Reprodução social e luta feminista classista

Imagem: Phong Vo
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Por CINTHYA BASTOS FERREIRA*

Reflexões a partir das contribuições de Silvia Federici

Este texto pretende abarcar reflexões sobre a reprodução social e suas contradições no cerne das sociedades de classes, a partir de algumas das contribuições da autora italiana, de linha marxista autônoma, Silvia Federici. As duas principais obras a serem mobilizadas neste percurso são: Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva; e O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista.

A partir deste aporte, buscar-se-á diálogos com o pensamento marxista e feminista, a fim de edificar um balanço, obviamente não exaustivo, dos dilemas que permeam a feminilização do trabalho reprodutivo e seus ecos específicos na contemporaneidade neoliberal e financeirizada, conformadora de fluxos migratórios que expressam relações de poder assimétricas, tanto quanto da tendência generalizada de precarização do mundo do trabalho, que possui impactos, na concretude do vivido, dessemelhantes, em função de aspectos como gênero, classe, nacionalidade, sexualidade, faixa etária, entre outros.

Traçados estes comentários iniciais, o texto se dividirá em dois tópicos, que visam discutir tanto as origens processuais da posição das mulheres sob o domínio do capital, quanto a posição do trabalho reprodutivo e de cuidado diante da totalidade social (em fazer-se constante) do capitalismo enquanto sistema ordenador das múltiplas realidades, inclusive daquelas que o confronta direta ou indiretamente. Assim, ressalta-se a potência da temática elegida como frente de luta, que evoca para a necessidade de transformação qualitativa das bases nas quais as sociabilidades pautadas pela supremacia da valorização do valor se assentam.

Neste sentido, diante da impossibilidade conciliatória entre o irreconciliável, os feminismos, como movimentos plurais organizados, carregam consigo a verve revolucionária da ruptura com o status quo, em especial, ao se pensar que as mulheres (racializadas, periféricas, responsabilizadas pelo cuidado de um ou mais membros da família ou comunidade, com acúmulo de tarefas que mesclam material e o afetivo, o técnico e o relacional) encontram-se na base da pirâmide social na atualidade, na linha de frente das batalhas cotidianas pela sobrevivência de si e dos seus, sendo suas (nossa) politização indispensáveis – e incendiárias – na construção de um mundo anticapitalista, antipatriarcal e antirracista.

Peculiaridades da posição das mulheres nos liames da sociedade capitalista

De acordo com Silvia Federici, “a discriminação contra as mulheres na sociedade capitalista não é o legado de um mundo pré-moderno, mas sim uma formação do capitalismo, construída sobre diferenças sexuais pré-existentes e reconstruída para cumprir novas funções sociais” (2017, p. 11). Desse modo, compreende-se não ser possível abordar os fenômenos atrelados à exploração e à dominação das mulheres de forma generalista ou trans-histórica, porque esses fenômenos só fazem sentido dentro do movimento do real, e a ele estão condicionados. A fim de desvelar o que tem de próprio nesse arranjo historicamente localizado, faz-se oportuno resgatar as mudanças operadas na “transição do feudalismo ao capitalismo” e os impactos dessas mudanças na generificação do vivido.

Dito isso, ainda em consonância com a autora italiana, tem-se que o conceito de “transição” auxilia a pensar sobre um processo prolongado de transformações e em sociedades nas quais a acumulação capitalista coexistia com formações políticas, econômicas e culturais que não eram ainda predominantemente capitalistas, resultando em um mosaico social de características discrepantes, mas conviventes e simultâneas. A questão que se coloca frente a isso é: quais são as condições que permitiram o desenvolvimento do sistema capitalista enquanto tal? No intuito de desbravar a este questionamento, retomemos o pensamento marxiano.

Dinheiro e mercadoria, desde o princípio, são tão pouco capital quanto os meios de produção e de subsistência. Eles requerem sua transformação em capital. Mas essa transformação mesma só pode realizar-se em determinadas circunstâncias, que se reduzem ao seguinte: duas espécies bem diferentes de possuidores de mercadorias têm de defrontar-se e entrar em contato; de um lado, possuidores de dinheiro, meios de produção e meios de subsistência, que se propõem a valorizar a soma-valor que possuem mediante compra de força de trabalho alheia; de outro, trabalhadores livres, vendedores da própria força de trabalho e, portanto, vendedores de trabalho. Trabalhadores livres num duplo sentido, porque não pertencem diretamente aos meios de produção, como os escravos e os servos, nem os meios de produção lhes pertencem como, por exemplo, o camponês economicamente autônomo (MARX, 1998, p. 340).

O estabelecimento dessa relação (fruto do desenrolar contraditório da história), que prevê uma cisão entre os trabalhadores e a propriedade das condições de realização do trabalho – cisão, enfim, entre trabalhadores que nada possuem, a não ser a própria força de trabalhado, e proprietários que nada produzem diretamente – fornece os alicerces e são os pressupostos do modo de produção capitalista, sendo identificados no último terço do século XV e nas primeiras décadas do século XVI, tanto por Marx (1998) quanto pela releitura crítica de Silvia Federici (2017).

Contudo, é relevante ter em vista que o advento dessa conformação social possui determinações concretas, embora não lineares e tampouco resultantes do fluxo da Consciência ou do Espírito, com uma gênese puramente ideativa ou teleológica, artificialmente isolada de demais aspectos. Ao contrário, “a assim chamada acumulação primitiva” tem como estratégia privilegiada a expulsão violenta do campesinato de sua base fundiária (através das leis de cercamento das terras comunais), com idas e vindas cujo desaguar é, em última instância imprevisível, mas compreensível: sua raiz é material, com todos os tensionamentos que lhe cabem.

Além disso, como discutido por Silvia Federici (2017), essa expulsão sistemática dos povos, e sua forçosa desterritorialização, adquiriu contornos diversos (passando pelo despejo de inquilinos, pelo aumento de aluguel e por impostos elevados que conduziram ao endividamento e à venda de terras), englobando em si também a expansão e a exploração colonial, a transformação do campesinato em trabalhador assalariado via expropriação de seus meios de subsistência, bem como a transformação dos territórios subjetiva e comunitariamente veiculados em valor de troca.

Esse “proletariado liberto”, no entanto, não se vê passível de ser absorvido integralmente pela indústria ou, de modo mais amplo, pelo mercado de trabalho reconfigurado e em ascensão, o que redundou em um exército de reserva culpabilizado pela própria espoliação e submetido a uma constante e crescente disciplinarização do corpo e do espírito. Disso decorre que, ao invés de o trabalhador ter sido liberto das relações servis até então hegemônicas, o que se libertou foi o capital, sendo a violência e a produção da exclusão e da marginalidade uma premissa desse, antes de um aspecto residual, que supostamente poderia ser ajustado mantendo suas estruturas.

Nesses meandros, o cercamento das terras comunais representa tanto uma perda de autonomia diante das possibilidades imediatas de arcar com a própria sobrevivência, quanto uma perda no que se refere à solidariedade de classe: uma perda que, não despropositadamente, obstaculiza o vínculo e articulação no interior da classe explorada. Contudo, a forma como esse processo de acumulação primitiva atinge desigualmente aos homens e às mulheres, no que tange às relações sociais de sexo, não é tematizada por Marx. Porém, Silvia Federici (2017) se dedica precisamente a esta problemática, resgatando o papel não meramente eventual, mas instrumental e estruturante, das mulheres na sustentação do sistema capitalista.

Em linhas gerais, esse foi um processo que demandou “a transformação do corpo em uma máquina de trabalho e a sujeição das mulheres para a reprodução dessa força de trabalho”; com isso, além de uma acumulação de trabalhadores exploráveis pelo capital, a acumulação capitalista foi também “uma acumulação de diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora” (2017, p. 119), instituindo uma nova divisão sexual do trabalho – divisão essa que oculta e distorce a exploração do trabalho feminino não pago pela apresentação deste sob o signo do afeto, do destino biológico da fêmea humana.

Sob tais circunstâncias, o novo cenário que se impunha (e que se impõe, em formatos reelaborados), com a perda da terra e a desintegração dos espaços comuns coletivos, implicou em consequências díspares para homens e mulheres e isso se deve a fatores diversos, porém não dissociados: consubstanciais e coextensivos, no sentido definido por Falquet e Kergoat (2008), a partir da conjugação não hierarquizada de relações sociais de poder.

Para as mulheres, era muito mais difícil tornar-se “vagabundas” ou trabalhadoras migrantes, pois uma vida nômade as expunha à violência masculina, especialmente em um momento em que a misoginia estava crescendo. As mulheres também tinham mobilidade reduzida devido à gravidez e ao cuidado com os filhos. Além disso, as mulheres também se viram prejudicadas pelos cercamentos, porque assim que a terra foi privatizada e as relações monetárias começaram a dominar a vida econômica, elas passaram a encontrar dificuldades maiores do que as dos homens para se sustentar, tendo sido confinadas ao trabalho reprodutivo no exato momento em que este trabalho estava sendo absolutamente desvalorizado (FEDERICI, 2017, p. 144).

A medida com que a economia de subsistência, pré-capitalista e ancorada em uma unidade produtiva (produção e reprodução), passa a ser substituída pela primazia da monetização, apenas o que é produzido para o mercado (portanto, apenas aquilo que serve para a valorização do valor) é valorizado. O que se circunscreve fora desses parâmetros é deixado às margens e invisibilizado, alavancando enlaces entre afazeres tipificados como femininos, seu não assalariamento no domínio familiar, seu desprestígio social e a dependência financeira que, por seu turno, gera vulnerabilidades múltiplas, materiais e psíquicas.

“Todo o excedente deixado agora pela produção pertencia ao homem; a mulher tinha participação no consumo, porém não na propriedade. A divisão do trabalho na família havia sido a base para a distribuição da propriedade entre o homem e a mulher. Essa divisão do trabalho na família continuava sendo a mesma, mas agora transtornava as relações domésticas, pelo simples fato de ter mudado a divisão do trabalho fora da família. A mesma causa que havia assegurado à mulher sua anterior supremacia na casa a exclusividade no trato dos problemas domésticos – assegurava agora a preponderância do homem no lar: o trabalho doméstico da mulher perdia agora sua importância, comparado com o trabalho produtivo do homem; este trabalho passou a ser tudo; aquele, uma insignificante contribuição” (ENGELS, 1984, p. 182).

Dessa forma, engendra-se com o contexto de expropriação da base fundiária e de emergência de uma nova divisão sexual do trabalho, que mantêm as mulheres na esfera doméstica, uma depreciação das atividades designadas como tipicamente femininas e, em uníssono, uma operação em que as mulheres passam a se tornar para os trabalhadores homens “substitutas das terras que eles haviam perdido com os cercamentos” (FEDERICI, 2017, p. 191). Mulheres e terra, associadas, então, por aquilo que podem prover, por aquilo que lhes pode ser extraído. Neste ínterim, a noção de “mulher comum” e o crescimento da misoginia fazem-se emblemáticos.

Tal compreensão dialoga com a defesa de Pateman (1988) acerca de o contrato social ser uma história de liberdade seletiva, a qual só se mantém com a dominação de um contingente social significativo e com a dissimulação de sua dimensão sexual generificada: dito de outra forma, o contrato burguês requer a dominação das mulheres e a representação destas enquanto corpos substancialmente desfrutáveis.

“A dominação dos homens sobre as mulheres e o direito masculino de acesso sexual regular a elas estão em questão na formulação do pacto original. O contrato social é uma história de liberdade; o contrato sexual é uma história de sujeição. O contrato original cria ambas, a liberdade e a dominação. A liberdade do homem e a sujeição da mulher derivam do contrato original e o sentido da liberdade civil não pode ser compreendido sem a metade perdida da história, que revela como o direito patriarcal dos homens sobre as mulheres é criado pelo contrato. A liberdade civil não é universal – é um atributo masculino e depende do direito patriarcal. Os filhos subvertem o regime paterno não apenas para conquistar sua liberdade, mas também para assegurar as mulheres para si próprios. Seu sucesso nesse empreendimento é narrado na história do contrato sexual. O pacto original é tanto um contrato sexual quanto social: é social no sentido de patriarcal – isto é, o contrato cria o direito político dos homens sobre as mulheres –, e também sexual no sentido do estabelecimento de um acesso sistemático dos homens ao corpo das mulheres. O contrato original cria o que chamarei, seguindo Adrienne Rich, de ‘lei do direito sexual masculino. O contrato está longe de se contrapor ao patriarcado: ele é o meio pelo qual se constitui o patriarcado moderno” (PATEMAN, 1988, p. 19).

Nesses termos, o trabalho doméstico feminino não pago passa pela dimensão de que aquilo que as mulheres conseguem para suprir as próprias necessidades (sejam elas do estômago ou do espírito), aparecem não como pertencentes de fato às mulheres, isto é, como resultado do seu trabalho, mas como doação ou favor por parte do marido (que é quem tradicionalmente detinha posse da mercadoria dinheiro), visto que, esse, sim, participa do montante de trabalho produtivo e reconhecido socialmente como tal via salário.

A partir disso, entrevê-se que a instituição do matrimônio não só implica em uma apropriação do trabalho invisibilizado e não remunerado das mulheres, como implica na apropriação dos corpos destas. Essa conjunção de fenômenos sociais, úteis na manutenção e necessários para o desenvolvimento do capitalismo, conforma uma heterossexualidade compulsória, mecanismo pelo o casamento e a orientação sexual voltada aos homens são dispostas como inevitáveis e únicas para as mulheres, como discute Rich (2010). Sendo assim, a subordinação da sexualidade feminina à reprodução da força de trabalho significa que a heterossexualidade tem sido imposta como o único comportamento sexual aceitável, de modo que divisão do trabalho, a instituição do matrimônio e a heterossexualidade compulsória estão íntima e originalmente interligados em muitas sociedades.

“Somos estupradas, tanto em nossa cama quanto na rua, precisamente porque fomos configuradas para ser as provedoras da satisfação sexual, as válvulas de escape para tudo o que dá errado na vida dos homens, e os homens têm sido sempre autorizados a voltar seu ódio contra nós se não estivermos à altura do papel, particularmente quando nos recusamos a executá-lo. A compartimentalização é apenas um aspecto da mutilação da nossa sexualidade. A subordinação da nossa sexualidade à reprodução da força de trabalho significa que a heterossexualidade nos tem sido imposta como o único comportamento sexual aceitável” (FEDERICI, 2019, p. 57).

Dessa forma, a mulheridade, com um longo percurso de naturalização, têm origens em interesses reais, em relações repostas que nada dizem respeito ao ser ou não ser inerente às mulheres determinadas características. Exemplo disso é a crise demográfica e econômica que teve seu auge entre 1620 e 1630 e que, como discorre Silvia Federici (2017), intensificou a perseguição às “bruxas” (mulheres que detinham um saber sobre o próprio corpo e sobre práticas de controle da natalidade, conhecimentos esses que, nesse momento histórico, passaram a ser considerados uma ameaça).

Neste cenário, a caça às bruxas que se desenha tem como finalidade regular a procriação e minar o controle das mulheres sobre a própria reprodução. A procriação, dessa forma, foi colocada a serviço da acumulação capitalista, tornando o útero um território político em disputa. Mais do que isso, a expropriação desse saber vem acompanhada pelo ideal de que as mulheres, para se tornarem completas e realizadas, precisariam parir e exercer a maternidade: um destino composto por nós cegos entre necessidade material e modos inculcados de subjetivação.

Ora, a partir do exposto, poderiam surgir apontamentos alegando que os tempos são outros, as mulheres, atualmente, trabalham fora, têm acesso a métodos contraceptivos e, portanto, essa análise seria completamente obsoleta. E, certamente, a passagem histórica não é estática. A história, desde um prisma marxista, refere-se ao movimento do real em sua dialética da continuidade e ruptura, o que pressupõe uma compreensão dinâmica e multicausal dos fenômenos sociais. Os tempos são, de fato, outros. Mas o que de “mesmo” subjaz no novo? Voltemo-nos, então, a isso.

Friedrich Engels, ao afirmar que “a emancipação da mulher e sua equiparação ao homem são e continuarão sendo impossíveis, enquanto ela permanecer excluída do trabalho produtivo social e confinada ao trabalho doméstico, que é um trabalho privado” (ENGELS, 1984, p. 182), possivelmente não vislumbrava que a inclusão da mulher no trabalho produtivo social seria uma condição necessária, mas nem de longe suficiente para a emancipação das mulheres. Esta inclusão, longe de viabilizar a emancipação, reestruturou modalidades de exploração. Mais do que isso, ao se pensar em igualdade formal quanto aos homens, deve-se reconhecer seus limites últimos, a menos que se presuma que os homens já estejam libertos, a menos que não se pense a liberdade como categoria relacional.

Quanto a isso, quando Silvia Federici (2019) pauta a defesa do salário pelo trabalho doméstico, isso significa expor o fato de que o trabalho doméstico já é e tem sido dinheiro para o capital, que o capital ganhou e ganha dinheiro quando mulheres cozinham, limpam, cuidam. Ademais, significa ressaltar que o trabalho doméstico é mais do que estar à serviço das demandas da casa. Implica servir aos assalariados física, emocional e sexualmente, preparando-os para o trabalho dia após dia, enquanto propicia as condições necessárias de formação dos assalariados futuros. Isso significa que, por trás de toda fábrica, de toda escola ou hospital, de todo escritório, há o trabalho oculto de milhões de mulheres que consomem sua vida e sua força em prol da produção da força de trabalho que move essas fábricas, escolas ou hospitais, escritórios e demais lócus de trabalho assalariado.

Por outro lado, tem-se que na leitura corrente sobre o trabalho doméstico, enquanto excluído do campo social e encerrado no âmbito do privado, é como se ele, o trabalho doméstico, fosse um serviço pessoal e externo ao capital. Um resíduo de não-pertencimento. Como se o problema central residisse não na apropriação do trabalho reprodutivo pelo capital ele mesmo, mas sim em sua ausência ou insuficiência. Em outros termos, o problema seria que o capital falhou em alcançar a cozinha e o quarto, a domesticidade. Portanto, leituras que enquadram a causa da opressão das mulheres em sua presumida exclusão das relações capitalistas resultam, via de regra, em um propagandismo para que se adentre nessas relações, em vez de contestá-las e de ter como horizonte sua destruição, sua superação.

Nesse sentido, vislumbra-se uma conexão entre a estratégia de luta para as mulheres e para o dito “Terceiro Mundo”, periférico e dependente. Da mesma forma que as mulheres deveriam ser conduzidas para as fábricas e para o trabalho produtivo tradicionalmente associado ao masculino, deve-se levar as fábricas e o produtivismo exemplar dos países centrais para o “Terceiro Mundo”. Em ambos os casos, sobrepõe-se uma concepção de que os “subdesenvolvidos” ou “subalternizados” são atrasados ou inferiores (ao invés de inferiorizados), e que só seria possível alcançar a “modernização modelo” por meio da obtenção de uma forma mais avançada de exploração capitalista, numa perspectiva desenvolvimentista que se nega a ver os limites estruturais do capital.

Mas o desenvolvimento capitalista ofereceu às mulheres (de modos distintos, a depender dos também distintos posicionamentos das mulheres no tecido social) não só o “direito ao trabalho fora do lar”, mas também a necessidade de trabalhar mais, de modo que “trabalhar fora não somente não dispensa as mulheres das tarefas domésticas, mas, além disso, não deve atrapalhá-las. Portanto, para ter uma certa independência econômica, a mulher só é livre para ter uma dupla jornada de trabalho” (DELPHY, 2015, p. 110). E se, como se tem visto, conseguir um segundo emprego tende a não libertar as mulheres do primeiro, ter duplas ou triplas jornadas de trabalho não é empoderador (estereótipo de mulher independente e/ou empreendedora), apenas significa possuir ainda menos tempo e energia para lutar contra ambos.

Contudo, merece ressalva o fato de que a luta social pelo salário não se resume ou coincide, necessária e diretamente, a uma demanda pela inclusão ou, menos ainda, pela defesa dos desmandos do capital via inserção nas relações salariais (até porque, enquanto mulheres trabalhadoras, nunca estivemos fora delas). A pauta salarial é tática. É parte do movimento de ruptura com o trabalho em sua formulação capitalista, assalariada e aviltante. O salário, assim como a sua ausência, tende a ser um termômetro de nossa exploração multifacetada de classe, sendo, portanto, a expressão direta das correlações de força entre capital e classe trabalhadora, e dentro da classe trabalhadora. Ponderações e contradições que precisam ser enfrentadas no tracejo da práxis.

Reestruturação produtiva e ajuste estrutural

Ao examinar as políticas feministas nos Estados Unidos e na Europa, Silvia Federici (2019) conclui que parte considerável das feministas não vem considerando as mudanças provocadas pela reestruturação da economia mundial sobre as condições materiais das mulheres, nem as reverberações dessas mudanças nas organizações feministas. Ainda que estudos comprovem o empobrecimento das mulheres pelo mundo, não se faz consensual a admissão de que a globalização não só provocou uma “feminização da pobreza” como também contribuiu para o surgimento de uma nova ordem colonial, criando novas divisões entre as mulheres.

Mesmo polos críticos às políticas aplicadas pelo Banco Mundial e pelo FMI frequentemente se conformam com posições reformistas que condenam a discriminação de gênero, mas mantêm intactas a hegemonia mundial das relações capitalistas e o que elas colocam em marcha em nome da presumida liberdade – contraditoriamente, por conseguinte, opõem-se ao sexismo sem se oporem às suas próprias engrenagens.

A fim de perscrutar essa contradição, convém remontar ainda a algumas características do capitalismo em sua forma histórica presente, baseada na acumulação flexível. Assim, coloca-se que entre as reformas que o ajuste estrutural prescreve, destacam-se a privatização da terra (tendo em vista a abolição da propriedade comunal), a liberalização do comércio (eliminação das tarifas sobre os bens importados), a redução do setor público, o corte do financiamento de serviços sociais e um sistema de controle que efetivamente transfere o planejamento econômico dos governos para o Banco Mundial e para os setores privados. Em síntese, o ajuste estrutural encontra-se no bojo no giro neoliberalizante a que se assiste desde meados da década de 1970, com sua inclinação às políticas de austeridade e de crescente informalização e precarização do trabalho.

Ao analisar essas transformações desde o ponto de vista da produção e da reprodução, entrevê-se um panorama muito diferente do projetado pelos defensores da “nova ordem mundial”. Constata-se, em primeiro lugar, que a expansão das relações capitalistas ainda se estabelece sobre a separação entre os produtores e os meios de (re)produção, bem como sobre a destituição de qualquer atividade econômica não orientada para o mercado, a começar pela agricultura de subsistência. Assim, os programas de ajuste estrutural, apesar de serem apresentados como uma forma de recuperação econômica, desfavorecem a provisão de grande parte da população, obstaculizando a capacidade de manutenção da vida, sendo que um dos principais objetivos dos programas de ajuste estrutural, por exemplo, é a “modernização da agricultura”, ou seja, sua reorganização em uma base comercial e de exportação: e isso significa que mais terra é direcionada para o cultivo comercial e mais mulheres, que são as principais agricultoras de subsistência no mundo, se veem desalocadas.

Uma das consequências do empobrecimento que liberalização econômica produziu sobre o proletariado mundial se manifesta no vasto movimento migratório do “Sul” para o “Norte”. Segundo Silvia Federici (2019), essa é uma das provas de que a crise da dívida e de que o “ajuste estrutural” instauraram um sistema de apartheid global. Com isso, mostra-se que são as mulheres do “Sul”, da periferia do sistema capitalista mundializado, que hoje em dia tomam conta das crianças e dos idosos nos Estados Unidos e de muitos países da Europa (que nutrem, enfim, com sua força de trabalho, as demandas da vida cotidiana de outrem), um fenômeno comumente descrito como “maternagem global” e/ou “cuidado global” (HIRATA, 2022), com variações relevantes em seus níveis de especialização e reconhecimento.

Em sentido similar, é possível identificar que as migrações vinculadas a chamada indústria do sexo, com fluxos do “Sul” em direção ao “Norte”, também são crescentes a partir da década de 1980 e 1990 e, em geral, compõem uma estratégia familiar, com envio regular de dinheiro aos parentes que ficaram no país de origem (logicamente, em casos em que essas migrações não são baseadas no tráfico, com servidão por dívida, restrição de locomoção e violências). Neste esteio, Pscitelli (2007) analisa os fluxos migratórios no recorte Brasil-Itália e Brasil-Espanha e mostra que muitas vezes as mulheres, originalmente prostitutas no Brasil, em contexto de turismo sexual, migram para a Europa não só para se (re)inserirem no mercado do sexo estrangeiro, mas para se casarem com os turistas que conheceram anteriormente no Brasil. Somado a isso, aponta-se que um dos motivos que conduzem esses homens a escolha de esposas brasileiras é a procura de “estilos” ou “modalidades” de feminilidade considerados difíceis de achar entre as europeias, “menos independentes”, que incluem a disposição para a maternidade e para o cuidado da casa: o que reflete as imbricações entre racialização, machismo, classe e divisão internacional do trabalho.

O capital, em sua organização social corrente, se revela, assim, especialmente catastrófico para mulheres; não única e necessariamente porque seja gerenciado/chefiado por instâncias dominadas por homens que não entendem as ditas particularidades das mulheres, mas por causa dos objetivos a que pretendem alcançar. Políticas de presença são meramente instrumentais quando esvaziadas de coerência a nível de substância e conteúdo. Sendo assim, se a globalização tem por intuito dar ao capital corporativo o controle completo sobre o trabalho e os recursos naturais, mulheres, levando a cabo este roteiro, altera os resultados mortificantes destes objetivos, inclusive e principalmente, às próprias mulheres, em sua abrangência? Ora, a globalização, como tal, não pode triunfar a menos que execute um ataque sistemático às condições de reprodução social e sobre os principais sujeitos desse trabalho, que, na maioria dos países, é composta por mulheres.

No rol de tais acontecimentos, as mulheres têm sido os amortecedores da globalização econômica, pois tem se visto na incumbência de compensar com seu trabalho a deterioração das condições econômicas e sociais produzidas pela liberalização da economia mundial e pelo crescente desinvestimento dos Estados na reprodução da força de trabalho (FEDERICI, 2019). Por exemplo, devido aos cortes no orçamento, grande parte do trabalho que os hospitais e outras agências públicas tradicionalmente faziam foi privatizada e transferida para os lares, ocultando o trabalho não remunerado das mulheres e gerando sobrecarga de tarefas.

Outro fator que devolveu a centralidade ao trabalho doméstico no lar foi a expansão do “trabalho domiciliar”, em parte devido à desconcentração produtiva-industrial, em parte pela disseminação do trabalho desregulamentado e pelo crescimento do setor de serviços. Isso desencadeia, de um lado, uma acentuação da carga de trabalho no interior das famílias; ao passo que, de outro lado, aponta tanto para um aumento na demanda por trabalho doméstico remunerado pelas classes mais abastadas; e em sua oferta, uma vez que há um maior número de mulheres buscando meios de sustento.

E isso porque em épocas marcadas por uma sociabilidade em crise, como a atualidade, atividades outrora incorporadas pelo mercado ou pelo aparato estatal – desde restaurantes e creches, até lavanderias – tendem a reingressar para as casas (VIEIRA, 2020) e, desse ponto de vista, torna-se essencial compreender o sistema do cuidado tanto em sua face macroestrutural, quanto em suas camadas que demandam uma microanálise das pessoas que atuam nestas funções de produção do viver em sociedade.

Dito isso, em linhas gerais, compreende-se a reprodução social como uma condição de possibilidade da acumulação de capital continuada; porém, a orientação do capitalismo para a acumulação ilimitada tende a desestabilizar os próprios processos de reprodução social dos quais ele depende. Essa contradição sociorreprodutiva do capitalismo é o que se encontra na raiz da chamada “crise do cuidado” (FRASER, 2020). Além de diminuir o provimento público de bem-estar social e recrutar as mulheres para a força de trabalho assalariada, o capitalismo, atualmente, tem reduzido os salários reais, elevando, assim, o número de horas de trabalho pago que, por núcleo domiciliar, são necessárias para manter uma família ou agrupamento, bem como provocando uma corrida para transferir o trabalho de cuidado para outrem, a partir de “cadeias globais de cuidado” cada vez mais compridas e geradoras de ranhuras entre as próprias mulheres.

Posto isso, ao reafirmar a sujeição específica das mulheres no capitalismo, não se trata de dividir ou fragmentar a classe, uma ideia que ainda permeia os setores de esquerda, como se a luta feminista entravasse o caminho da luta de classes e tirasse o foco do “principal”. Trata-se, ao contrário, de entender as particularidades da classe para compreendê-la na sua totalidade, sem perder a sua unidade em particularismos identitários, que ao dar ênfase apenas às diferenças, fragmentam, isolam e perdem o que temos em comum e que nos unifica: a necessidade de um projeto coletivo, classista e emancipatório.

Unidade exige, todavia, o reconhecimento das diferenças. Do contrário, seria homogeneidade, e não podemos negar que a classe não é homogênea, posto que é permeada e constituída por diversos marcadores sociais da diferença (CISNE, 2018, p. 112). É com essa compreensão que o feminismo anticapitalista (marxista, classista, materialista) se apresenta como horizonte e como ferramenta na articulação entre produção teórica (na socialização do conhecimento acerca das raízes de nossa opressão) e enfrentamento via mobilização das mulheres em torno de um projeto político emancipatório.

*Cinthya Bastos Ferreira é graduada em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

Referências


CISNE, Mirla. Feminismo e marxismo: apontamentos teórico-políticos para o enfrentamento das desigualdades sociais. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 211-230, 2018.

ENGELS, Friedrich. Barbárie e Civilização. In: A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Ed. Centauro, 2012.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.

FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019.

FRASER, Nancy. Contradições entre capital e cuidado. Princípios: Revista de Filosofia, Natal, v. 27, n. 53, maio – ago. 2020.

HIRATA, Helena. O cuidado: teorias e práticas. São Paulo: Boitempo, 2022.

MARX, Karl. A assim chamada acumulação primitiva. In: O capital: crítica da economia política: Livro 1, Vol. 1 e 2. São Paulo: Nova Cultura, 1988.

PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

PISCITELLI, Adriana. Sexo tropical em um país europeu: migração de brasileiras para a Itália no marco do “turismo sexual” internacional. Revista Estudos Feministas, v. 15, n. 3, p. 717–744, set. 2007.

RICH, Adrienne. Heterossexualidade Compulsória e a existência lésbica. BAGOAS, v. 5, p. 17-44, 2010.

VIEIRA, Regina Stela Corrêa. Cuidado, crise e os limites do direito do trabalho brasileiro. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 4, p. 2517–2542, out. 2020.


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