Por MARLENE DE FÁVERI*
Prefácio da autora à nova edição do livro “Memórias de (uma) outra guerra: cotidiano e medo durante a Segunda Guerra Mundial em Santa Catarina”.
1.
Há vinte e cinco anos eu imergia num sem fim de fontes de pesquisa, as quais diziam-me de uma “outra guerra” que até então desconhecia. À medida que compulsava documentos oficiais e processos instaurados pelo Tribunal de Segurança Nacional, jornais, cartas, fotografias, relatórios paroquiais, correspondências oficiais ou não, arquivos privados dentre outros, também ouvia relatos de pessoas que viveram no tempo da guerra, mais evidências apareciam da real existência de guerra interna que, mesmo sem canhões nem trincheiras, colocava “eixistas” contra “nacionalistas”. Estas fontes e relatos diziam-me das tensões vividas pela população nas relações cotidianas dos anos finais da década de 1930 e início dos anos 1940 no estado de Santa Catarina durante a Segunda Guerra Mundial.
Do original como tese de doutoramento defendida em 2002 na Universidade Federal de Santa Catarina, o livro Memórias de (uma) outra guerra: cotidiano e medo durante a Segunda Guerra Mundial em Santa Catarina, recebeu a primeira edição em 2004 (Editoras UFSC e Univali). No ano seguinte, já com a 2ª edição, o livro recebeu o prêmio “Lucas Alexandre Boiteux – História”, concedido pelo Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina. A obra passou a ser referência para novas pesquisas sobre o assunto haja vista a escassez de escritos sobre os anos da Segunda Guerra na perspectiva do cotidiano mais ordinário vivido nas franjas da experiência desta “outra” guerra em Santa Catarina.
Esta terceira edição, produzida pela editora Insular (2024), mantém a escrita original das edições anteriores, porém revisada, atualizada e ampliada. No texto original, o tema das células nazistas não foi um problema de pesquisa à época (2002), não que não existissem eventos isolados, mas porque não eram tidos como ameaça, e logo eram esquecidos. Com a ascensão brutal da extrema direita e o rescrudescimento de grupos neonazistas em escala mundial, até com veículos das mídias que legitimam estes discursos, o nazismo e o fascismo em sua gênese tem sidos revisitados na tentativa de compreender manifestações atuais.
2.
Muitas são as especulações em torno da pergunta: por que o estado de Santa Catarina lidera o avanço do neonazismo no Brasil? Com apenas 3% da população brasileira, de 2021 para 2022, foram identificadas 320 células neonazistas ativas, o que representa mais de um quarto dos 1.117 grupos catalogados no país. Blumenau, em julho de 2023, estava entre as cidades com maior número de agrupamentos neonazistas, e, em abril de 2024, constam 63 células (aproximadamente 30% do total no estado) conforme relatório apresentado à Organização das Nações Unidas (ONU) pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) no qual considera o cenário atual alarmante.[1]
Com frequência recorre-se ao fator imigratório – Santa Catarina foi um dos estados que mais recebeu imigrantes alemães tanto na primeira leva, de 1870 a 1900, e no pós Primeira Guerra, entre 1918 e 1933. Todavia, vincular estes grupos neonazistas somente à imigração alemã não se sustenta. Santa Catarina é um dos estados onde as oligarquias inseriram-se fortemente na esfera política, revezando-se no poder em benefício de uma elite econômica ávida na manutenção de seus privilégios através de laços e redes pautadas no conservadorismo, e este é outro fator a considerar para o alargamento destes grupos com características de extrema direita.
Estas elites, portanto, abrigavam-se no convívio entre pares estabelecendo uma espécie de “coronelismo disfarçado”, na análise do historiador João Klug, sendo que o neonazismo é “o velho nazismo acondicionado em uma nova sociedade e aplicado em grupos de extrema direita”.[2]
No contexto anterior à Guerra Mundial (1939-1945), entre 1928 e 1938, no Brasil, o Partido Nazista, fundado em Timbó (SC), foi o maior grupo partidário fora da Alemanha, com 2900 integrantes, funcionando em 17 estados brasileiros. Integrantes deste partido faziam passeatas, ostentavam seus símbolos e conviviam na sociedade entre seus pares. Getúlio Vargas, temeroso das forças políticas crescentes, decreta o Golpe do Estado Novo em novembro de 1937 e põe na ilegalidade partidos ou agremiações, fossem nazistas, integralistas e, claro, comunistas.
Com o advento de Segunda Guerra, muito embora Getúlio Vargas até então flertasse abertamente com o nazismo, foi pressionado e tomou o lado dos Aliados. Criou um aparato repressivo contra os “súditos do Eixo”, como denominavam aqueles que defendessem a Itália, Alemanha e Japão, empreendendo feroz campanha que autorizava a prisão e, para os nazistas, a abertura de campos de concentração, mobilizando o Tribunal de Segurança Nacional (dois campos em Santa Catarina e cerca de quinze no país).
Pouco antes do armistício, em maio de 1945, estes presidiários usaram do expediente que lhes concedia pedidos de perdão através do Conselho Penitenciário do Estado (também nos outros Estados) e diretamente a Getúlio Vargas, sendo perdoados e liberados pelo final do ano de 1944 e início de em 1945. O Decreto-lei n. 7.474, de 18 de abril de 1945, concedeu anistia a todos quantos tenham cometido crimes políticos desde 16 de julho de 1934 e, o Decreto-lei n. 7.723, de 10 de julho de 1945 suspendeu os efeitos do decreto-lei 4.166, de 11 de março de 1942 que dispunha sobre indenizações em forma de confisco dos depósitos bancários cobradas dos alemães, italianos e japoneses como forma de reparação pelas agressões praticadas pela Alemanha nos ataques aos navios brasileiros.[3]
Finda a guerra, houve uma espécie de pacto de silêncio: era preciso esquecer rusgas, prisões e perseguições ocorridas durante a guerra. Este “apagamento” da memória era necessário para a convivência e o retorno das elites políticas e econômicas, às esferas de comando do estado catarinense. Nas décadas seguintes, são eleitos representantes destas elites que retornam às hostes da esfera política. Santa Catarina apoiou o golpe militar de 1964, estabeleceu governos municipais com apoiadores do regime com participação ativa na Operação Barriga Verde e na Novembrada.
Na “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, ocorrida em Florianópolis no dia 17 de abril de 1964, a primera-dama do estado congratulava-se com a vitória do movimento militar e, como “mãe cristã e esposa do governador do Estado”, exaltava Castelo Branco a quem atribuía a “segurança da Pátria livre” e “salvaguarda das tradições cristãs e democráticas” notadamente anticomunistas.[4] Esta digressão na história evidencia a ligação estreita com os mesmos ideários propalados hoje nos parâmetros do fascismo cujas representações apresentam os mesmos tons religiosos de discurso moral e modelo de mulher patriota. É o que se houve nas tribunas, hoje. Seria mera coincidência?
3.
Estudos recentes têm demonstrado como nazistas em fuga da Alemanha (camuflados com a ajuda de empresários estabelecidos na América, de bispos católicos e com documentos falsificados) ocuparam cargos nos exércitos participando ativamente nos golpes militares na América Latina, como bem demostrou o jornalista Uki Goni na obra A verdadeira Odessa: o contrabando de nazista para a Argentina de Perón.[5] Não é falacioso dizer que métodos de tortura na Alemanha nazista foram utilizados contra opositores dos regimes militares na América Latina e no Brasil. E na Operação Barriga Verde, como bem demonstrou Celso Martins.[6]
A antropóloga Adriana Dias comprovou a ligação do ex-presidente da República que, em 2004, mantinha sua base composta por neonazistas.[7] Recentemente houve o encontro de Eduardo Bolsonaro com a neta de ministro nazista de Hitler, hoje vice líder da AFD, sigla da extrema direita na Câmara alemã, apontada como membro da ala “cristã ultraconservadora”.[8] Em 2021, o então presidente Jair Bolsonaro já havia posado ao lado da vice líder da AfD. Nada de novo no front, portanto.
Elementos de continuidade de práticas nazifascistas do passado para manifestos discursos do ideário neonazista, embora ressignificados, pautam-se na mesma lógica da destruição. Adriana Dias observa que o ódio é cultivado sobre um tripé: a meritocracia, ou a crença de que os mais aptos têm direitos conquistados; a supremacia, ou ideia de que os brancos merecem este lugar e qualquer estranho à sua cor da pele é usurpador de seus privilégios e, portanto, inimigo a ser eliminado; e a misoginia que desqualifica e propala o ódio às mulheres. Todos estes braços do tripé coreografaram práticas virulentas antes e durante os anos do (des)mandante de coturnos.
A extrema direita contemporânea apropria-se do elemento teocrático: abriga-se na defesa de um único deus de cor nórdica, uma pátria militarizada e uma única forma de família, patriarcal, branca, heterossexual, banindo todas as diferenças com fúria e violência. O Brasil acima de tudo, lema apropriado do nazismo, Deus, Pátria, Família, do fascismo de Benito Mussolini, apropriado do Integralismo nos anos 1930 e, com outras palavras, pelo governo Vargas, reapropriado mais recentemente pela direita religiosa na mesma onda espúria de cooptação de almas. E tem se espraiado sem nenhum pudor com discursos e práticas, contra o comunismo, o feminismo, o socialismo, os direitos humanos, as pessoas não brancas e as formas democráticas de representação política.
A busca de votos para ascender ao poder político e, sobretudo, econômico, move-se hoje ancorada na Teologia do domínio, alçada no Velho Testamento ou na vingança “olho por olho, dente por dente”. Religiosos revelam-se peões do doutrinamento para a usurpação, em nome de um deus (como o culto a Israel e Jerusalém) revertem-se em moedas que favorecem escusos interesses para usos políticos e enriquecimento ilícito de grupos ávidos do poder e privilégios.
Aliados à extrema direita internacional, controlam máquinas na produção desenfreada de mentiras, discursos de ódio, negacionismo, obscurantismo, imposição violenta e recalcitrante de teorias conspiratórias. Eficiente, mobiliza “ressentimentos e ódios a favor de suas causas nazifascistas e fundamentalistas”, na análise precisa de Marcos Dantas.[9] Bertold Brecht já alertava que “O fascismo não é o contrário da democracia burguesa, é a sua evolução em tempos de crise” sendo ele “a verdadeira face do capitalismo”.
4.
Falar sobre um tema como o nazismo e o neonazismo significa que não podemos esquecer suas origens destruidoras, conhecer como se reatualiza e buscar formas de combatê-lo. Michel Foucault[10] nos ensinou que discursos têm força, sejam para o bem ou para o mal, e sua ordem traça uma relação íntima entre saber – conhecimento – e poder. Essas forças discursivas para a destruição reverberam em práticas violentas e excludentes, como também tem ocorrido com mulheres eleitas para a esfera pública política e que vem sofrendo violência política de gênero.
A presidente Dilma Rousseff deposta, a vereadora Marielle Franco assassinada, a vereadora de São Miguel do Oeste, em Santa Catarina, Maria Tereza Capra teve seu mandato cassado, esta última, pasmem, por denunciar uma manifestação notadamente neonazista em novembro de 2022. E há outros, e outros e mais outros casos nesta direção.
Depoimentos colhidos dos processos crime instaurados pelo Tribunal de Segurança Nacional mostram que, mesmo sobre pressão, prisioneiros interrogados mantinham a crença na superioridade da raça alemã e juravam fidelidade ao Führer, reafirmando o sentimento de pertencimento às origens pautado na germanidade. “A Alemanha de Hitler resgatava e oficializava o sentimento de ‘pertencimento’ do povo alemão à nação alemã, cujas origens remontam ao pangermanismo e ao anti-semitismo eliminacionista germânicos manifestos desde a segunda metade do século XIX”, afirma a historiadora Maria Luíza Tucci Carneiro.[11]
Num dos processos crime do Tribunal de Segurança Nacional consta que, na residência do preso político Hans Walter Taggesell,[12] engenheiro alemão radicado em Lages, Santa Catarina, foram encontradas aproximadamente 100 cartas em alemão e a transcrição para o português, escritas entre 1929 e 1942, ano em que foi detido e enviado ao Campo de Concentração em Trindade, Florianópolis.
A leitura destas cartas detalha as impressões depreciativas sobre brasileiros e brasileiras, a defesa da raça branca, o trabalho cooptação e doutrinação para a causa alemã e o nazismo – “Não obstante ter-me posto à disposição da embaixada alemã, nós aqui somente podemos limitarmos a difundir tanto quanto possível a verdade sobre a Alemanha e isto também é feito com todo o esforço” numa carta em 1939. Além das cartas, 44 fotografias apreendidas mostrando desfiles cívicos na Alemanha, Hitler com crianças, homenagens à pátria alemã, etc.
Em outro processo, Hans Peter Petry,[13] de Joinville, detido em março de 1942, é descrito “como arraigado elemento nazista, cujas atividades são nocivas aos interesses nacionais. No depoimento do acusado, consta ter dito que “continua nazista (…) e que os que abandonarem o nazismo serão traidores”, pois se o decreto do governo brasileiro fechou o partido nazista “não extinguiu o sentimento nazista, e que o verdadeiro alemão o traz em seu coração.”
A campanha de Vargas foi eficaz, pelo menos ao que se propunha naquele momento, prendendo, perseguindo e isolando nazistas e mesmo suspeitos. Todavia, o silenciamento no pós guerra não arrefeceu o sentimento nacionalista em torno da pátria alemã e do ideário supremacista cujos méritos e vantagens sociais, materiais, econômicas e simbólicas entendiam serem direitos por conta da branquitude. Quanto desse sentimento foi cultivado nos espaços privados e de sociabilidades, também individuais? O sentimento de humilhação, desonra, rancor, impotência diante das perdas econômicas e simbólicas durante a perseguição suscita interrogar: quais memórias foram esquecidas e quais ressentimentos transformaram-se em ódios e/ou sentidos de revanche?
Pierre Ansart propõe a atenção para uma história dos ressentimentos: “O ódio recalcado e depois manifestado cria uma solidariedade afetiva que, extrapolando as rivalidades internas, permite a reconstituição de uma coesão, de uma forte identificação de cada um com seu grupo”.[14] Se parece forçoso pensar os sentidos da história levando em conta subjetividades e ressentimentos, este argumento cabe, hoje, dadas as manifestações já rotineiras destes agrupamentos neonazistas.
Evidente que não é o mesmo nazismo de sua gênese mas vem se multiplicando para o aqui e agora imerso na ideologia racista, sexista, misógina, nacionalista, xenófoba, belicista, homotransfóbica, anticomunista, armamentista, negacionista e, sobretudo, violenta. Todavia, ninguém nasce fascista, mas torna-se fascista, nazista e preconceituoso nas relações de convívio, especialmente no convívio familiar e de grupos entre os seus.
A analogia ao ovo da serpente continua oportuna, infelizmente. A frase foi dita no filme O ovo da serpente foi ultizada como a preanunciar o “mal em gestação” que crescia nos anos que antecederam o crescimento do nazismo na Alemanha. “É como o ovo da serpente. Através das finas membranas, você pode claramente discernir o réptil já perfeito”,[15] nas palavras do Dr. Vergerus, um médico dedicado a fazer experimentos com o cérebro das pessoas e assim controlar mentes, comportamentos e torná-las manipuláveis e sem autonomia.
Shakespeare já utilizara esta analogia na tragédia quando, ao aderir a uma conspiração contra o ditador Julio Cásar, Brutus o compara a “um ovo da serpente que, uma vez chocado e por sua natureza, se tornará nocivo, razão pela qual deve ser extirpada ainda na casca”. Na época, 1977, o filme de Igmar Bergman pareceu distopia. No entanto, profético.
5.
Quando estive envolvida na escrita da tese, revelavam-se detalhes dos acontecimentos mais ordinários até então silenciados, mesmo dentro das famílias. Personagens que se movem neste livro, pelo menos aqueles em idade adulta à época, não estão mais vivos e nada mais podem contar. Alguns sobreviventes, hoje octogenários ou mais velhos, eram crianças. Como foram educadas nos recônditos dos lares? E nas escolas, as quais reproduziam costumes, língua, os sentidos de nacionalidade costurados nas sociabilidades entre iguais, o que imagnavam os infantes? As crianças e jovens perfilados em marchas cívicas, braço direito no ar jurando fidelidade a Heil Hitler (Salve Hitler, ou Sieg Heil, Salve a Vitória) quanto/como subjetivaram-se?
Dentre documentos, bandeiras, livros em língua alemã recolhidos quando da nacionalização e nos anos da guerra, levados a público na Exposição de Material Nazista organizada em Florianópolis em agosto de 1942, a maior parte compunha-se de material escolar. Algumas fotografias, escondidas e por isso poupadas da apreensão, constam de álbuns nas memórias familiares e da escolarização.
Esta fotografia[16] está no hall de entrada da Secretaria de Educação de Dona Emma, município de Santa Catarina com pouco mais de quatro mil habitantes. Na parede, repleta de quadros com imagens históricas da cidade, vemos o professor, único homem na imagem, ladeado de meninas pefiladas, todas com o corte de cabelos semelhantes, vestidas com o recato exigido à época, posando em frente da bandeira brasileira e da suástica nazista. Era meados da década de 1930. A imagem está acompanhada da legenda “A escola particular Alemã era mantida pelos pais dos alunos com recursos vindos da Alemanha”.
Em outra foto, sete homens aparecem posando enquanto um deles segura uma bandeira nazista. Na legenda, eles são descritos como “simpatizantes de Hitler em Nova Esperança”, um bairro de Dona Emma. Este minucípio abrigou células nazistas no passado e está em região com histórico de extremismo.
Há que considerar a educação destas crianças nas escolas, famílias, clubes, grupos, igrejas e perguntar quanto do ideário foi introjetado nas mentes destas crianças. Quanto do ideário estava adormecido? Cabe salientar a ausência de temas como o nazismo, suas faces e perigos nos currículos escolares. Na minha escolarização, não tive nenhuma informação sobre a guerra e o nazismo, somentre sobre pracinhas heróis da pátria. Ponto. Nem na faculdade de História o tema era desenvolvido. O silenciamento surtiu efeitos – interesses de quem?
Todavia, se generalizações são inóspitas à historiografia, naturalizações também não cabem. Estudos mostram que, do contingente de alemães e italianos imigrantes à época, somente 3% aderiu ao partido nazista e, para filiar-se, o critério era ter nascido na Alemanha (este percentual desconsidera simpatizantes nascidos no Brasil). Portanto, generalizar (re)afirmando que o estado catarinense se move nas borbulhas do neonazismo é forçar, no horizonte das expectativas, seu passado no seu devir, cristalizando as movediças experiências.
Na última eleição, se a grande maioria de eleitores deste Estado escolheu, nas urnas, um projeto de governo que flertava abertamente com o nazifascismo, uma parte consciente da sociedade pousou confiança na democracia e depositou ali suas esperanças, mostrando que há resistências. Este estado protagonizou o nascimento do MST, a Novembrada, movimentos grevistas, para citar algumas experiências.
6.
Em 2023, um grupo de pessoas comprometidas com os fins democráticos criou o Movimento Humaniza SC, entidade sem fins lucrativos, representante da Sociedade Civil para mobilizar na promoção e respeito à dignidade da pessoa humana, à diversidade e em defesa da paz. Atua no combate a todas as formas de violência, de discriminação, preconceito, intolerância, ódio, motivados por questões étnicas, credo religioso, racial, cor da pele, orientação sexual, identidade de gênero e, no intuito de derrotar fascismo e o nazismo. Todavia, é tarefa difícil.
Hoje, no estado catarinense, são recorrentes notícias de apreensões de material nazista, eventos armamentistas, estudantes envolvidos, cartazes com apologia ao nazismo nas ruas, ataques em escolas e aos professores, violências raciais, étnicas, de gênero, de homotransfóbicas e outras barbaridades do teor. Um alerta para o crescimento de grupos neonazistas no Brasil foi enviado à Organização das Nações Unidas pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e, uma comitiva deste Conselho esteve, em abril deste ano, em Santa Catarina com a finalidade de investigar células neonazistas no estado, cujo relatório contribuirá para as discussões do 55ª Reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
É de se pensar nas relações políticas de interesses (sempre capitalistas) num estado cujo governador, os três senadores, a grande maioria dos deputados estaduais e federais, prefeitos e vereadores tem ligações próximas com a extrema direita do país que defende as pautas armamentista (o recadastramento, em junho de 2023, identifica Santa Catarina o estado que mais se armou no governo de Jair Bolsonaro), negacionista, militarista, machista, supremacista, racista, coage e persegue professores, sindicatos, trabalhadores em geral, indígenas e pobres. Uma parte das pessoas deste Estado esteve envolvida na tentiva de golpe de estado ao centro do poder político naquele oito de janeiro de 2023.
Quando eu compulsava dados e escrevia, nem por distopia podia maginar que teríamos um governo deliberadamente negacionista, racista, machista, homofóbico, aporofóbico, epistemicida, biocida, gerontocida, nacionalicida, armamentista e que flertaria abertamente com o nazismo e o fascismo. Distorcendo os sentidos da liberdade de expressão, extremistas são capazes de outorgar-se o direito de violentar os bens jurídicos, violar o princípio da dignidade humana e ameaçar a Suprema Corte de forma vil e criminosa.
A democracia incomoda. Estamos reconstruindo, não sem nos dar conta dos perigos destas ideologias funestas. Hoje, em 2024, disputas pelo domínio neoliberal e ideologias conservadoras belicosas reavivam o espectro da última guerra e põem-nos alertas para a possibilidade de uma terceira guerra mundial. As tensões estão longe de cessar e mostram-se letais para vidas humanas, animais, o ambiente e os recursos naturais imprescindíveis à reprodução da vida no planeta. Para onde estamos caminhando neste mundo com tantas incertezas, temeridades, dúvidas e conflitos? A guerra é sempre uma estupidez.
Revisitar a história deve servir para lembrar e aprender com os acontecimentos destruidores do passado, mudar os rumos no presente e esperançar o futuro.
*Marlene de Fáveri é historiadora, escritora e poeta. É autora, entre outros livros, de Um corpo que goza não envelhece. (Infinitta Leitura).
Referência
Marlene de Fáveri. Memórias de uma (outra) guerra: cotidiano e medo durante a Segunda Guerra Mundial em Santa Catarina. 3a. edição. Florianópolis, Insular, 2024, 432 págs.
Notas
[1] Ver reportagem neste link.
[2] João Klug. Historiador explica por que Santa Catarina tem tantos grupos neonazistas. Ver neste link
[3] LEX 1945 – Legislação Federal, páginas 108 e 265, respectivamente. BALESC.
[4] Michel Goulart da Silva. O golpe de 1964 e a atuação política da Campanha da Mulher pela Democracia em Santa Catarina. Ver neste link
[5] Uki Goni. A verdadeira Odessa: o contrabando de nazistas para a Argentina de Perón. Rio de Janeiro: Record, 2004.
[6] Celso Martins. Os quatro cantos do sol: operação Barriga verde. Florianópolis: ed. UFSC: Fundação Boiteux, 2006.
[7] Adriana Dias. (Ver neste link)
[8] Ver a publicação neste link
[9] Marcos Dantas. A matemática da desordem informacional.
[10] Michel Foucault. A ordem do discurso. 2 ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996. .
[11]Maria Luiza Tucci Carneiro. Entre a feijoada e o chucrute.
[12] Processo-crime n. 3.307 – Hans Walter Taggesell (Apelação n. 1.640). Fichário: Santa Catarina. Tribunal de Segurança Nacional. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. Da página 05 a 107 do processo estão as cartas em alemão e, da página 108 a 124, as traduções para o português. Fica sugestão para jornalistas, historiadores ou quem se interessar, escovar a contrapelo este processo (hoje disponível online).
[13] Processo crime n. 5.150 – Hanz Peter Petry. Fichário: Santa Catarina. Tribunal de Segurança Nacional. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. Deu entrada na data de 17 de abril de 1944.
[14] Pierre Ansart. História e memória dos ressentimentos. Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas:Unicamp. 2001, p. 22.
[15] “O Ovo da Serpente”, filme estadunidense e alemão, dirigido por Ingmar Bergman, em 1977.
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