Por IAEL DE SOUZA*
Com alguns meses de governo, comprovou-se o estelionato eleitoral de Lula, acompanhado do seu “fiel escudeiro”, o Ministro da Fazenda, Fernando Haddad
1.
Venho acompanhando as notícias publicadas em alguns sites e jornais sobre a greve das instituições federais. Atualmente, estou professora da Universidade Federal do Ceará, embora tenha adentrado ao magistério superior federal em 2010, através da Universidade Federal do Piauí, onde trabalhei por 13 anos, no interior, campus de Picos e na capital, no campus de Teresina.
Um deles se destaca por algumas publicações e réplicas concedidas aos autores/professores dos institutos e universidades federais que contribuem para a análise e reflexão da greve e da atuação sindical, o site A Terra é Redonda. Pretendo corroborar nesse processo, alicerçada em algumas colocações dos nobres colegas Valter Lúcio de Oliveira, da Universidade Federal Fluminense (UFF), e Anderson Alves Esteves, do Instituto Federal de Ciência, Educação e Tecnologia de São Paulo (IFSP), aquelas com as quais tenho concordância, como também inserir outras mediações para maior e melhor aproximação possível das contradições multifacetadas e em movimento do real, sempre em devir devido as relações de força e poder medidas e em disputa.
Para começo de conversa, há um aspecto fundamental a ser ressaltado. Embora os(as) trabalhadores(as) da educação em todas as esferas da federação tenha sido um dos segmentos cuja grande maioria apoiou e votou em Luis Inácio Lula da Silva para presidente nas eleições de 2022, o feito deveu-se muito mais para retirar o bolsonarismo do poder e tentar frear a fascistização da política e da vida social do que por acordo com a proposta propagandeada na campanha eleitoral, ainda que dentre as promessas estivesse acabar (revogar) com o Teto de Gastos do governo de Michel Temer e valorizar os servidores federais, priorizando a educação e saúde, ambas extremamente atacadas durante a pandemia e o governo de Jair Bolsonaro. Também é preciso considerar a ausência de outra persona que tivesse condições de (re)unir as forças políticas para enfrentar a extrema direita em ascensão meteórica.
Porém, com alguns meses de governo, comprovou-se o estelionato eleitoral de Lula, acompanhado do seu “fiel escudeiro”, o Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, defensor dos cortes e controle fiscal, que em março de 2023 criou a Lei Complementar nº 200, conhecida como Arcabouço Fiscal, mas também designada por Regime Fiscal Sustentável que, ao fim e ao cabo, é um Novo Teto de Gastos. Quando o governo fala em corte de gastos a área mais visada, atacada e atingida é a social: saúde, educação, previdência social, etc., fundamental para a totalidade da população brasileira, principalmente as camadas populares, subalternas, vulnerabilizadas, miseráveis e carentes. Ora, educação e saúde não foram pontuadas como prioridade no discurso e propaganda eleitoral? Mentiu, enganou, traiu. Na disputa eleitoral vale tudo!
Aqueles(as) que acreditaram – uns ainda, equivocada e ilusoriamente, acreditam – que o governo Lula era(é) de “esquerda” ou “progressista” começam a ver seu Alice no país das maravilhas desmoronar após pronunciamento de Lula em cerimônia no Planalto, no dia 10/06/2024, aos reitores das universidades e institutos federais, com transmissão simultânea nas mídias sociais, decorridos dois meses de greve das universidades e institutos federais, e já mais de três meses dos técnicos administrativos em educação (TAE’s).
Como dito por José Dirceu – apesar de ter várias críticas a sua atuação, não nos impede de reconhecer a justeza da sua afirmação –, o governo Lula é de “centro-direita”, e não é de agora. Mauro Iasi (2012), em sua tese de doutorado, publicada pela Expressão Popular, intitulada As Metamorfoses da Consciência de Classe: o PT entre a negação e o consentimento, demonstrou o transformismo político vivido pelo partido ao longo dos seus Congressos na década de 1980 e 1990, deixando de ser anticapitalista, anticolonialista e antiimperialista e de “namorar” com o projeto socialista, colocando a tomada do poder de Estado via eleitoral e sua manutenção como objetivo primeiro e último, afastando-se cada vez mais das bases sociais que o geraram e de atuar junto a elas. Acabou tornando-se tudo aquilo que criticava, enquanto oposição, sobre os demais partidos então existentes.
Lula deixa de ser o sindicalista, o metalúrgico, o trabalhador migrante que marcou sua história e passa a ser outra coisa, muito mais próxima da lógica de reprodução do poder instituído e dominante do que se possa imaginar. As mudanças no discurso, nos posicionamentos, no jeito de se vestir e falar, nas cenas das propagandas eleitorais a que concorreu podem ser observadas e atestadas mediante uma busca pela internet, de 1989 ao pleito de 2002.
Tanto no primeiro como no segundo mandato, Luis Inácio Lula da Silva não rompeu com o projeto político-econômico neoliberal iniciado por Fernando Collor e consolidado, infraconstitucionalmente, pelos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (foi em seu governo que se aprovou a reeleição presidencial). Lula de 2002 já era um social-(neo)liberal (CASTELO, 2013).
Logo, o primeiro equívoco crasso dos dirigentes sindicais é afirmar que o governo Lula é um governo “progressista”, de “esquerda” e “democrático”. Aliás, costumam referir-se à democracia de modo muito genérico quando, na verdade, não existe “democracia pura”, como bem lembrado por Lênin (1979). Ou se trata de democracia liberal (interesses de rentistas, financistas, empresários, banqueiros, enfim, capitalistas) ou de democracia dos(as) trabalhadores(as) do campo e da cidade. O que chamam de democracia é, de fato, a democracia liberal (ou social-democracia e não “democracia social”, democracia direta, exercida pelos-as trabalhadores-as do campo e da cidade), onde os interesses de uma minoria são transformados em interesse da maioria por artimanhas jurídicas (SOUZA; PIOLLI, 2018).
Se se parte do princípio que a relação de poder e força será medida e disputada com um governo “progressista”, de “esquerda”, as táticas e estratégias grevistas – desde há muito abaladas e enfraquecidas pela institucionalização, burocratização e judicialização das lutas sindicais desde a década de 1990 – ficam comprometidas desde o início, porque está apoiada em uma ilusão, em algo que não corresponde ao real.
2.
Desde agosto de 2023 as entidades sindicais vinham tentando negociar com o governo por intermédio de seus ministérios, no entanto, sem sucesso, obtendo apenas protelações e prorrogações sem sinalizações efetivas. Daí a deflagração das paralisações e da greve em abril de 2024 nas universidades federais, sendo que os(as) técnicos(as) administrativos(as) iniciaram seu movimento paredista em março de 2024, assim como alguns dos institutos federais, aumentando a adesão no mês de abril.
Um dos problemas é que muitos acreditam que esse governo ainda é de “conciliação de classes”. Ora, “em um país cindido e clivado, não há espaço para certos pactos que antes se realizavam” (SAFATLE, 2024a), não há mais conciliação possível numa realidade de polarização crescente. “A esquerda entrou em colapso no mundo todo, abrindo mão de seu papel transformador para ser gestora de um ‘centro democrático’ que não existe mais” (SAFATLE, 2024b).
Outra questão é a “frente amplíssima” formada para derrotar o bolsonarismo e tentar combater a fascistização política e da vida social. Sua formação deveu-se à incapacidade das esquerdas de enunciarem um projeto e programa político-social de curto, médio e longo prazo respondendo às questões materiais vitais vividas pelos segmentos subalternos – e mesmo aqueles ditos médios – relativas ao aumento da precariedade e da vulnerabilidade social que elevaram o sentimento de desespero e insegurança econômico-social de milhões.
Como lembrado por Ladislau Dowbor: “(…) a facilidade com que você pode perder sua casa, ver seus filhos passarem fome e a família se afogar em dívidas – sem falar em assassinatos, tortura, guerras absurdas com violência que varia desde crianças violadas até bombardeamentos de alta tecnologia – empurra-nos para uma batalha permanente uns contra os outros, mesmo sabendo que a única coisa que funciona é a colaboração. Parece que as vantagens individuais de curto prazo, misturadas umas com as outras, assumiram o controle” (DOWBOR. “Ciência burra, idiotas políticos e selvagens morais”. Outras Palavras, 10 de maio de 2024).
Em todos os lugares onde as “frentes amplas ou amplíssimas”
foram implementadas, não duraram ou levaram, ao final, a um paradoxal fortalecimento do que combatiam. Nessa situação, a extrema direita joga em um jogo perfeito, onde mobiliza o discurso do homem simples contra a casta política. Ao final, por mais que nossas vitórias seja pontuais, a extrema direita retorna (SAFATLE, 2024b).
A frente amplíssima, além de ser um cavalo de Tróia que pode acabar contribuindo para que Lula não termine o mandato, assim como ocorreu com Dilma Rousseff, também foi um erro estratégico decorrido da incapacidade de uma análise crítica das consequências da crise de 2008 e das condicionalidades impostas a política mundial, que passa a operar por extremos. “Os acordos de classe que produziram a democracia liberal, tal como ela apareceu após a Segunda Grande Guerra, com seus esboços de macro-estruturas de proteção social, não existem mais” (SAFATLE, 2024b).
Ademais, os sindicatos, do final da década de 1980, passando pela de 1990 até hoje, passaram por grandes metamorfoses, da ofensiva e combatitividade para a defensiva/negociações/busca de consenso, resultado da política de “concertação social”.
A partir desse desenho sumário da situação concreta da realidade concreta, é possível dizer que as formas de luta empreendidas pelas direções sindicais na greve da educação federal hoje está em descompasso com as exigências postas pela realidade, isto porque, sem pressão permanente nas ruas, nas praças, sem ocupação por tempo indeterminado (enquanto durar as negociações, garantindo as conquistas para as reivindicações do movimento grevista) dos espaços “públicos” e políticos simbólicos até que as decisões sejam encaminhadas, não há eficácia resolutiva nas negociações.
Não se ignora que foi o movimento grevista que arrancou reuniões junto ao Ministério da Gestão e Inovação dos Serviços Públicos (MIG) e demais órgãos do governo, no entanto, resoluções efetivas, ganhos reais só acontecem quando, em concomitância com os esforços burocráticos-legais-parlamentares de negociação, ocorrem as ocupações em massa das massas em luta, isto é, as ações extra-parlamentares de duração não prevista, a depender dos avanços e conquistas das justas reivindicações. É o que comprova a nossa história, passada e recente.
Podemos ilustrar com o caso das Escolas Ocupadas em São Paulo, em 2015 (Escolas em Luta), e as ocupações de escolas em 2016 (contra o Novo Ensino Médio, contra a PEC 95, dentre outros) que se espalharam por várias cidades do país.
Ao contrário, o que vemos é um rechaço à menção da palavra ocupação nas Assembleias. Nunca é o momento ou a hora para fazê-las, para radicalizar. Por mais que se exemplifique, não passa pelas direções sindicais, que tentam descreditar essas falas de todas as maneiras. Conforme as falas dos representantes sindicais, seja das universidades ou dos institutos federais, radicalização é participar das manifestações do 01 de maio, é ficar em frente ao prédio do MGI, é fazer café da manhã em frente ao planalto e esperar convencer o presidente a conversar e negociar.
Tudo gira em torno de garantir mesas e negociações. Isso não significa dizer que tais ações não têm seu peso e importância. Obviamente, são formas de pressão, mas modos de pressionar que não incomodam ou atrapalham o funcionamento dos órgãos do governo, dos espaços públicos e políticos simbólicos, logo, não causam impacto efetivo que faça as pessoas que estão nos cargos de poder se movimentarem. Precisamos aprender a fazer ocupações como fazem os indígenas, o movimento dos trabalhadores rurais sem-terra (MST), o movimento dos trabalhadores sem-teto (MTST) e mesmo os estudantes secundaristas e universitários.
3.
Há outro ponto não abordado que acredito ser fundamental. A categoria docente não é um todo homogêneo e sim heterogêneo (diferentes posicionamentos de sociedade, de homem, de mundo e de classe). Talvez meus pares não exponham o fato para não se indispor. Mas a verdade deve ser posta na mesa, “nua e crua”, como diz o vulgo popular. Há diferenças substanciais entre o corpo (desconjuntado) dos(as) docentes dos campis dos interiores e o das capitais. A classificação didática segmentada da classe trabalhadora em A, B, C, D e E também ocorre entre os(as) docentes.
Invariavelmente, uma proporção considerável dos(as) docentes das capitais tem uma mentalidade de “classe média” e dela provêm, embora no discurso se intitulem “trabalhadores(as) da educação”. Enquanto isso, nos interiores é mais comum uma identificação como “classe trabalhadora”, ainda que com melhor remuneração que os demais trabalhadores(as) de outras categorias devido o lugar ocupado na divisão social-técnica-hierárquica do trabalho na sociabilidade capitalista. Ademais, os concursados para os campis dos interiores são de outra geração, de outro contexto histórico-social, de outras condições socioeconômicas, assim como os novos concursados que adentram nos campis das capitais, que acabam fazendo um contraponto e colocando as coisas em movimento, mas não são a maioria.
Entrementes, o que mais me causou estranhamento é a forma como são conduzidas as assembleias. Participei da greve das federais em 2012 quando estava na Universidade Federal do Piauí, no campus Senador Helvídeo Nunes de Barros (campus do interior), na cidade de Picos. Naquele tempo, as assembleias eram realizadas no auditório do campus, com a participação de docentes sindicalizados e não sindicalizados e também estudantes.
Havia o momento de expor as análises, defender propostas, que eram ouvidas, depois refletidas pela assembleia, replicadas, treplicadas para, só então, serem votadas, isto após procurar evidenciar todos os prós e contras, utilizando dos fatos da situação concreta para uma análise concreta e mais aproximada possível das contradições e múltiplas determinações da realidade. O voto tinha quatro segmentos: (a) quem aprova; (b) quem desaprova; (c) indecisos; (d) quem se abstêm. Entendo que isto é o que mais se aproxima, verdadeiramente, de uma construção coletiva e de uma democracia social.
As assembleias atuais – e posso dizer com conhecimento de causa, pois participo de todas, bem como das reuniões do comando de greve local – são um simulacro de participação democrática, assim ninguém pode reclamar que não teve o “direito de fala” e que o espaço não é democrático. Abre-se com análise de conjuntura, como dito pelo professor Valter Lúcio Oliveira. Na sequência, há as inscrições para os participantes, geralmente 10, podendo incluir mais 5, caso a assembleia aprove um segundo bloco. Cada um(a) têm três minutos de fala para análise e também, em alguns casos, propostas. Porém, essas propostas não são discutidas pela Assembleia.
Não se analisam os prós e contras, não se realizam as mediações necessárias, não há defesa de ideias, nem contrapropostas, nem réplicas, nem tréplicas, nem nada. A mesa vai anotando o que é falado e as proposições sugeridas. Ao final, faz um resumo enunciando os pontos levantados pela assembleia, que serão avaliados pelo comando geral de greve local, onde aparece um número muitíssimo reduzido de pessoas. Pergunto: isso é assembleia? O comando geral de greve local é, de fato, representativo ou a assembleia, apesar dos pesares, teria maior legitimidade? Detalhe: nas reuniões do comando geral de greve local, caso sejam levantadas questões e análises em desacordo com a direção, que segue as orientações dadas pelo Andes, são consideradas leituras que não correspondem à realidade.
Como dito por Valter Lúcio de Oliveira, se “o contexto da greve é o momento mais propício para se discutir as diversas dimensões da luta sindical docente, ao mesmo tempo, é o momento menos propício para se aprofundar em tais questões, pois é quando todos os lados, e particularmente os que dirigem o movimento, estão pouco dispostos a inovar e avançar nessas questões fundamentais (OLIVEIRA, Valter Lúcio de. “Por um sindicato dos docentes que valorize a base”. A Terra é Redonda, 13 de junho de 2024).
Senti isso na pele na primeira assembleia de que participei. Super animada, cheia de energia e querendo contribuir, fiz uma fala e propus ações radicais, tentando, em três minutos (o que é impossível), justificar por que deveríamos agir de tal forma. O resultado foi uma tentativa de “lacração” e “silenciamento” da diretoria do sindicado que estava na mesa. Questionou quem era eu, ninguém me conhecia, como podia falar de forma autoritária e dizer o que a assembleia, o coletivo deveria ou não fazer. Eu estava tentando aparecer, era puro narcisismo e promoção pessoal. Repliquei de onde estava sentada, dizendo que não era nada disso, mas a pessoa ficou ainda mais irritada.
Tive oportunidade de me inscrever e contrapor a fala da representante sindical de modo educado e sem muita ênfase. Emprestei as palavras de Audre Lorde (2020) para dizer que mesmo que eu fosse atacada e incompreendida, não iria me calar, porque me posicionar perante a situação era importante e que se a pessoa não conhece a outra, não deveria imputar a ela coisas que ela não é. Além do fato de que cada um tem um jeito de falar e se expressar, em pronunciamentos nas assembleias as pessoas se inflamam, o que é compreensível. Na sequência, recoloquei minhas proposições.
Depois desse episódio, continuei – e continuo – participando das assembleias e das reuniões do comando geral de greve local, como também das ações propostas. Talvez outros não fizessem o mesmo. Há um trecho no livro de Asaid Haider (2019, p. 59. Os itálicos são meus) que retrata muito bem o acontecido: “E começou um debate sobre práticas autoritárias numa assembleia geral (…). A multidão, a maior até então, estava cheia de novatos empolgados prontos a participar. Mas foram totalmente silenciados, reduzidos a receber instruções que não eram democraticamente discutidas”. Mas, para mim, o mais importante é estar fazendo e participando da luta, apesar de suas limitações estruturais e modos de ações de eficácia comprometida, sendo coerente com meus princípios, valores, visão e posicionamento de mundo, de classe e com o que digo e defendo em sala de aula junto aos estudantes.
4.
Outro questionamento que faço é porque os sindicatos representantes da categoria docente não mobilizaram e organizaram nenhuma manifestação ou paralisação nas universidades e institutos quando dos cortes na área social de R$ 3,8 bilhões de reais impostos ao Orçamento de 2023 (“Corte na área social de R$ 3,8 bilhões de reais…”. Correio Braziliense, 2023) ou quando da aprovação da Lei Orçamentária Anual (LOA), de 2024, com orçamento “menor do que o montante conquistado em 2023 com a chamada PEC da transição” (“Andifes protesta contra orçamento das universidades aprovado pelo Congresso”. Medicina UFMG, 2024), ou então com o corte de verbas para bolsas de estudo e educação básica, anunciados em 11/04/2024 (“Governo Lula corta verba de bolsas de estudos, educação básica…”. Folha de S. Paulo, 2024).
Antes da greve ser deflagrada, os estudantes, sabendo dessa possibilidade por conversas mantidas com os(as) docentes em sala de aula, perguntavam por que iríamos entrar em greve. Eu ficava extremamente incomodada ao responder por acreditar que paralisações já deveriam ter sido feitas há tempos, desde os anúncios de cortes nas áreas sociais e de orçamento para as Universidades, e dizia que, embora a motivação da categoria fosse a recomposição salarial, havia outras questões essenciais a serem reivindicadas, como a derrubada do Arcabouço Fiscal (caso contrário, é o fim do “público”, dos serviços e servidores “públicos”), como demonstram Mauro Sala e Evaldo Piolli (2024), o Orçamento das Universidades Federais e seus impactos no cotidiano e funcionamento da universidade, faltando pessoas, material de limpeza, tetos caindo, goteiras nas salas de aula estragando os móveis, bolsas permanência para estudantes, etc. O próprio Andes, em suas falas e propagandas sobre a greve, procura frisar que a luta não é apenas por recomposição salarial, mas envolve uma pauta extensa.
O problema é que, ao fim e ao cabo, greves conduzidas por sindicatos têm como pauta central a questão salarial e de carreira, são questões corporativas, reivindicações relativas as condições econômicas, de trabalho e de reconhecimento/valorização das categorias, e não é diferente com o sindicato dos professores(as) e do(as) técnicos(as) administrativos(as) em educação (ANDES, SINASEFE, FASUBRA).
O salário é, de fato, o que faz começar e terminar um movimento grevista. (…) no texto e em diversas manifestações de dirigentes sindicais, há um esforço em incluir uma longa pauta que, sabemos todos, já teria ficado pelo caminho se o governo já tivesse oferecido o aumento salarial reivindicado pelo Andes. Tenho claro que esta pauta coadjuvante só será protagonista de uma greve quando a questão salarial não aparecer como um ponto de pauta (OLIVEIRA, Valter Lúcio de. “Assembleias, greves e o movimento sindical dos docentes”. A Terra é Redonda, 06 de junho de 2024).
Na tentativa de acabar com o movimento grevista, o governo investe numa mudança de tática e estratégia, procurando negociar com os(as) TAE’s, “o que poderia resolver o impasse e finalizar a greve” e rever algumas “portarias e estruturação da carreira” (“Por que o governo Lula estuda rever estratégia na greve das universidades federais”. Estadão, 10 junho 2024). Não se trata de revogar as portarias e leis, como exigido, mas sim de revisão – revogação apenas nos casos que não afetar os interesses a longo prazo do “projeto de nação” em desenvolvimento –, o que demonstra que o governo, no fundo, está de acordo com essas mudanças deletérias que precarizam as condições de trabalho e sucateiam o “público” e os(as) trabalhadores(as) da educação.
O Orçamento de 2023 (Lei Orçamentária Anual – LOA) foi cortado em R$ 3,8 bilhões de reais. Saúde e Educação foram as áreas sociais mais afetadas. Matéria jornalística já informava que tais áreas corriam o risco de paralisarem ou atrasarem até o final do ano de 2024, caso das Universidades Federais (“Corte na área social de 3,8 bilhões de reais…”. Correio Braziliense, novembro, 2023). A mesma reportagem dizia que “o presidente promete não fazer em 2024 o que está fazendo em 2023”, isto segundo as palavras do secretário-geral das Contas Abertas, Gil Castello Branco.
Todavia, promessa verbal pode ser facilmente descumprida, servindo apenas como lenitivo para aplacar os ânimos e restabelecer a ordem, desmobilizando e desorganizando os que tentam se mobilizar e organizar. Foi o que aconteceu. Em abril de 2024, foi anunciado outro corte no Orçamento, afetando diversos ministérios, superando o valor de R$ 4 bilhões de reais. “A medida foi tomada para adequar o orçamento às regras do novo Arcabouço Fiscal. (…) Além dos cortes, o governo bloqueou outros R$ 2,9 bilhões do orçamento” (tais recursos podem, ou não, ser liberados durante o ano) (“Governo Lula corta verba de bolsas de estudo, educação básica e farmácia popular”. Folha de S. Paulo, 11 de abril 2024).
Outra reportagem denuncia que Saúde e Educação podem perder mais de R$ 500 bilhões em 9 anos (de 2025 a 2033) com eventual mudança sobre o piso (valor mínimo), garantido constitucionalmente para ambas as áreas, respectivamente 15% e 18% das receitas líquidas da União. O Tesouro Nacional da União apresentou um relatório em abril de 2024 onde fez prospecções a partir da redução dos pisos, de acordo com as regras do Arcabouço Fiscal, rebaixando-os para, no máximo, 2,5% das receitas da União. “O governo tem dito que vai propor revisão de gastos públicos, mas até o momento não indicou outras propostas que não fossem a limitação de despesas em saúde e educação” “(Saúde e Educação podem perder 500 bilhões em 9 anos com eventual mudança sobre o piso…”. G1, 28 de março de 2024).
A Lei Complementar 200/2023, correspondente ao Arcabouço Fiscal, é um novo Teto de Gastos (MAURO; PIOLLI, 2024) que torna todos os setores “públicos” e sociais reféns e vítimas de instituições financeiras, fundos de investimento e investidores externos, onde mais de 40% das arrecadações dos contribuintes vão para esses parasitas através do pagamento do sistema de dívida pública e dos seus juros. O fim (revogação, extinção) do Teto de Gastos do governo de Michel Temer foi outra das promessas não cumprida de campanha eleitoral de 2022 de Lula. Ao invés disso, temos um novo Teto de Gastos que faz os(as) trabalhadores(as) de todo o país, as camadas populares e subalternas sangrarem, apertando os cintos (arrocho salarial), tal como na época da ditadura militar.
Anderson Alves Esteves é certeiro ao afirmar que a ‘reconstrução’ pretendida por Lula esbarra no Arcabouço Fiscal: as negociações entre governo e profissionais da educação ilustram o problema e ocorrem sob um orçamento já sequestrado para o pagamento da dívida pública. Esta é a derrota que os sindicatos da categoria já têm: toda a discussão encontra-se agrilhoada pelas premissas e pelo modus operandi do Arcabouço Fiscal. (…) Ele seria o problema a ser resolvido para, de maneira exitosa, grevistas e governo alcançarem um denominador comum que atenda minimamente as reivindicações (ESTEVES, Anderson Alves. “Tensões da composição policlassista…”. A Terra é Redonda, 27 de maio de 2024).
Por isso “o governo tem dito que chegou ao limite financeiro para ceder aos grevistas” (“Por que o governo Lula estuda rever estratégia na greve das universidades federais”. Estadão, 10 de junho de 2024). Não tem recursos para as áreas sociais, “públicas” porque estão sendo drenados para pagamento da dívida pública e seus juros, deixando ricos cada vez mais ricos, precarizados e endividados cada vez mais lascados e empobrecidos. Logo, recurso têm, e não é pouco. São trilhões, e não bilhões, que poderiam ser investidos nas áreas de Saúde e Educação e nas demais áreas sociais, de interesse realmente universal.
O sindicato da Universidade Federal do Ceará (ADUFC), publicou nas notícias de seu site do dia 14 de junho de 2024, uma avaliação das ações de greve e do PAC (Programa de Aceleração de Crescimento) lançado pelo governo em evento no Palácio do Planalto, no dia 10 de junho de 2024, com os reitores das universidades e institutos federais. O Comando Nacional de Greve da Andes também publicou, no dia 16 de junho de 2024, um “texto de conjuntura” fazendo o resgaste de todo o processo do movimento grevista até a presente data (utilizando os verbos no tempo passado, e não no tempo presente, o que diz muito sobre o estado de ânimo e de fôlego dos dirigentes para continuar a luta).
Os R$ 5,5 bilhões anunciados pelo governo como resultado do PAC seriam destinados a: (1) construção de 10 novos campis universitários; (2) melhorias na infraestrutura das 69 universidades federais e dos 31 hospitais universitários, sendo: (a) R$ 3,17 bilhões em consolidação; (b) R$ 600 milhões para expansão; (c) R$ 1,75 bilhão para hospitais universitários.
Recomposições orçamentárias foram feitas pelo governo em 10/05/2024, no total de R$ 347 milhões, sendo R$ 242 milhões para universidades e R$ 105 milhões para os institutos federais. A nova recomposição, arrancada pela greve em 10/06/2024, é de R$ 400 milhões, sendo R$ 279,2 milhões para as universidades e R$ 120,7 milhões para os institutos federais. No entanto, a recomposição solicitada para o Orçamento de 2024 é de R$ 2,5 bilhões de reais para as universidades e R$ 1,5 bilhão para educação básica, técnica e tecnológica, ficando muito aquém do mínimo necessário, servindo apenas para garantir o funcionamento das instituições no ano de 2024 e o pagamento de suas despesas básicas, nada além disso.
5.
Essa estratégia do governo é perversa. Para haver novos campis os existentes precisam estar em perfeitas condições de funcionamento, com os investimentos necessários garantidos em valorização dos servidores e infraestrutura/patrimônio para que possam prestar serviços de qualidade à comunidade e aos estudantes. De nada adiante criar novos campis ou hospitais se não se investir nos existentes e proporcionar condições para a permanência dos(as) estudantes como forma de combater a evasão ocorrida por questões de vulnerabilidade socioeconômica dos(as) mesmos(as).
Ademais, o governo diz para a sociedade que já melhorou as condições salariais dos(as) professores(as) com o aumento dos benefícios (auxílio alimentação, auxílio creche, auxílio saúde, ainda que ínfimos em relação aos demais poderes). Em sua fala no evento no Palácio, em 10/06/2024, assevera: “Vamos ver os outros benefícios, vocês já têm noção do que foi oferecido? Vocês conhecem o que foi oferecido?” (“Lula critica prolongamento da greve dos docentes federais”. Agência Brasil, 10 de junho de 2024). “O montante de recurso que a companheira Esther colocou à disposição é um montante não recusável” (“Por que o governo Lula estuda rever estratégia na greve das universidades federais”. Estadão, 10 de junho de 2024).
Ora, esse pronunciamento do presidente Lula faz com que tanto a sociedade em geral quanto os próprios estudantes que não estão participando ativamente das ações e atividades de greve, nem acompanhando os informes sindicais ou os de suas entidades estudantis representativas, comecem a questionar a legitimidade dela. Essa é a estratégia de fundo de tal discurso, procurando descreditar o movimento grevista perante os olhos da população, com o apoio dos jornais da grande mídia burguesa.
Meus colegas já disseram que esses modestos aumentos nos benefícios não são incorporados aos salários e não atinge os aposentados. Nossa luta é por melhoria salarial para todos(as), ativos(as) e aposentados(as). Não podemos aceitar a lógica de “dividir para reinar”. Se é pelo coletivo, de fato, sacrifícios devem ser feitos por todos(as) nós! Também estamos lutando por melhores condições de trabalho e de permanência para os estudantes, pela infraestrutura e patrimônio das universidades federais em situação de calamidade.
A partir de agora, o Andes e seus sindicatos filiados deveriam centrar todos os esforços para derrubar o Arcabouço Fiscal e demonstrar os malefícios e os efeitos destrutivos de “terra arrasada” que acarretará aos serviços “públicos” e a todos os(as) servidores(as) públicos(as), em todas as esferas da federação (municipal, estadual, federal) em alguns anos, tendo como dado objetivo, concreto e factual o próprio relatório do Tesouro Nacional.
O governo não “arredará o pé” e manterá o 0% de aumento em 2024 para os(as) servidores(as) federais em educação. Portanto, a briga agora deveria ser para alterar a projeção da proposta de recomposição salarial anteriormente apresentada para os anos de 2025 e 2026, de modo a se aproximar dos 22,79% calculados pelo Andes para reaver as perdas entre 2016 a 2022. É sabido, como demonstrou Maquiavel em sua obra O Príncipe, que é preciso mirar mais alto do alvo para ter maior chance de acertá-lo. Sendo assim, uma nova proposição deveria pensar em trabalhar com o percentual de 12% para 2025 e 12% para 2026, batendo com toda a força na questão de derrubar/revogar o Arcabouço Fiscal, mostrando em números e dados para a sociedade como se não acabarmos com ele, ele irá acabar com as condições de manutenção e sobrevivência da maioria de nós, pondo fim a tudo o que ainda resta de “público” e de servidores(as) públicos(as) que são os que, realmente, socorrem e prestam serviço as camadas populares, subalternas, trabalhadoras, vulneráveis e cada vez mais desassistidas pelo Estado.
Isto significa que teremos de endurecer o movimento paredista num momento em que está fragilizado pelo desgaste do tempo de greve e sinais de exaustão das lideranças sindicais. Creio que a situação chega a tal ponto porque houve negligencia do fato de que a greve na educação não atinge direta e imediatamente a dinâmica da vida social cotidiana. As consequências de uma greve na educação demoram mais tempo para serem sentidas, são mediatas (e não imediatas), diferente, por exemplo, do que acontece com uma greve nos transportes públicos (ônibus, metrô, trem), afetando o dia a dia de várias outras categorias de trabalhadores(as).
Por essa razão, as ações grevistas teriam que garantir a concomitância de dois movimentos simultâneos: luta parlamentar (mesas de negociação e outras ações do gênero – café da manhã, marchas, atos – pelos trâmites institucionais, político-jurídicos) e luta extra-parlamentar (ocupações por todos(as) servidores(as) públicos(as) das universidades e institutos federais em greve em todo o país de maneira simultânea), com a clareza de que é a segunda que pode fazer toda a diferença nos ganhos objetivos e efetivos, assinados e carimbados, de mesas de negociação, acabando com as protelações, prorrogações, enrolações e procrastinações.
A primeira experiência que me vem a mente é a da greve dos(as) professores na cidade de Oaxaca, no México, em 2006 (DANTAS, 2016). O movimento paredista estabeleceu um acampamento na praça da cidade para chamar atenção a suas reivindicações e criou a Radio Plantão, mantida pelo professorado, para informar e conversar com a população, dando “vez e voz” para estudantes, pais, mães, avôs e demais oaxaquenhos(as) se posicionarem sobre os motivos da greve, os problemas enfrentados pela educação e nas escolas, politizando os(as) citadinos(as).
Em Fortaleza, os indígenas ocuparam o prédio da Secretaria de Educação em abril de 2024 e só saíram após reunião com as autoridades, ocorrida no mesmo dia, à noite. Na sequência, no mesmo mês, o movimento dos trabalhadores rurais sem terra (MST) ocupou e chegou a armar barracas no prédio da Secretaria da Educação, forçando atendimento e negociação, ocorridos em menos de uma semana.
Esses são apenas alguns exemplos. O que há de comum entre eles é o fato de radicalizarem, de fato, as ações, e no atual cenário, mais do que nunca, radicalizar é um pressuposto. “Este é o momento em que algum tipo de radicalismo é necessário e possível porque nada mais funcionará. Disso eu tenho certeza. Nada além do verdadeiro radicalismo funcionará” (“Nancy Fraser busca o mapa do pós-capitalismo”. Outras Palavras. 23 de março de 2023).
Espero que o pronunciamento de Lula no dia 10/06/2024 tenha sacudido e despertado muitos(as) que ainda estavam em transe, vivendo de ilusões, para a necessidade de radicalizar as ações na queda de braço com o governo e seus interlocutores, e não encerrar a luta, como o tom do “Texto de Conjuntura do Comando Nacional de Greve do Andes-SN” transparece, utilizando a conjugação verbal no tempo passado, como se fosse o fim.
Se saímos e estamos na chuva até agora, é para nos molhar! Pode haver retaliação e coação com corte de ponto?! Pelo que estamos assistindo, não há que duvidar. Mas iremos ceder? Não podemos nos entregar mediante uma fala presidencial estratégica de deslegitimação do movimento grevista, não podemos aceitar a continuidade do Arcabouço Fiscal e os cortes consecutivos e mortais à educação “Pública” em escala municipal, estadual e federal e às demais áreas sociais vitais ao nosso povo. As projeções do Tesouro Nacional com a vigência do Arcabouço Fiscal são terríveis e irreversíveis.
Se não fizermos nada, não haverá reconstrução possível no presente, muito menos no futuro próximo, nada distante. Os efeitos começarão a ser sentidos mais intensamente a partir de 2026. É isso mesmo? Nosso lema, a partir de agora em diante, deveria ser: “Ocupar, resistir para continuar a existir!” É o começo ou é o fim? Eis a questão.
*Iael de Souza é professora do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Referências
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