As ideias precisam circular. Ajude A Terra é Redonda a seguir fazendo isso.

Cinema na quarentena: Los olvidados, de Luis Buñuel

Imagem: Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Julio Cortázar*

Comentário sobre o filme de Buñuel realizado no México em 1950, vencedor do prêmio de melhor diretor no festival de Cannes.

Com tudo de que gosto nos cães, sempre me escapou andaluz de Buñuel. Tampouco conheço A idade do ouro [i]. Buñuel-Dali, Buñuel-Cocteau, Buñuel-alegres anos surrealistas: de tudo tive notícias em seu dia e de uma maneira fabulosa, como no final de Anabase: “Mais de mon frére le poète on a eu des nouvelles… Et quelques-uns en eurent connaissance…” [“Mas de meu irmão, o poeta, tivemos nós notícias… E alguns dela tiveram conhecimento…”[ii]]. De repente, sobre um trapo branco numa salinha de Paris, quando mal podia acreditar, Buñuel cara a cara. Meu irmão, o poeta, ali, lançando-me imagens como os garotos lançam pedras, os garotos dentro das imagens de Los olvidados, um filme mexicano de Luis Buñuel[iii].

Eis que tudo está bem num subúrbio da cidade, ou seja, que a pobreza e a promiscuidade não alteram a ordem, e os cegos podem cantar e pedir esmola nas praças, enquanto os adolescentes brincam de tourada num terreno baldio ressecado, dando tempo de sobra a Gabriel Figueroa para que os filme a seu gosto. As formas – essas garantias oficiais não escritas da sociedade, esse who’s who bem delimitado – realizam-se satisfatoriamente. O subúrbio e os chefes de facção entreolham-se quase em paz. Então entra Jaibo.

Jaibo escapou do centro correcional e regressa entre os seus, ao bando sem dinheiro e sem tabaco. Traz consigo a sabedoria do cárcere, o desejo de vingança, a vontade de poder. Jaibo perdeu a infância dando de ombros. Entra em seu subúrbio como o alvorecer na noite, para revelar a figura das coisas, a cor verdadeira dos gatos, o tamanho exato das facas na força exata das mãos. Jaibo é um anjo; diante dele ninguém mais pode deixar de mostrar-se como verdadeiramente é. Uma pedrada no rosto do cego que cantava na praça, e a película fina das formas se desfaz em mil fragmentos, caem os fingimentos e as letargias, o subúrbio salta na cena e joga o grande jogo de sua realidade. Jaibo é quem incita o touro, e se a morte chega também para ele, pouco importa; o que conta é a máquina posta em funcionamento, a formosura infernal dos chifres que se elevam subitamente à sua razão de ser.

Assim, instala-se o horror em plena rua, com um duplo padrão: o horror do que sucede, disso que, claro, sempre seria menos horrível lido no jornal ou visto num filme para uso de herdeiros; e o horror de estar cravado na plateia sob o olhar de Jaibo-Buñuel, de ser mais que testemunha, de ser – caso possua-se integridade suficiente – cúmplice. Jaibo é um anjo, e pode-se vê-lo bem na nossa cara quando olhamos um para o outro ao sairmos do cinema.

O programa geral de Os esquecidos não passa e não quer passar de uma seca exposição. Buñuel ou o antipatetismo: nada de enfoques aflitivos como em Kuksi (Em algum lugar da Europa[iv]) ou documentação detalhada de um caso (Perdidos na tormenta[v]). Aqui os garotos morrem a pauladas e sem perda de tempo, perdem-se nas ruas sem nada mais que um talismã no pescoço e um poncho no ombro; aparecem e sucumbem como as pessoas que encontramos e perdemos nos bondes; a propósito, para que sintamos nossa alienação responsável.

Buñuel não nos dá tempo de pensar, de querer fazer algo ao menos com um movimento de consciência. Jaibo puxa as cordas, a coisa segue. “Tarde demais”, ri o anjo feroz. “Deveria ter pensado nisso antes. Veja-os agora morrerem, degradarem-se, perambularem no lixo”. E leva-nos delicadamente pelo pesadelo. Primeiro, a um carrossel empurrado por crianças ofegantes e exaustas no qual outras crianças que pagam montam os cavalinhos com a dura alegria dos reis. Depois, um caminho deserto, onde um bando ataca um cego, ou a uma rua onde assaltam um homem sem pernas e deixam-no de costas no chão, monstruoso de impotência e angústia, enquanto seu carrinho perde-se rua abaixo.

Uma a uma, as figuras do drama caem a seu nível básico, o mais baixo, o que as formas dissimulavam. Pessoas nas quais tínhamos alguma confiança, se degradam no último momento. Há três inocentes totais, e são três crianças. Uma, “Olhinhos”, se perderá na noite com seu talismã no pescoço, envelhecido aos dez anos; outra, Pedro, está a ponto de salvar-se, mas Jaibo vigia e devolve-o a seu destino, o de morrer a pauladas num paiol; a terceira, Metche, a menina loira, receberá a primeira grande lição de vida, a cargo de seu avô: deverá ajudá-lo a levar sorrateiramente o cadáver de Pedro até um depósito de lixo, por onde andará conosco na última cena da obra.

Enquanto isso, a polícia mata Jaibo, mas se percebe que esta reivindicação das formas sociais é bem mais monstruosa que os dramas desencadeados por ele; afogada a criança, Maria tapa o poço. Preferimos Jaibo, que nos fez ver, que nos dá a dimensão do poço a ser tampado antes que outras crianças caiam.

Aqui em Paris reprovou-se a evidente crueldade de Buñuel, seu sadismo. Os que o fazem têm razão e bom gosto, isto é, esgrimem armas dialéticas e estéticas. Pessoalmente, opto aqui pelas armas empregadas nas lides do filme; não sei em que um assassinato sugerido por gritos e sombras seja mais meritório ou desculpável do que a visão direta do que ocorre. No “Diário[vi] de Ernst Jünger, que acaba de publicar-se aqui, o autor e seus amigos do comando alemão “ouvem falar” das câmaras letais onde se exterminam judeus, coisa que produz neles “profunda inquietação”, porque poderia ser verdade…

Assim também as dissimulações do horror inquietam parcimoniosamente o público; por isso é bom que de tempos em tempos a um cavalheiro possa chegar o assado e a pêra melba, e para isso serve Buñuel. Eu devo-lhe uma das piores noites de minha vida, e espero que minha insônia, mãe desta nota, seja útil a outros para um trabalho mais direto e fecundo. Não creio demasiadamente na docência do cinema, mas sim na lenta maturação dos testemunhos. Um testemunho vale por si só, não por sua intenção exemplar. Los olvidados varre a maioria dos filmes convencionais sobre problemas de infância; ao acabar com eles, situa e delimita sua própria importância. Como certos homens e certas coisas, é um farol tal como o entendia Baudelaire; talvez sua projeção nas telas do mundo convertam-no num “grito repetido por mil sentinelas…”[vii].

Esta noite lembro-me do senhor Valdemar[viii]. Como as pessoas do subúrbio de Buñuel, como o estado universal das coisas que o torna possível, o senhor Valdemar já está decomposto, mas a hipnose (imposição de uma forma alheia, de uma ordem que não é a sua própria) mantém-no numa vida enganosa, uma aparência satisfatória. Contudo, o senhor Valdemar está ao nosso lado, e todos rodeamos o leito do senhor Valdemar. Então entra Jaibo.

Julio Cortázar (1914-1984), jornalista e escritor, é autor, entre outros livros, de Os prêmios.

Tradução e Notas: Fernando Lima das Neves

Artigo publicado na Revista Sur. Buenos Aires, n. 209-210, março-abril, 1952, p. 170-172. O texto foi redigido em dezembro de 1951 em Paris, alguns meses depois do filme de Buñuel vencer o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes.

Notas


[i]           L’âge d’or. Diretor: Luis Buñuel. França, 1930.

[ii]          Perse, Saint-John. Anabase (trad. José Daniel Ribeiro). Lisboa: Relógio D’Água, 1992 [1924]. p. 75. O trecho completo é: “Mas de meu irmão, o poeta, tivemos nós notícias. Mais uma vez escreveu uma coisa muito doce. E alguns dela tiveram conhecimento…”.

[iii]         Los olvidados. Diretor: Luis Buñuel. México, 1950.

[iv]         Valahol Európában. Diretor:Géza von Radványi. Hungria, 1948.

[v]          The search. Diretor: Fred Zinnemann. Suíça/EUA, 1948.

[vi]         Jünger, Ernst. Journal I (1941-1943). Paris: René Juliard, 1951 [1949].

[vii]        Baudelaire, Charles. As flores do mal (trad. Júlio Castañon Guimarães). São Paulo: Cia. das Letras, 2019 [1857]. p. 81.

[viii]       Poe, Edgar Allan. “La verdad sobre el caso del señor Valdemar”. Cuentos (trad. Julio Cortázar).  Madri: Alianza Editorial, 2002 [1845]. p. 61-66.

Outros artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Jean Marc Von Der Weid João Carlos Salles João Sette Whitaker Ferreira Marjorie C. Marona Dennis Oliveira Denilson Cordeiro João Carlos Loebens Michael Roberts Alexandre Aragão de Albuquerque Antonino Infranca Yuri Martins-Fontes Marcos Aurélio da Silva Paulo Fernandes Silveira Alexandre de Freitas Barbosa Gabriel Cohn Lucas Fiaschetti Estevez Maria Rita Kehl Luis Felipe Miguel Carla Teixeira Carlos Tautz Francisco de Oliveira Barros Júnior Eugênio Trivinho João Feres Júnior Celso Frederico Vladimir Safatle Manchetômetro Michael Löwy Matheus Silveira de Souza Annateresa Fabris Dênis de Moraes José Machado Moita Neto Henry Burnett Bruno Fabricio Alcebino da Silva José Luís Fiori Luiz Marques Everaldo de Oliveira Andrade José Geraldo Couto Anderson Alves Esteves Fábio Konder Comparato Francisco Pereira de Farias Daniel Brazil Luís Fernando Vitagliano Luiz Renato Martins Berenice Bento Airton Paschoa Daniel Costa Flávio R. Kothe Marilia Pacheco Fiorillo Fernando Nogueira da Costa André Singer Rubens Pinto Lyra Marcelo Guimarães Lima Gilberto Maringoni Otaviano Helene Valerio Arcary José Dirceu Ricardo Abramovay Fernão Pessoa Ramos Henri Acselrad Tadeu Valadares Samuel Kilsztajn Ricardo Fabbrini Antonio Martins Benicio Viero Schmidt Lincoln Secco Leonardo Boff Gilberto Lopes Bento Prado Jr. João Lanari Bo Ronald León Núñez Ari Marcelo Solon Antônio Sales Rios Neto Tales Ab'Sáber Liszt Vieira Eduardo Borges Paulo Sérgio Pinheiro Roberto Bueno Paulo Capel Narvai Eleutério F. S. Prado Elias Jabbour Leonardo Avritzer Afrânio Catani João Adolfo Hansen Ricardo Antunes Vinício Carrilho Martinez José Micaelson Lacerda Morais André Márcio Neves Soares Paulo Martins Marcelo Módolo Vanderlei Tenório Caio Bugiato Mário Maestri Milton Pinheiro Marcus Ianoni Alexandre de Lima Castro Tranjan Leda Maria Paulani Valerio Arcary Thomas Piketty Walnice Nogueira Galvão Igor Felippe Santos Armando Boito Bruno Machado Flávio Aguiar Anselm Jappe Ronaldo Tadeu de Souza Juarez Guimarães Sandra Bitencourt Alysson Leandro Mascaro Daniel Afonso da Silva Ronald Rocha Ricardo Musse Remy José Fontana Jorge Branco Lorenzo Vitral Priscila Figueiredo Bernardo Ricupero José Costa Júnior Andrew Korybko Chico Alencar Francisco Fernandes Ladeira Luiz Werneck Vianna Leonardo Sacramento Kátia Gerab Baggio Luiz Bernardo Pericás Renato Dagnino Atilio A. Boron Luciano Nascimento Gerson Almeida Julian Rodrigues Tarso Genro Plínio de Arruda Sampaio Jr. Eleonora Albano Jean Pierre Chauvin Osvaldo Coggiola Manuel Domingos Neto Eugênio Bucci Luiz Carlos Bresser-Pereira Heraldo Campos Slavoj Žižek Claudio Katz Sergio Amadeu da Silveira Ladislau Dowbor Roberto Noritomi Celso Favaretto Rodrigo de Faria Marcos Silva Salem Nasser João Paulo Ayub Fonseca Luiz Roberto Alves Rafael R. Ioris Mariarosaria Fabris Marilena Chauí Érico Andrade Luiz Eduardo Soares Boaventura de Sousa Santos Jorge Luiz Souto Maior Chico Whitaker José Raimundo Trindade Paulo Nogueira Batista Jr Eliziário Andrade

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada