora tenha havido limites à promoção de suas agendas, sobretudo no que toca os direitos sexuais e reprodutivos, como foi discutido neste livro.

Ao mesmo tempo – lembrando que é necessário levar em conta diferenças entre os países –, nesse mesmo contexto, os atores neoconservadores ampliaram sua presença em espaços governamentais – ministérios e secretarias de Estado – e em espaços de participação institucionalizados – conselhos de políticas públicas, definição e execução de políticas educacionais, iniciativas e espaços de combate às drogas e recuperação de dependentes químicos, cuidado psiquiátrico, entre outros.

Por isso, chamamos atenção para o fato de que essa disputa de moralidades se estabelece em contextos democráticos, nos quais ela é instrumentalizada politicamente, de modo que são utilizados canais de participação e de representação política, assim como ampliadas as possibilidades de manifestação e a pluralidade do debate público. Isso não significa, é claro, que os diferentes atores e movimentos atuem pelo fortalecimento da democracia. Pelo contrário, o que observamos aqui é justamente a tensão entre agendas referenciadas por éticas pluralistas e outras balizadas pelo antipluralismo.

É especialmente importante considerar a circulação dos atores e seu acesso aos espaços e recursos estatais. Com a redemocratização na região, a partir dos anos 1980, houve maior permeabilidade estatal aos feminismos e movimentos LGBTQI. A reação neoconservadora, deslocada com maior intensidade para os espaços estatais pela chegada de governos de direita e de extrema direita ao poder (em países como Bolívia, Brasil, Chile e Colômbia, entre outros), pelo alinhamento religioso de líderes e governos com origem de centro-esquerda (como no México e na Nicarágua) e pela eleição de representantes neoconservadores em níveis subnacionais, torna as barreiras mais espessas aos atores que promoveram, historicamente, agendas emancipatórias. A permeabilidade estatal agora se amplia em outra direção, com maior presença de atores da sociedade civil combatendo normas e políticas para a igualdade de gênero e nos espaços governamentais.

A dimensão propriamente eleitoral é, assim, relevante para compreender os padrões de participação e a circulação dos atores em âmbito estatal. Como discutido neste livro, os novos padrões de politização da religião envolvem a participação mais assertiva dos atores conservadores religiosos nas disputas eleitorais. Embora a hierarquia católica tenha proximidade histórica com partidos políticos e governantes na América Latina, o apelo evangélico ao voto nos “irmãos” e a criação de partidos com forte conexão com igrejas neopentecostais, com capilaridade nacional e regional, têm sido efetivos.

Podemos considerar, ainda, como uma hipótese a ser confirmada em contextos particulares, que, nesse processo, a agenda antigênero tem permitido diferenciar esses atores de outros segmentos da direita. Permite, assim, um apelo a segmentos específicos do eleitorado. A maior presença de atores religiosos conservadores eleitos com essa identidade também amplia potencialmente os retrocessos a partir dos legislativos, nacionais e locais, e mesmo do Executivo, a depender de como se constituem as alianças de suporte ao governo em diferentes países.

Ao mesmo tempo, como mostramos, a dimensão popular da política neoconservadora vai além de processos eleitorais e do espaço institucional. Em recursos de consulta pública, em que se destacam abaixo-assinados, campanhas on-line e mesmo referendos, como o realizado na Colômbia sobre o acordo de paz entre o governo do país e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), a capacidade de mobilização por meio da agenda antigênero se evidencia.

Nos protestos de rua, em diferentes cidades e países da região, as mensagens e enquadramentos se repetem: existe uma ameaça; resta aos pais proteger seus filhos e as tradições caras ao povo cristão. É preciso desconfiar das elites “modernas” e “globalizadas”, das organizações internacionais e da própria democracia, valorizando uma espécie de senso comum baseado em hierarquias vistas como naturais.

Por isso, parece-nos especialmente importante compreender a reconfiguração de leis e políticas específicas, mas também a reorganização da relação entre Estado e sociedade, em um processo no qual o neoconservadorismo intensifica e transforma seu modo de participação no jogo político. Uma das questões centrais diz respeito à alocação de responsabilidades; outra, ao modo como a moral é politizada. O apelo à família é fundamental nos dois casos.

No primeiro, trata-se de situar a família como núcleo para a reprodução social das hierarquias, apresentadas como naturais, e das tradições cristãs, apresentadas como majoritárias. A família é, destarte, um dispositivo de controle. Não é qualquer família, entretanto, que é assim posicionada. A heteronormatividade, a função reprodutiva do casamento e a complementaridade entre os sexos se fundem nessa perspectiva – e permitem diferenciar os laços naturais (legítimos) dos não naturais (desviantes em relação à natureza; portanto, se não à lei corrente, desviantes em relação à moralidade e à “lei natural”).

No segundo caso, o dos novos padrões de politização da moral, a “defesa da família” se transforma em um dispositivo para aprofundar as fronteiras entre os que mereceriam e os que não mereceriam proteção. Isso permite justificar posições antipluralistas e anti-humanistas, assim como o rechaço a agendas de justiça social.

Como discutimos antes, em nome da família é possível colocar em xeque direitos individuais, como a liberdade de crítica às hierarquias, à violência e ao preconceito, algo que é particularmente claro no que concerne aos conteúdos educacionais e, mais especificamente, à educação sexual. É possível, ainda, justificar o desrespeito à integridade física e psíquica dos indivíduos, como no caso da equiparação da homofobia à heterofobia e em argumentos que colocam em dúvida as pesquisas sobre violência doméstica e sexual contra as mulheres alegando que a violência existe e seria enviesado tratá-la enquanto fenômeno de gênero.

Em um sentido contrário à pluralidade e à democracia, feminismos e movimentos LGBTQI são transformados em inimigos. Afinal, se eles colocam em risco “a família” e as crianças, como considerá-los adversários políticos legítimos? Mentiras e estigmatização podem ser, assim, estratégias políticas. Justificam, ao mesmo tempo, a perseguição política, a violência difusa e a recusa às agendas de justiça desses movimentos. Para além das restrições aos direitos individuais em nome da família, o neoconservadorismo contribui para estabelecer delimitações mais rígidas para o conflito político legítimo e para naturalizar as desigualdades.

Esse ponto, o das desigualdades normalizadas, é um dos elos entre neoconservadorismo e neoliberalismo discutidos no livro. Ambos convergem, como vimos, na definição da família enquanto rede de apoio necessário aos indivíduos, à medida que a dimensão política coletiva se esgarça e os aparatos estatais de proteção são reduzidos ou desmontados. Como é impossível suspender os dilemas da vulnerabilidade humana, o neoliberalismo e o individualismo exacerbado convivem com o apelo ao suporte familiar e com as pressões para que as mulheres assumam seu papel tradicional nas relações de cuidado – ainda que o façam em meio a novos estímulos para fortalecer a capacidade econômica da família, comuns entre as igrejas neopentecostais latino-americanas.

A família funcional que o neoliberalismo requer não precisa ser justa ou democrática; ela precisa desempenhar um papel em sociedades nas quais a insegurança é histórica, adquirindo novos contornos com o desmonte neoliberal. Há matizes, no entanto, e eles são, em si, uma agenda promissora de pesquisa.

Recentemente, a Igreja católica, sob a chefia de Jorge Bergoglio, o papa Francisco, tem se manifestado criticamente em relação ao neoliberalismo e às desigualdades. As denominações pentecostais não são homogêneas, mas pode-se localizar nesse campo uma aproximação maior a concepções de mérito centradas no indivíduo, com menor ou maior contato explícito com a Teologia da Prosperidade. Apesar disso, muitas dessas igrejas funcionam como suporte para as comunidades mais vulneráveis e oferecem apoio e mesmo serviços em tempos de restrição do caráter público do Estado – o que pode acontecer de modo complementar a esse desmonte, mas precisa, ainda assim, ser notado e compreendido por configurar redes alternativas de solidariedade.

Entendemos, apesar da complexidade e dos matizes mencionados, que o elo entre o familismo e o capitalismo neoliberal vai além das posições abertamente sustentadas por igrejas em relação às redes de suporte e às desigualdades econômicas.

A aposta na família como núcleo de segurança, diante da vulnerabilidade e da precarização, faz com que neoliberalismo e neoconservadorismo operem de maneira convergente, justamente quando os conflitos relacionados às desigualdades de gênero se acirram, a crise das relações de cuidado se torna mais explícita e a retirada de garantias sociais, assim como as medidas para assegurar restrições ao orçamento público, é levada a novos patamares.

Um exemplo extremo é a Emenda Constitucional n. 95, que, em dezembro de 2016, alterou a Constituição brasileira para estabelecer um teto para os gastos públicos por vinte anos. Com isso, incidiu no caráter distributivo da Constituição do país, promulgada em 1988, e restringiu as decisões políticas que viriam pela frente. A restrição dos recursos não diminuiu a necessidade de cuidado por parte de crianças e idosos, de pessoas quando adoecem ou daquelas que têm necessidades especiais.

Do mesmo modo, com a “flexibilização” das relações de trabalho, as inseguranças ampliadas quanto à rotina cotidiana e ao sustento tornam ainda maior a necessidade de redes de suporte privado, já que ele não advém, nesse momento, de políticas e leis com viés coletivo e solidário.

A moralização das inseguranças é, assim, uma chave para o neoconservadorismo como política. O apelo a inseguranças reais se faz no interior de um enquadramento no qual o suporte possível é o da família nuclear, heterossexual, responsável pelos seus. As fragilidades da ordem familiar não seriam da ordem da economia política (relacionadas à precarização das relações de trabalho ou ao esgarçamento das formas coletivas de apoio).

Não seriam, também, da ordem das transformações sociais de gênero, sedimentadas ao longo de décadas e enraizadas em uma série de mudanças – técnico-científicas, culturais, políticas, jurídicas etc. O problema, nas narrativas neoconservadoras, seria de ordem moral. Melhor dizendo, o desvio e a captura do tradicionalismo levariam à insegurança, à falta de referências, ao caos.

Diante de transformações e inseguranças reais, a politização da religião e, especificamente, da moral tradicional tem se transformado em instrumento nas disputas ideológicas e, de modo mais específico, nas eleitorais. A direita e a extrema direita partidárias têm encontrado nessa instrumentalização oportunidades políticas significativas. Políticos autoritários e aqueles classificados como populistas têm assumido, em diferentes partes do mundo, a campanha antigênero como um aspecto importante de sua identidade e de seus governos quando eleitos.

Ainda que suas políticas possam ser antipopulares em muitos sentidos, como nos casos da desregulamentação das relações de trabalho, da restrição de investimento público em saúde e educação, da limitação de aposentadorias, entre outros exemplos, o apelo ao “povo” viria de uma perspectiva moral. A família cristã seria o contraponto à corrupção moral – o que incluiria a moral sexual e a captura de bens públicos por políticos e empresários.

Um eixo em que ainda é preciso compreender seus apelos é o da relação entre gênero e nação. Entre ideólogos laicos do neoconservadorismo, assim como nos protestos de rua discutidos neste livro, a chave retórica da “maioria cristã” desempenhou papel importante em conjunto com a das “tradições nacionais”. Recuperar a nação e mesmo a democracia, em alguns dos enunciados analisados, seria tomá-la de volta de feministas e lésbicas, de comunistas, de gramscianos e marxistas, mas também da própria política como gestão coletiva do público. Restariam, assim, as famílias e o controle ampliado dos corpos, reativando na micro e na macropolítica padrões patriarcais e heteronormativos da moral e da autoridade.

Deve-se registrar, entretanto, que os movimentos feministas, LGBTQI e de setores progressistas evangélicos e católicos persistem na defesa dos princípios igualitários e da agenda de gênero na América Latina. As experiências das feministas no Chile (com a campanha Un Violador en Tu Camino), na Argentina (com a campanha Ni Una Menos e a retomada da campanha pela legalização do aborto) e na Colômbia (com a eleição de Claudia López Hernández para a prefeitura de Bogotá em 2019) são indicadores importantes da capacidade de ação dos setores sociais acima mencionados.

No Brasil, em 2015, o movimento Fora Cunha, que levou mulheres de todo o país às ruas por direitos, entre os quais se destacava o aborto legal e o movimento de estudantes secundaristas, que teve grande expressão e mostrou a liderança de jovens mulheres, e, em 2018, o movimento Ele Não, contra a eleição do candidato presidencial de extrema direita Jair Bolsonaro, têm mostrado capacidade de articulação e de avanço para além da pauta específica de gênero, em um contexto reacionário.

Mobilizaram-se em defesa da democracia e da justiça social. Com a vitória de Bolsonaro, que assumiu a Presidência do país em 1o de janeiro de 2019, a despeito dos sentimentos iniciais de perplexidade e de temor pelas ameaças a ativistas com projeção nacional, a articulação com outros atores políticos (academia, partidos, movimentos do campo jurídico e científico e contramovimentos religiosos e vozes dissidentes cristãs, entre outros) passou a ter como alvo o enfrentamento às iniciativas regressivas do governo nos campos dos direitos humanos, da educação, da saúde, do meio ambiente, das relações exteriores, da política indigenista, e, de modo específico, das políticas de gênero.

De certo modo, este livro nos coloca diante de um paradoxo que tem se explicitado de maneira aguda no Brasil: a reação a direitos encontra os movimentos feministas e LGBTQI, assim como os movimentos negros e outros setores que atuam em defesa dos direitos humanos, ativos e muito presentes no debate e nas disputas. As forças democráticas renovam suas estratégias e suas alianças para fazer frente ao autoritarismo e à escalada de desrespeito aos direitos humanos.

É importante que, nessa ampliação de alianças, o sentido da democracia seja suficientemente denso para que abarque as agendas de igualdade e diversidade que, nas décadas recentes, tornaram visíveis os gargalos e exclusões sistemáticas dos regimes liberais. Em outras palavras, o próprio sentido da democracia que se busca consolidar ou reconstruir, a depender do contexto, está também em disputa.

 

Adendo

Iniciamos esta obra antes da pandemia de covid-19 e entregamos o texto original à editora quando seus efeitos começavam a ser conhecidos, em março de 2020. Poucos meses depois, no momento final de revisão do livro, em 13 de julho de 2020, cerca de 145 mil mortes pela doença haviam sido registradas na América Latina, mais de 70 mil apenas no Brasil.

Dados e estudos preliminares apontam para o aprofundamento das desigualdades como uma das consequências da pandemia e, em alguns casos, das escolhas feitas para combatê-la. Como crise de saúde pública e como crise econômica, soma-se a clivagens e vulnerabilidades preexistentes. Dada a divisão sexual do trabalho, o cuidado com as crianças em períodos de suspensão das atividades escolares presenciais e o cuidado com os que adoecem aumentam a sobrecarga das mulheres.

As soluções para reduzir o contágio esbarram no trabalho informal e na desregulamentação dos direitos trabalhistas em muitas partes do mundo nas últimas décadas. Em todo o mundo, aumentou a violência doméstica, e os problemas sanitários e de habitação que já existiam ficaram ainda mais evidentes.

Nesse quadro, a reação à igualdade de gênero e aos direitos reprodutivos e sexuais não teve trégua. Em países tão distintos quanto os Estados Unidos, a Hungria e o Brasil, estão em curso políticas para restringir o direito ao aborto, anular direitos de pessoas trans e limitar o combate à violência doméstica em nome da ordem familiar, mostrando que a reação à agenda de igualdade e diversidade se mantém e pode inclusive aprofundar-se.

As relações entre a pandemia e a democracia ainda estão por ser contadas, mas já sabemos que, se, de um lado, a percepção da relevância de políticas públicas distributivas e de saúde pode ter se ampliado, de outro, políticas de exceção podem ancorar-se nas necessidades abertas pela pandemia.

Além disso, a crise econômica pode, mais uma vez, abrir caminho para que lideranças autoritárias e nacionalistas ressuscitem ameaças e a defesa de um “nós” restrito, recortado por perspectivas misóginas, racistas e xenofóbicas. Os problemas de que trata este livro permanecem. Mas somam-se a eles, agora, disputas renovadas em um contexto em que o novo, sem dúvida, não significa a superação dos desafios passados.

*Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da UnB. Autora, entre outros livros, de Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil (Boitempo).

*Juan Marco Vaggione é professor titular de sociologia da Universidade Nacional de Córdoba (Argentina).

Maria das Dores Campos Machado é professora titular de sociologia na UFRJ. Autora, entre outros livros, de Política e religião (FGV).

 

Referência


Flávia Biroli, Juan Marco Vaggione & Maria das Dores Campos Machado. Gênero, neoconservadorismo e democracia. São Paulo, Boitempo, 2020.

 

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