Os temas do mundo no chão da escola

Bill Woodrow, Níquel, 1994.
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Por LUIZ ROBERTO ALVES*

Este país foi longe demais em sua indignidade executiva, legislativa e judiciária diante da formação das novas gerações

Desde 1996 a LDB, lei 9394, busca preparar a antiga escola das meninas e dos meninos, atomizada e muitas vezes esquecida (quando pública) para ser muito mais do que uma cumpridora de grades curriculares e ordens feitas pela tecnocracia regional e nacional. Para tanto, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional contou com a inteligência de gerações de educadores que passaram pelo Conselho Nacional de Educação, CNE, o qual produziu as boas e instigantes Diretrizes Curriculares Nacionais, somente divulgadas com alguma dignidade em 2013. Elas perfazem fenômenos, valores e posturas pedagógicas para a etnia e para as sociedades nativas, ribeirinhas, periféricas ao mundo urbano, nômades, especiais, da infância ao final da adolescência, isto é, para os treze anos de escolaridade. Pensou currículo como o coração da vida escolar, inclusivo, integrado, integrador e capaz de pensar o Brasil e o Mundo sem obediência cega, mas, ao contrário, com a devida curiosidade e o espírito crítico consequente.

Na base deste fazer cultural e normativo, sempre esteve assentada a consciência de que este país foi longe demais em sua indignidade executiva, legislativa e judiciária diante da formação das novas gerações, aquela gente inconclusa e inquieta que moveu a inteligência e a emoção de Hannah Arendt e dos educadores(as) brasileiros(as) que criaram o notável manifesto de 1932. Cabe outro momento para tratar da fábrica de incultura, isto é, da alfabetização de adultos (impulsionada pelo pensamento de Paulo Freire e pelo amor das alfabetizadoras e dos alfabetizadores) e o retorno à condição da obscuridade verbal pela revoltante ausência de ações culturais, vigentes na continuidade orientada doolhar, do tato, do paladar, da emoção diante da beleza e suas leituras de palavra e mundo.

Não é hora de ser bonzinho diante da república dos pistolões, da notabilidade, das excelências, da cultura dos salões e das cópias europeias e americanas. A cada geração e a cada conjunto de mandatos puderam ser contadas e muitas vezes caçadas as pessoas detentoras de poder capazes de sentir (se possível até à náusea) o horror da incultura que moveu a lentíssima alfabetização, a massa de reprovados, as pandemias de abandonos, tudo a convergir para a culpa (aquela asquerosa culpa do tipo religioso) dos que não se saíram bem e “não venceram na vida”. Nem toda a obra de Michel Foucault conseguiria convencer os adeptos difusos do horror incultural republicano a superar privilégios em nome das novas gerações encalacradas em seus rígidos cortes de classe social. Nenhuma experiência autoritária criticada na modernidade, seja talibã, seja da turma do Idi Amin ou via ação dos tiranetes daqui e dali foi pior do que o horror incultural do Brasil. Noutras palavras, o assassinato físico-simbólico operado na vida cotidiana do Brasil, entre modernizações liberais altamente seletivas, foi enunciação e enunciado do real profundo que significa o país chamado brasil.

Tais enunciações e enunciados estavam em parte profetizados em Euclides da Cunha, Lima Barreto, Portinari, Clarice, Graciliano, Zé Lins, João Cabral de Melo Neto e outras e outros vivos na memória de alguns grupos humanos que costumam ler. No entanto, sua consecução saiu pior do que a profecia dos artistas.

Os genocídios sanitário, cultural e ambiental perpetrados pelo inculto anti-governante, seus quatro filhos e sua trupe encastelada após 2019 são um lance a mais do velho xadrez da morte e de seus símbolos. A rigor, sua eleição comprova a história do horror, ainda sem imunidade futura. Décima economia do mundo? Ora, que asneira! Os meninos fora da escola a comprovam.

Só a radicalidade crítica pode redimir no país movido pelo horror incultural, visto que ele é a mais radical das atitudes desumanizadoras do “outro” e de si próprio, pois cria desvalores explícitos, se enche de culpas e nunca se realiza como sociedade efetivamente democrática. Ele é tão radical que é capaz de dar alguns exemplos dos “vencedores” no universo de humilhados e ofendidos, incapaz de ir além da obviedade e da fala medíocre ensinada pelas cartilhas do liberalismo básico.

Mas a escola é um lugar muito belo quando teima em ser comunidade educativo-inclusiva, que é um ato de escolha e julgamento e não um fado. Apesar de tudo (como poetizou Mario de Andrade), a escola medrou na história do país como a flor no asfalto de Carlos Drummond. E quem por ela se apaixonou correu para vê-la e ao seu lado ficou. Já fomos dois milhões de professores e 45 milhões de estudantes. A pandemia tirou algum percentual do magistério que cultivava a flor e ela mesma (embora tenhamos conhecido várias pandemias) meteu nas ruas alguns milhões de meninos e meninas, que não retornaram ainda e não se sabe se retornarão. Neste estranho lugar chamado brasil as populações perdem salários, diminuem a comida, fogem de gastos antes possíveis, mas seus filhos não fazem crescer a escola pública. Trata-se do velho horror incultural, que persegue e se acumplicia de ambivalências e paradoxos para afugentar a moçada sobrevivente. É um fenômeno atávico, orgulho do horror brasileiro.

Pense-se, no entanto, no lugar belo dos encontros e das socialidades. Ele ainda existe e, por obra dos apesares da história, pode crescer. Mas sofre muito, sem merecer.

Sofre até quando gente bem-intencionada impõe novas obrigações sobre o lugar dos processos formativos das novas gerações. Só nos últimos tempos, ao menos três grandes desafios caíram sobre as costas da escola, a saber: a emergência climática, o destino das redes midiáticas e a violência contra a mulher. Os três tentaculares problemas são fortemente estruturais. Enquanto o presidente e seu grupo pop-facínora-agro (forte, mas não geral ou exclusivo) mete fogo nas matas e as substitui por ralas cabeças de animais produtores de gases nocivos (para as trocas e lucros internacionais), os educadores devem batalhar pela consciência ecológica entre forças brutalmente desmedidas. É a mais banal assimetria. Outro horror incultural. De seu lado, o machismo que deixa órfãos incontáveis escolares pelo país afora deve ser trabalhado por uma estaca que finque a consciência do mal secular, diretamente associado aos horrores inculturais derivados dos modos de produção da colônia, do império e da república frouxa e frívola. No terceiro caso, todas as formas de dominação tradicionais se robustecem agora (e contam com a simpatia de vasta juventude) pelo que Muniz Sodré chamou de “armação tecnológica do mundo”, ou seja, extraordinárias extensões criadoras de sentidos na vastidão das comunicações a operar pela hegemonia estreita das grades corporações mineradoras de dados do planeta. É claro que as diversas formas de inteligência artificial podem contribuir com as ciências e as artes, mas é necessário ficar muito atento se nos serão arrancados osdedos e nos restar a munheca sem polegar e indicador, indispensáveis para tudo, física e simbolicamente. A mineração de dados por poderosos algoritmos rigidamente controlados é similar à mineração na floresta amazônica. Só serve a alguns e desgraça todos.

Pense-se com clareza. Os três desafios são, sem dúvida, coisa da escola, lugar sistemático da cultura humana movida por duas formas complementares de currículo: a base comum e os saberes diversificados. A LDB determinou que em toda escola haja as duas partes do trabalho curricular. A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) organiza os projetos, programas e planos das matrizes científicas (natureza e cultura), artes, línguas e linguagens físico-simbólicas. A dimensão curricular diversificada se organiza como valores e saberes (também científicos e estéticos) do município, do ambiente, da região e das necessidades sociais em que a escola está inserta. Inclui temas emergentes que se movem entre outros saberes e necessidades. Essa dimensão faz mover as inter, as multi e as transdisciplinaridades. Compõem os três temas-desafios em toda a sua grandeza, interações e relações sociais. Compõem, também, direitos da sociedade e dos estudantes e produzem impactos cotidianos. Ambas as dimensões curriculares se realizam num grande processo de confluência e diálogo, sem que tudo seja a mesma coisa. As distinções curriculares, sua razão científica, sua estética e sua ética é que criam os grandes valores culturais (porque confluem sem perder distinções) e concorrem para levar a meninada ao ensino de segundo grau, no qual serão mais explícitos (embora já trabalhados) os processos curriculares formadores, quer para a prática profissional qualificada desse nível, quer para o incremento de direitos inequívocos à universidade. Especialmente depois da saída (que os anjos digam amém!) de Milton Ribeiro e a trupe de todas as instituições associadas ao MEC.

Por que tais grandes temas soem ser imposições?

Porque as pessoas por onde passam tais temas (executivo, legislativo e setores do campo do direito) não entendem de composição curricular, formação de educadores, valorização salarial, desnivelamento cultural de toda a comunidade interna e externa à escola e não sabem que os horrores culturais continuam presentes nos 8 milhões de quilômetros quadrados do país. E parece que ignoram que todos os fatores citados devem ser contemplados no ato mesmo de introduzir novos temas no currículo integral da comunidade educadora.

A ideia de imposição temática se dá a partir da falsa suposição de que “a escola vai se virar e fazer qualquer coisa”, o que é um ato de violência. Os educadores e as educadoras estão cansados de fazer alguma coisa. Querem educar integralmente, o que implica valorização integral do magistério e sua comunhão com os e as estudantes e demais profissionais da comunidade.

Ainda que seja verdade em muitos lugares que a escola faz alguma coisa (e por vezes muito bem!) na maioria das vezes torna-se impossível compor uma ação curricular continuada, recorrente e integrada no tempo e no espaço. E as razões – além das burocráticas – muitas vezes residem nas próprias comunidades de onde vêm os estudantes, que projetam seu autoritarismo sobre a escola. Mas a tecnoburocracia educacional também é mais realista do que o rei e cria vieses de como as coisas devem ser estudadas, o que faz parte do horror incultural secular. Acresce-se que cada nova temática exige processos de estudo e pesquisa, porque a educação de crianças e adolescentes não é depositório de coisas feitas, especialmente por uma sociedade dividida, inconciliável, fragmentada e acostumada a projetar seus horrores sobre seus “aparelhos de estado”. Veja-se a tonteria bolsonarista da escola sem partido. Veja-se, também, o mal que significa a negação do bom debate sobre os gêneros e as orientações sexuais, evidentemente disposto nos tempos e idades adequadas das crianças e adolescentes. Na prática, em sendo impossibilitada a pesquisa e o esclarecimento sobre gêneros em seus vários aspectos, também será impossível refletir sobre a violência contra as mulheres. Será que os deputados e senadores não pensaram nisso? Nem os tribunais ou o executivo?

Dá-se o mesmo com os outros temas. Só a liberdade na organização curricular, a pesquisa e inclusão comunitária (que garantem a comunidade educadora e superam a escola solitária) permitirá pensar o futuro da comunicação, o futuro dos meios de produção que levam à concentração de poder e à desgraça meio-ambiental da nação. Em consequência, somente novos modos de pensar e construir a escola levarão à transformação da grande maioria de estudantes e famílias em ativistas pela dignidade da vida, que é o novo nome da ação ecológica.

Será que este país ainda aprenderá a dignificar a escola?

Luiz Roberto Alves é professor sênior da Escola de Comunicações e Artes da USP.

 

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