Por LUIZ ROBERTO ALVES*
Representantes políticos precisam entender que as empresas mundiais da informação influenciam, a partir de seus projetos ideológicos, todos os processos, inclusive eleitorais
1.
Provavelmente a ideia de popularidade como conhecida antes das redes e plataformas transnacionais tenha desaparecido como conceito capaz de operar projetos individuais e coletivos. Isso não impede que muita gente não veja isso e teime em não ver, especialmente as pessoas que dependem de votos no sistema eleitoral.
E quando se trata de popularidade de governos, ela oscilará tão rapidamente quanto a subida e a descida das opiniões no sistema maluco da informação e da veiculação de dados, sejam mentirosos, sejam verdadeiros. Assim como discursos bem e mal intencionados têm problematizado o devido cuidado para com o povo do Rio Grande do Sul, tudo o que gira em torno do popular e da popularidade se move e oscila como outros conceitos, a exemplo de liberdade, mensagem, narrativa, todos fortemente maltratados e emporcalhados.
O programa cibercultural e capitalista de ação mundial movido pelas empresas Amazon, Google, X, Meta etc. ganha força e consistência, isto é, construir camadas mundiais de alienação, pois a informação que voa a gigas e teras não é informativa e sim apelativa. A alienação se tornou um forte poder de exclusão na virada da cibercultura.
Por suposto, representantes políticos terão de entender que as empresas mundiais da informação (que se interessam muito pouco pela comunicação) pretendem influenciar e determinar, a partir de seus projetos ideológicos, todos os processos, inclusive eleitorais. Do mesmo modo, representantes precisam tomar consciência do que está a ocorrer com pessoas, grupos e organizações neste tempo histórico. Saber que vivemos revoluções culturais.
Linguistas do último século criaram e demonstraram uma organização perfeita para as funções da linguagem humana, indutoras diretas dos atos de comunicação entre todas as pessoas. Havia nesse pensamento lugar para o apelativo, ou conativo, mas com presença e força iguais às funções referencial, poética, fática, metalinguística e à própria emoção emitida de quem fala ou escreve, como vimos no brilhante linguista Roman Jakobson e nas literaturas das várias línguas.[i]
No entanto, a volúpia do lucro e do poder elegeu, no meio da revolução cibernética, a função do apelo, próxima ao convencimento das pessoas a qualquer custo, ao grito, à resposta imperativa, independentemente de polarizações. Não é moda, é um continuum já absorvido, de que não escapam dirigentes, lideranças, governantes ou aspirantes ao poder de qualquer naipe.
Um detalhe interessante. Em tese, esse mundo apelativo da propaganda, do marketing, das minerações e do comércio de dados de todo mundo, realizados pelas empresas mundiais, poderia favorecer os apelos políticos na busca de fidelidade partidária e pessoal, o que significaria também votos. Mas o poder desse novo garimpo cibercultural pretende ir muito além de favorecer esta ou aquela tendência política. De fato, deseja que todo o poder dos grupos e facções políticas tenha “rabo preso” aos novos garimpeiros e predadores do mundo e, especialmente, que os setores de esquerda sejam metidas com a máxima profundidade no processo de alienações.
Não é isso que se vê atualmente? A direita se ilude redondamente com os projetos do novo mundo da informação, mas tenta se aproveitar da falsa ideia de liberdade criada pela sua suposta “teologia” vazia e nada bíblica. A esquerda, de seu lado, já imergiu em vários graus de alienação e se perde continuamente. É evidente que todo o processo é complexo e envolve saberes e ciências. No entanto, o selo da condição humana, a linguagem, é que veicula e revela tudo.
Nesse processo, conceitos caros à comunicação oscilam tanto que desaparecem, pois no apelo imperativo lucrar também significa impor e negar, dirigir e cancelar. Aí entra, por oposição, o que se entendeu por muito tempo como fidelidade política, também já obscurecida e em processo de obsolescência; talvez capaz de dar lugar, se for possível criar e manter novas resistências, a uma espécie de laço construtivo de pensamento-ação. Este talvez não desapareça, mas ficará restrito a formas mais duras de ação cultural, construídas por pessoas e grupos em suas relações sociais. No entanto, tal construção exigirá uma franca desconfiança no programa alienante em vigor e, em seguida, um método capaz de construir laços de pensamento e prática, que serão educativos e políticos.
Quem poderá partilhar e participar de tal projeto? Sim, existe à disposição a chance de um novo aprendizado político das pessoas que têm poder baseado no voto. Trata-se de construir e não operar convencimentos. Como exercício de aprofundamento de argumentos, cabe demonstrar que provavelmente a popularidade de qualquer representante eleito tenha muito pouco a ver com omarketing político, que operou bastante em sociedades mais receptivas e apropriadoras de funções da linguagem humana do que esta em que vivemos. O marketing sobreviverá, como saber científico, se criar novos métodos dentro de largo conceito de comunicação.
Já houve popularidades muito fortes. Parece, hoje, que até a ideia de popularidade entre estudantes de ensino fundamental e médio começa a sumir ou mofar no jogo das redes. Por certo, foi comum a manipulação desse conceito, entre buscas do ser adolescente e caneladas. Popular era o menino ou a menina com boa lábia, com algum poder familiar, insinuação sobre temas em disputa durante as aulas e, evidentemente, capacidade de persuasão. O popular ou a popular se movia virtualmente pelas casas dos não populares e suas práticas distribuíam falas, escolhas e julgamentos de pais, irmãos, professores e gestores escolares.
Ao fim e ao cabo, quase nada restava depois de novos acontecimentos que moviam a gangorra das predileções ou das imposições da popularidade. Ou quando terminava o ano ou o período. Fogo fátuo. Mas sempre tiveram a força de atos políticos e, de algum modo, simbolizavam os modos de ser e fazer da sociedade no espaço do aparelho escolar. Se formos capazes de renhidas resistências e inovadoras proposições, não haverá mais popularidade e sim novos laços-compromissos.
Sequer popularidade significa, hoje, investimentos e gastos em troca da fidelização de setores da sociedade. Está a morrer, também, qualquer sentido para a ideia de promessa eleitoral, já revirado no jogo binário do sim e do não, da boa fé e da má fé, da mera obrigação circunstancial dos representantes eleitos e dos feitos sociais que de fato representam necessidades e desejos das populações. Portanto, muito além da banalidade de bilhões oriundos de emendas parlamentares. Isso, independentemente do fato de que as pessoas gostem de receber benefícios para suas cidades e regiões.
Já chegou ao cérebro de milhões de pessoas, até dos silenciosos, a perda de significação de investimento resultante de impostos e tudo, ou quase tudo, é passageiro em face da silhueta da morte na biosfera violentada a sacudir os corpos repletos de dados inúteis que comprometem a vida social. A condição da biosfera, que tem pouco a ver com os modos de administrar de governos em suas várias instâncias, revela a banalidade do que se faz e da cata aos votos sobre os feitos. Evidentemente esta reflexão é para quem crê, inclusive no pior, e para quem pensa, como Freire, que a história é possibilidade… isto é, continuará a ser uma arte do possível à espera das novas formas de consciência.
Considere-se, pois, que, as desigualdades são tão flagrantes e as necessidades tão urgentes que, sob influxo das digitalidades e do desarranjo total da informação nos smartphones e computadores, tudo tende a passar (em leitura mais premente do que aquela feita no tempo barroco) e só experiências coletivas profundas serão capazes de criar alguns laços, que também irão para o brejo se não forem cuidados continuamente. A força da cultura em ação no domínio da política, que pode ir das crenças e mitos até os mais legítimos valores da democracia, deve pôr sob alerta os que ainda creem na gangorra política, no vai-e-vem dos eleitores e na tradição da fidelidade a representantes.
Caminha-se para eleitores que, ao buscar o diálogo com infovias, e descobrir sinais da enganosa pós-verdade, aumentem exigências ao limite de sua humanidade, que será uma atitude eco-política. Ainda que representantes eleitos desejem – ou forcem na mão – para que a sociedade periférica do capitalismo seja a de ontem e de anteontem, há imensas perdas de significação no campo semântico que se entendeu como popularidade e que foi capaz de se transformar em voto. Não faltará, por suposto, alguma memória por ocasião dos dias de votar e que projete nomes, fatos e feitos, mas essa memória vai sendo revirada na volúpia da informação e suas diversíssimas direções.
Esse binarismo multiplicado até a ânsia da informação, quando distribuído por muitas fontes de coleta e frentes de dados produz a indistinção de lugares, fatos e fenômenos antes conhecidos e que, distintamente, agora exigem muito mais para serem reconhecidos. Seria mais fácil a sociedade dividida em duas partes a despeito da fraqueza partidária e, portanto, polarizada. Parece, até, já haver sinais de alguma saudade da polarização. Mas a polarização não resiste ao cotidiano humano, à luta pela vida, ao trabalho desconjuntado, ao incômodo das submissões e à loucura dos dados.
O mínimo de liberdade, hoje (ao contrário do que jura a ultradireita), consiste em mover atos de desconfiança e mesmo ceticismo diante da informação. Poderia ser o contrário, isto é, melhor acomodar-se na polarização? Sim, mas somente seria possível essa condição social com menos incômodos concretos que caem sobre pessoas, famílias, grupos. Este tipo de sociedade aprisiona pelas digitalidades, cuja ponta de lança é a informação, tão ágil quanto maluca. Portanto, que os políticos a necessitar de votos releiam o mundo e a palavra, isto é, a informação e os reversos da informação, ou seja, o mundo como anda no fazer das pessoas, grupos e classes.
2.
Longe de qualquer marketing, provavelmente só um processo intenso de comunicação social apoie nova memória, novo reagrupamento, novas asserções sobre o que é bom, ético e o que permanece na sociedade.
Nos anos de 1920/1930 a edificação de casas de trabalhadores e a construção de um estádio esportivo, no caso de SP, fez-se por intensa comunicação pública. Quem estudou o período viu anúncios, respostas, inquéritos públicos, questionamentos, expectativas e participação social. E não havia redes e plataformas como as temos hoje. Redes outras ser formaram em torno das necessidades e desejos, diante dos quais a comunicação já era parte da feitura das coisas. Lembremo-nos do filósofo espanhol-colombiano: toda a mediação social é movida pelas culturas, que se espraiam nas asas da comunicação e não somente da informação, que se limita ao dado.
A construção da Constituição em 1988 marcou a criação de laços, a partir da própria criação linguística de pessoas, grupos, organizações e instituições, capazes de chegar aos povos antes invisíveis, embora logo desfeitos na preparação intelectual e na feitura dos novos modos de fazer liberalismo no mundo, produtor de mais um neo: neoliberalismo. Noutras palavras, novas artimanhas na volúpia dos capitais.
Como decorrência desse fazer na linguagem, é admissível que as entregas de obras e os discursos sobre as obras também signifiquem muito pouco. Melhor, hoje, será fazer metalinguagem sobre o estado de espírito das populações em face do que ocorre e do que é retido e se transforma em valor para elas. Assim, há que se criar mobilização em torno da efetiva participação no fazer das políticas, programas, planos e projetos, pois em vez de uma lista de fatos e dados, ressalta o valor da boa política, da operação cidadã.
A sociedade terá de exalar o espírito dos direitos cívicos e a possibilidade concreta de cidadania no cotidiano, pois nestes lugares é que serão discutidos os feitos de governo e a atuação parlamentar, mas também o como, o por quê, para quê e onde. Aí será concretizada a comunicação. Entendida e praticada a comunicação como ingrediente básico dos feitos, será produzida a memória, sugeridas direções, refeitos os desfeitos, ampliada a mobilização e reduzidas as discórdias. Dito isso, a suposição é de que toda a ação ligada aos atos de “prender” o eleitor, cercá-lo e ganhá-lo faz água por todos os lados.
3.
É evidente que as ações movidas pelo espírito dos direitos, que acionam o processo de comunicação e movem significações dos objetos construídos, será valor de conhecimento, aprendizado, teoria prática do fazer que move a vida.
Tal método demora mais e talvez não atenda ao fazedorismo velho conhecido, mas o ganho de escala no conhecimento das gentes supera todos os atrasos, pois ele tem chance de abrir brechas na loucura do informacionismo. Para superar as infovias manobradas vorazmente, este método terá de ser concebido como valor de cidadania e ser feito como sinal da liberdade de ser e participar.
Luta político-eleitoral é sempre coisa renhida. Daí a suposição democrática das alternâncias. Nas próximas pugnas, todo mundo será proponente e fazedor de tudo. As coisas criadas serão feitas por todos que possuírem o poder da informação. Loucura criada e programada. A luta pela propriedade do feito poderá chegar à loucura. Para ir além do fiz-não-fiz, paguei com emendas e apresentei projeto, mobilizei e garanti tratores e consertos se apresenta como caminho a realização cidadã, amplamente comunicante, viva e ativa.
4.
O método para os novos laços políticos é tão árduo quanto simples. Ele se apresenta (em releitura pessoal deste colunista) num poema escrito por Paulo Freire na cidade de Genebra, abril de 1971[ii].
Ato A. É necessário que a construção de novos laços políticos nasça do vocabulário de resistência das populações, aquela parte do discurso social que não foi ainda pasteurizado, ou liquidificado nas redes; tal repositório ativo pode tratar do trabalho ou da poesia, das memórias coletivas ou das flores. Tratará da vida cotidiana.
Ato B. O trabalho com a linguagem dará suporte à desconfiança e ao questionamento diante do que se joga, se impõe e se apela na vociferação armada dos donos dos sistemas de informação, inclusive de setores da mídia.
Ato C. A linguagem cria práticas políticas, planos, projetos organizacionais e institucionais. Aí tem início a construção de vontades e sentidos de liberdade firmados nas necessidades e desejos coletivos, o que revela novos laços, embora ainda tênues.
Ato D. As vivências revelam as diferenças de discurso, gramáticas e estilos já forjados na relação entre língua e práticas sociais. Ato súbito, convidam populações ao envolvimento e ao compromisso, indutores de transformações. Os corpos movidos pelas infovias são capazes de aspirar a condição de pessoas, indivíduos e grupos que, mais que votos, erguem novas conexões, muito mais que links. A forja dos laços não obedecerá mais a linha de montagem das alienações e alucinações, mas se fará criação de vida e trabalho.
Ato E. A concretude das linguagens e/em ação, que Freire chama palavração, discurso diferente e coerente, criará forças partidárias e extra-partidárias, grupos em vez de hordas uivantes, organizações em lugar de berros e mentiras, ordenações político-tecnológicas que não se alinhem aos saberes soltos a migrar pelos lugares mais errados e erráticos. As novas gerações agradecerão ao penetrarem no umbral da consciência que se move.
As consequências políticas serão fortes e em escala crescente. Serão vistas práticas transversais de muitas conexões educativas e as pessoas aprenderão, pois só se aprende nos confrontos e nos atos de comunhão no mundo, como ocorreu quando nos alfabetizamos na relação entre escola e cotidiano. O trabalho alienado e mal pago ensejará o pensamento sobre direitos em processo de esquecimento. Tal “palavração” “tem de ser um discurso permanente”.[iii]
Oxalá sejam estas as novas exigências do fazer político, inclusive o fazer do voto.
*Luiz Roberto Alves é professor-pesquisador da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e membro da Cátedra Alfredo Bosi do Instituto de Estudos Avançados da USP. Autor, entre outros livros, de Construir currículos, formar pessoas e constituir comunidades educadoras (Alameda). [https://amzn.to/42bMONg]
Notas
[i] Linguística e Comunicação, Cultrix, 1969.
[ii] Consta das primeiras páginas do livro Pedagogia dos Sonhos Possíveis, editado pela Unesp em 2001, com especial atuação de Ana Maria Araújo Freire.
[iii] Final do poema-conversa.
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