Por Joelson Gonçalves de Carvalho*
Não temos as ruas, é certo. Por isso é fundamental que tenhamos fortes quilhas para romper ao meio as ondas do autoritarismo, da barbárie e da necropolítica
Ato 1 – Sobre o título
Preciso começar explicando o título dado a esse artigo. Infelizmente não se deve a minha admiração por Chico Buarque, compositor que, depois de conseguir colocar um sonoro “paralelepípedo” em uma letra, anos depois, repetiu o feito inserido um “escafandrista” em outra.
Gostaria que fosse por culpa de Chico, mas a culpa foi de Bolsonaro, o presidente de um país no qual o povo, segundo ele mesmo, mergulha no esgoto e não acontece nada.
Confesso que fiquei indeciso sobre como intitular essas páginas. Se tivesse me inspirado em Velez Rodrigues, o primeiro ministro da educação desse governo, teria colocado “Nós, os canibais em viagem”, mas, com essa lembrança tardia, correria o risco de desprestigiar o senhor Weintraub, atual do MEC. Por ele, eu chamaria esse artigo de “Nós, as zebras gordas”. Mas, cá entre nós, o mais tentador foi homenagear o ministro da economia, o senhor Guedes, dando como título a essas linhas: “Nós, os parasitas”, mas essa última opção ficou bastante démodé depois do sucesso do filme sul-coreano de mesmo nome comprometer o ineditismo do possível título.
Esse começo inusitado e caricatural a um assunto tão sério não foi aleatório. Ele serve para mostrar como Bolsonaro e sua equipe, escolhida a dedo, nos vê. Enfim, esse é o título e, em certo sentido, tendo a acreditar que esse é muito fiel ao que estamos vivendo: estamos mergulhados no esgoto.
Ato 2 – nau desgovernada
Bolsonaro não precisava de um vírus para lhe ajudar em sua necropolítica, mas como desgraça pouca é bobagem, o vírus veio e, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que fez muita gente por máscaras, conseguiu tirar a de Bolsonaro para parte de seu eleitorado cativo. Os demais já estão roucos com o seu “eu avisei”.
De olhos bem abertos estavam os que pularam fora do barco. Entre tantos, já tinham desembarcado Janaina Paschoal, Joice Hasselmann. Alexandre Frota e até o Lobão. Mais recentemente, mirando nas próximas eleições, não podemos nos esquecer dos governadores de São Paulo, João Dória e do Rio, Wilson Witzel.
Mas foi nas últimas semanas, navegando em meio a uma pandemia, que o capitão-timoneiro do barco mostrou toda a sua inépcia, além de insistir em uma falsa dicotomia entre saúde e economia, demitiu o ministro da saúde em meio a uma escalada de contágios e mortes, com acintoso tom de deboche forte a crise sanitária que vivemos e as mortes que ela tem causado. Depois que Bolsonaro fez Mandetta andar na prancha, Sérgio Moro, seu agora ex-superministro da justiça, pulou do barco.
A nau segue sem rumo, à deriva, para o desespero de quem acreditava que um dia navegaríamos em águas tranquilas e, quiçá conseguiríamos até aportar em alguma ilha de Lilliput, onde seriamos grandes. A frase atribuída a Celso Furtado continua a assustar por sua atualidade: “Em nenhum outro momento da nossa história a distância entre o que somos e o que queremos ser foi tão grande.”
Ato 3 – helliberalismo
Em meio a um rompante esquerdista, eu poderia dizer que é óbvio que o presidente é apenas uma peça da engrenagem capitalista que tem, no seu funcionamento, o fim claro de, em meio a uma crise de reprodução ampliada de capital, fazer reformas para garantir a manutenção de margens de lucratividade dos empresários, a partir de ajustes que, invariavelmente recaem na classe trabalhadora. Mas isso é insuficiente.
A presença de Paulo Guedes, ministro ExxonMobil, disfarçado de Posto Ipiranga, não é suficiente para qualificar esse governo de liberal ou neoliberal. A agenda de governo e de parte do empresariado é mais draconiana do que podia esperava o mais pessimista dos analistas.
É uma agenda neoliberal, mas não só! Já sabíamos que havia, em Bolsonaro e seus financiadores-avalistas um desprezo total por parte significativa da sociedade brasileira. Foram ataques de toda sorte a negros, indígenas, mulheres, à população LGBTQIA+, sem tetos, sem terras. Mas com o Covid-19 ficou claro: o Estado está escolhendo quem deve viver e quem deve morrer. Isso tem nome: necropolítica.
Assistimos a um neoliberalismo tão medonho que me lembra o inferno de Dante, na Divina Comédia. Me permito, inclusive, um neologismo, me valendo da sonoridade da palavra inferno em inglês: vivemos em um helliberalismo.
Ato 4 – da unidade
Para Bolsonaro, o povo mergulha no esgoto e não acontece nada. É contra esse “não acontece nada” que precisamos nas próximas semanas nos mobilizar. É difícil no contexto apresentado, saber exatamente o que fazer. Entretanto, é fácil saber o que não fazer: titubear! Se as condições institucionais para um impeachment estão ou não dadas isso não deve, de maneira alguma, determinar ou não as ações das forças progressistas que temos, antes pelo contrário. A tergiversação ou imobilismo dessas forças agora é que pode determinar a ausência das tais condições institucionais para um impeachment.
Com a aproximação de Bolsonaro ao Centrão, aumentando a fisiologia e a barganha já presentes no seu governo, tende a ficar mais difícil que o Congresso Nacional tenha algum protagonismo em um processo de afastamento do presidente. E pelas notas lacônicas dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, a cada vez que Bolsonaro comete atos flagrantes contra a democracia, dali não sairá nada. O silencio cadavérico do Supremo Tribunal Federal, em suas notas públicas genéricas, também me induz a pensar o mesmo do STF. E mesmo as acusações que Sergio Moro fez, ao anunciar sua saída do governo, sobre possíveis crimes de responsabilidade de Bolsonaro no governo, não me deixam mais otimista nesse sentido.
Partidos, sindicatos, organizações da sociedade civil, entidades de classe, movimentos sociais precisam entender o momento histórico no qual estamos. Não é uma luta simplista estereotipada entre “direita versus esquerda”. A luta é contra um projeto de barbárie generalizada conduzido por um beócio.
Ninguém espera que as forças progressistas aqui elencadas sejam o recanto da harmonia. Será preciso vencer a histórica autofagia, notadamente nos partidos de esquerda, para que, com o mínimo de convergência, avancemos com um sonoro “Fora Bolsonaro”, mobilizando diversos setores da sociedade para o imperativo do impeachment.
Como disse Maiakóvski, o mar da história é agitado. Não temos as ruas, é certo. Por isso é fundamental que tenhamos fortes quilhas para romper ao meio as ondas do autoritarismo, da barbárie e da necropolítica.
* Joelson Gonçalves de Carvalho é professor de economia do Departamento de Ciências Sociais da UFSCar