Capitalo-parlamentarismo no Brasil

Imagem: Jan van der Wolf
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Por DIOGO FAGUNDES*

O capitalo-parlamentarismo não é uma mera estrutura estatal, mas uma subjetividade hegemônica desde a metade dos anos 80

Basta um mínimo de contato com o jornalismo dominante e com o que faz sucesso no mercado editorial sob a rubrica de “política” para notar a fixação num tema: a crise das democracias.[i]

O fenômeno Trump, o bolsonarismo, o crescimento da extrema-direita europeia (visíveis no Brexit britânico e no protagonismo crescente do partido de Marie Le Pen na política francesa) e agora Javier Milei e Giorgia Meloni – ainda que estes dois não causem tanto desconforto assim, já que são são pró-OTAN, defendem incondicionalmente Israel e acham que a China é uma grande ameaça à civilização ocidental… – fornecem material de sobra para que este mercado editorial tenha público garantido para o futuro próximo.

Muitas hipóteses são levantadas, de forma combinada e um tanto descoordenada, sem que as hierarquias sejam muito bem apontadas. Para os mais sensíveis à economia, temos o seguinte rol: o crescimento da desigualdade, o empobrecimento da classe média, a desindustrialização, o mercado de trabalho cada vez mais precarizado e marcado pelo perigo do desemprego. Para os que preferem destacar questões “culturais”, há um outro: as ansiedades e pulsões medrosas ou ressentidas alimentadas pelo “multiculturalismo”, a imigração, a ascensão da China como potência econômica e tecnológica, o avanço do feminismo e da liberalização dos costumes…

Tudo isto faz, evidentemente, bastante sentido, mas preferimos apontar uma hipótese mais radical. O motivo fundamental está na ascensão e consolidação, desde os anos 1980, do que poderíamos chamar de política dominante no Ocidente: o capitalo-parlamentarismo.

Devemos este conceito ao militante e pensador político Sylvain Lazarus e seu colega Alain Badiou, ambos colegas de organização por quase quarenta anos (1969-2007). O que, afinal, ele quer dizer?[ii]

O capitalo-parlamentarismo não é uma mera estrutura estatal, mas uma subjetividade hegemônica desde a metade dos anos 80, pelo menos. Naquela década, houve a crise generalizada do marxismo, enquanto teoria capaz de atração e inspiração política, prevalecente na intelligentsia.

Depois de servir de esteio para toda uma geração militante – lutas de anti-libertação nacional, movimentos contra a guerra da Argélia e Vietnã, luta dos direitos civis dos afro-americanos nos EUA, maio de 68 e o novo movimento operário da década de 1970 -, o marxismo era trocado em nome da aceitação de que, apesar dos problemas, o Ocidente era melhor que as alternativas realmente existentes. A filosofia anti-totalitária dos “novos filósofos”, antecipada pelo choque de consciência proporcionado pela publicação de Arquipélago Gulag[iii], aclimatou novamente os intelectuais ocidentais ao seu berço: liberdades jurídicas, liberalismo político e o humanismo – não o de Sartre e Fanon, em busca do “homem novo”, mas em numa modalidade clássica e anti-revolucionária (autonomia individual: que cada um cultive seu próprio jardim e busque a felicidade individual) – voltaram a ser o alfa e ômega das consciências.

O colapso da URSS e dos Estados do Leste Europeu consolidou e agravou este quadro. A ideia de qualquer alternativa à ordem hegemônica deixou de ser sequer concebível, e quem ainda defendesse esta possibilidade era, nas melhor das hipóteses, tolo e arcaico, na pior, criminoso totalitário.

Foi neste ambiente que veio à tona um dos espetáculos mais impressionantes da história da esquerda: os (longos) governos Mitterrand (1981-1995).

Eleito sob um programa radical (havia até mesmo a proposta de nacionalização do sistema financeiro!) e construído com longo preparo político – o Programa Comum e a União de Esquerda começam a ditar o centro da política do Partido Comunista Francês desde 1973 -, comemorado com muita festa e esperança, realizou dois primeiros anos de muitas reformas. Tudo isto logo cessou. A partir de 1986, a rendição foi completa. Não apenas tudo fora revertido, como dá-se o verdadeiro pontapé para o que marca a agenda europeia desde então: as privatizações sem fim, a liberalização financeira, “reestruturação produtiva” (eliminando milhões de trabalhadores industriais como se não fossem nada), a cada vez maior submissão à hegemonia dos EUA na política externa, a obsessão com o imigrante islâmico como problema (“Le Pen faz as perguntas certas”, levantou certa vez um ministro de Mitterrand). O resultado, em meados dos anos noventa, era o seguinte: o desemprego havia dobrado e a extrema-direita triplicado seus votos.[iv]

É perante este quadro iniciado nos anos 80 que Lazarus formula a ideia de capitalo-parlamentarismo. Não trava-se do mero fato, em si banal, de que parlamentos e sistemas eleitorais multi-partidários constituem a essência dos Estados ocidentais, mas de um fenômeno novo: o Estado deve servir a um Mestre que lhe é exterior – necessidades econômicas implacáveis, ditadas pelos agentes do “mercado” (hoje um verdadeiro fetiche, personalizado como um ente substancial em forma de metonímia: “a Faria Lima”, “o PIB”, o etc.) e pela “opinião pública” (um pequeno grupo de grandes conglomerados empresariais comandados por interesses financeiros )

A ideia nova era o seguinte: não tratava-se mais de acreditar em programas de alteração do mundo ou em decisões políticas, marcadas pela possibilidade da escolha e pela ação da vontade coletiva. O Estado é estritamente funcional aos interesses do mercado (é bom quando os segue com eficácia e sem questionamento, é ruim quando não opera neste sentido) e à formatação do “consenso”, no qual grandes grupos de mídia exercem grande papel. Sabemos no que este consenso se baseia: qualquer ideia contrária às privatizações, à desregulamentação do mercado de trabalho e dos serviços públicos, à liberdade sem freio da acumulação de potentados privados, é excluída, de cara, do jogo.

Os partidos, antes responsáveis por organizar segmentos sociais ou classes em conflito (a esquerda representaria os sindicatos e os operários, a direita representaria a burguesia), com programas diferentes e bem demarcados, ideologias próprias e vínculos com a “sociedade civil” bem estabelecidos, tornam-se meros apêndices estatais, responsáveis apenas por arregimentar clientelas eleitorais de acordo com o calendário e os ritos do Estado.

A distinção entre “esquerda” e “direita”, necessária para a crença de que as eleições fazem sentido e podem reverter ou mudar orientações políticas, deixa de ser operativa, concentrando-se em questões mínimas. O consenso se amplia: centro-esquerda e centro-direita, no fundo, são partes da mesma família e estão de acordo com as questões fundamentais. Não há mais conflito ideológico. Os “progressistas” podem preferir ciclovias em vez de carros, uma ética mais piedosa em vez de concorrencial, um cardápio vegetariano a um carnívoro, uma ilustração e cosmopolitismo maior quanto aos costumes modernos em relação ao apego às tradições provinciais ou patriarcais, quem sabe até, leem e dão valor aos intelectuais e artistas (às vezes podem até ser eles mesmo um destes tipos), em vez de burgueses pragmáticos e interessados puramente em negócios, para quem o resto é poesia e filosofia inútil sobre o ser e o nada. Mas quanto ao destino geral da sociedade e do mundo, são apenas adversários momentâneos e moderados, jamais inimigos.

O tema das classes em luta, representadas em partidos ideologizados e com programas próprios capazes de galvanizar o apoio desses grupos, que animou toda a política ocidental desde, pelo menos, o fim da Segunda Guerra mundial, desapareceu. No lugar, o culto à classe média, verdadeiro baluarte e fetiche da modernidade, a ser cultivada, paparicada, domesticada e infantilizada. As divisões se dão no interior desta classe: de um lado, um segmento mais progressiva, ligado à liberação dos costumes e apego temático à democracia e aos direitos humanos, de outro uma fração conservadora (geralmente quem está mais abaixo em seu seio, próximo da ameaça de proletarização), com medo de imigrantes, sensível à questão da segurança pública e da mudança assustadoras dos “nosso modos de vida”.

Eis a verdadeira origem dos nossos problemas: no nível global, não há mais disputa a respeito das orientações para a humanidade (socialismo ou capitalismo). No nível nacional, o predomínio do capitalo-parlamentarismo, o “there is no alternative” (TINA) de Margaret Thatcher (afinal de contas, os próprios trabalhistas, com Tony Blair, não admitiram que ela estava certa?), a inviabilizar qualquer pensamento crítico ou desejo de emancipação.

O primeiro e mais visível resultado só poderia ser o desencantamento generalizado, o niilismo subjetivo, a falta de esperança completa com a política. Há, rigor, o capitalo-parlamentarismo detesta a política e a inviabiliza, pois impede que haja discordância real. Se há apenas uma única política, o resultado é que não há mais política, pois esta implica algum grau agonístico quanto às visões de mundo e orientações estratégicas. Sem Dois, só há gestão e administração, não mais política. Para provocar nossos “democratas”: trata-se de um verdadeiro totalitarismo dos mercados, tão monolítico, rígido e orientado apenas à perpetuação de injustiças quanto a pior versão dos pesadelos liberais a respeito do socialismo estatal.

O segundo subproduto é a completa indiferença para com o pensamento das pessoas. O fato de medidas extremamente impopulares, rejeitadas em peso em pesquisas de opiniões, não pararem de ser aprovadas – apelando-se, inclusive, com medidas de exceção, como o caso de Macron e sua reforma da previdência -, indica que nossas “democracias” são totalmente indiferentes ao que as pessoas comuns pensam. Taxas de abstenção elevadas, pesquisas indicando baixíssima aprovação ou confiança em praticamente todas as instituições, baixas nas filiações partidárias e a burocratização completa da vida política dão o tom há mais de quarenta anos.

É preciso lembrar, afinal, que sem a existência de mediações populares (papel clássico dos partidos de massa e dos sindicatos e associações populares), o povo deixa de ter qualquer participação na vida política de seu Estado. O que constituía a força das democracias modernas era a existência de fortes partidos enraizados entre os estratos mais baixos na escala social ou política. O pioneiro foi o SPD alemão, os social-democratas marxistas, ao final do século XIX, mas isto cresceu no século XX, principalmente após a vitória da URSS contra o nazi-fascismo e a consolidação de partidos socialistas ou comunistas – lembremos da força do PCF ou, ainda mais, do PCI – na vida política das nações. Mesmo partidos fora da esquerda, como a democracia-cristã ou o gaullismo, procuravam organizar a população (a democracia-cristã atuava em sindicatos!), a fim de ter poder de representatividade,

Ao contrário deste ciclo de politização pretérito, hoje vale mais ouvir marqueteiros, experts e tecnocratas do que conhecer e se importar com a vida real e o pensamento das pessoas. Afinal de contas, preocupar-se com o que pensa o povo, principalmente quando este é hostil ao conselho “científico” dos especialistas, não seria o cúmulo do tão desprezado “populismo”?

O capitalo-parlamentarismo se consolidou, portanto, como um positivismo elitista, aquilo que justamente era criticado na URSS (uma nomenklatura dotadora da verdade, pois representante de uma ciência infalível), muito mais opressivo – pois bombardeado com um propaganda incessante e “espontânea” via mídia, servilismo intelectual e mercados – e niilista.

A própria ideia de tempo é abolida: há uma sucessão de instantes, sem qualquer memória ou projeto. Esquece-se rapidamente de tudo, algo de dois anos atrás já faz parte do período paleozoico, e o futuro é obscuro; no melhor, das hipóteses é uma repetição incessante do presente, na pior, temos como vislumbre apenas o fim do mundo ou um devir distópico, num caso em que a realidade supera, pouco a pouco, a ficção científica mais ambiciosa.

O tempo do capitalo-parlamentarismo foi dissolvendo-se cada vez mais: se há pouco falava-se que o pensamento “político” não conseguia ir além de um ciclo eleitoral (dois ou quatro anos), sem espaço para grandes projetos ou mirada de longo prazo da história pretérita e futura do país, hoje não ultrapassamos o tempo das bolsas e das redes sociais. Qualquer declaração “polêmica” gera uma chantagem – uma variação no câmbio, por exemplo -, uma gritaria incessante dos mercados, em tempo real. O mundo sem tempo, esta espécie de cosmos congelado, apesar da aparência frenética de velocidade repentina, típico dos mercados financeiros e das bolhas digitais (uma caixa de ressonância dos piores interesses, ainda mais danosa e imediatista que a velha imprensa corporativa), impede que qualquer concentração de pensamento e disciplina da vontade se constituíam.

Como propaganda para massas cada vez mais desiludidas, só nos resta o empréstimo de um tema clássico das religiões: haverá promessa de salvação após muito sacrifício e resignação. As reformas infinitas – de quantas reformas da previdências ainda precisaremos? E cada vez num ritmo mais curto entre elas! – não trazem bem-estar, longe disso, mas prometem, em algum momento, talvez ainda em vida, talvez para as próximas gerações, uma melhoria capaz de fazer o trem descarrilhado voltar ao bom funcionamento (se não fossem os sindicatos, os políticos populistas, a ignorância, por parte dos críticos, de que o mal sempre vem para o bem, talvez poderíamos já estar vislumbrando o progresso…). O fato de que as sociedades ocidentais modernas parecem cada vez mais retroceder e não melhorar a qualidade de vida de seus cidadãos não deve nos desanimar: a Salvação vem para quem tem fé e para quem executa as obras. (Neste caso, o conflito teológico clássico se harmoniza).

Para esta religião moderna não faltam as doutrinas, as escolásticas, e seus apóstolos e sacerdotes, quais sejam: os economistas. Por “economistas”, entende-se bem, aqueles que merecem ser ouvidos e levados a sério (para tanto, sua opinião não pode causar desconforto em um banqueiro ou especulador), não aqueles que possuem “ideologia” ou falam e agem como se matérias científicas pudessem ser alvo de polêmica e decisão política.[v] Eles pululam na imprensa, são tidos como divindades incontestáveis (mesmo que esta divindade assuma a forma libidinosa e transgressora de um “Diabo Loiro”), e fornecem receitas e prescrições tal como um profeta prega a Lei, escrita em pedra, a ser seguida por quem não quiser ir pro inferno (e lembre-se que Deus não gosta de perdulários ou gente com ambições contra sua Providência).

Esta é, em suma, a estrutura opressiva do mundo contemporâneo, incapaz de promover qualquer valor para a juventude que não o carreirismo egoísta e oportunista mais desavergonhado (exigindo-se, além da competência, a indispensável e rara sorte) ou o desespero, cujo corolário é a auto-destruição niilista ou a busca angustiante por falsos Mestres (um Bolsonaro ou um guru charlatão, tipo que tanto abunda na cultura contemporânea, marcada por coaches e “filósofos” e líderes “religiosos” vigaristas). Na ausência de qualquer coisa que possa constituir uma esperança ou um valor verdadeiro (justiça, igualdade), resta aos jovens das favelas e periferias – com menos chances de serem “bem sucedidos” que os nascidos nas famílias certas – tentarem, quem sabe, virar um MC ou futebolista. Se este sonho não der certo – e a estatística indica que as probabilidades são pequenas – há apenas o crime organizado ou seitas religiosas obscurantistas. Isto é, claro, pressupõe uma bênção: não cair de um barranco e perder tudo após uma tempestade, não ser morto por uma bala perdida ou por uma “confusão” de um policial – ou até mesmo na forma mais explícita do extermínio deliberado, motivado por vendetas policiais contra familiares ou até contra pessoas aleatórias que tiveram o azar de estar no local errado, como no caso dos assassinatos recentes na Baixada Santista celebradas por Tarcísio de Freitas, o que não parece causar qualquer drama ou escrúpulo crítico por parte dos nossos “democratas”.

O capitalo-parlamentarismo: golpe de Estado e consolidação com Michel Temer

A nossa hipótese é a seguinte: mesmo que o Brasil tenha passado por todos esses efeitos ao longo dos últimos quarenta anos, o capitalo-parlamentarismo não se consolidou efetivamente aqui até a ocorrência de um marco decisivo: golpe de 2016 e o governo de Michel Temer.

O que havia impossibilitado um destino diferente ao Brasil – pelo menos por algum tempo – em relação aos países cansados do Velho Continente foi a existência de algo na contramão do quadro global pós-anos 80: uma esquerda forte que não se resumia aos rituais eleitorais. O movimento operário a partir do final dos anos 70, uma intelectualidade não totalmente renegada e servil, o movimento estudantil, a criação e fortalecimento gradual do PT e da CUT, a novidade do MST e seu poder de atração, possibilitaram, apesar dos pesares, que o país ainda mantivesse acesa uma chama de política real.

Claro, houve a entrada do PT ao consenso do Estado a partir de 2003 e sua posterior adaptação cada vez mais intensa ao status quo, (a ponto de ser legítimo hoje supor que o petismo como fenômeno político-intelectual possa ter morrido, paradoxalmente, mesmo com o novo governo de Lula), o que levaram às suspeitas de que poderíamos ter, enfim, nos “modernizado” à europeia (que sonho para nossas “elites”!).

No entanto, o fantasma da luta de classes ainda rondava. A partir do segundo governo Lula – é preciso lembrar do papel de vanguarda reacionária exercida pela revista Veja -, mas mais intensamente a partir do governo Dilma, o antagonismo político (que costuma alimentar reclamações de um setor da pequena-burguesia, cronicamente incapaz de tomar lado por alergia à política, a respeito de uma indesejada “polarização”) voltou na forma clássica que nossa direita conhece: manifestações de rua lideradas por demagogia (o caráter benfazejo e anti-corrupção do lava-jatismo foi sustentado por muita gente séria; hoje felizmente não há mais tantos com esta “coragem”), pânico reacionário e golpismo repressivo.

Um “consenso” (sem que ninguém fora dos lugares respeitáveis seja, de fato, ouvido, claro) se estabeleceu a partir do governo Temer: o país precisava acabar com as vacilações do petismo (demais suscetível a gastos populistas devido à sua origem e base social, incapaz de medidas duras e necessárias com a contundência devida) e engatar a marcha da austeridade fiscal, dos orçamentos ascéticos e das reformas indispensáveis (o mercado é um bicho muito emocionado, instável e mimado, precisa ser saciado constantemente em suas demandas). Os dez mandamentos estavam finalmente cristalizados. Tínhamos a Ponte para o Futuro.

Há, inúmeros elementos impressionantes, hoje esquecidos, nesta história: Temer e seu programa foram e ainda são saudados unanimemente pela imprensa e pelo mercado como um dos melhores presidentes do Brasil[vi], a despeito de ter as menores taxas de aprovação da nossa história. Há melhor exemplo do descasamento completo entre o que pensam os nossos senhores e os sentimentos e aspirações populares? Um presidente querido por ninguém fora alguns pouco privilegiados, sem qualquer ideia ou visão própria sobre o país a não ser servir gente poderosa e rica, incapaz de encantar algum público, merece saudações e lembranças eternas pelo trabalho bem feito.

Este descolamento já estava presente nas avaliações completamente diferentes a respeito do governo FHC II: há um abismo entre o balanço da gente importante em relação a quase todo mundo que vive apenas de sua força de trabalho. Enquanto o governo fora amplamente considerado desastroso, ao proporcionar espetáculos de colapso de infra-estrutura, apagão elétrico, quebradeira industrial e taxas de desemprego de incríveis 25% na região metropolitana de São Paulo, a ponto de FHC nunca ter mais aparecido em qualquer propaganda eleitoral do PSDB até, timidamente, retornar em 2014 – revejam, pelo YouTube, a campanha do José Serra em 2002: parece de oposição! -, economistas louvam tal período como o auge da boa condução macroeconômica brasileira. No entanto, pelo menos seus defensores poderiam argumentar que criou as condições para os bons anos lulistas. Ignoremos o “esquecimento” de que isto também foi resultado de políticas rejeitadas e combatidas por eles, como aumentos irresponsáveis no salário mínimo (indexado à previdência, credo!) e nos investimentos públicos. Nada disto pode ser dito a respeito de Temer.

A prometida recuperação, os zilhões de empregos da reforma trabalhista (apesar de muita gente sustentar, sem muita vergonha, que qualquer melhora do potencial econômico do país ainda hoje deve-se às tais “reformas”), uma sociedade mais justa e próspera, nunca vieram, mas o fundamental estava feito: estabelecer um novo consenso. Técnico e indiscutível. A política deve render-se às necessidades inexoráveis ditadas por quem de fato manda. Conceber algo diferente é impraticável.

Temer, no entanto, não tem o melhor perfil para o posto de fantoche do capitalo-parlamentarismo. Demais antiquado no vocabulário e aparência, amigo de muita gente indecorosa da “velha política”, sua biografia de vida não tem nenhum apelo sentimental apto a encantar nossas classes médias ansiosas por grandes histórias de superação ou meritocracia, não fala de meio-ambiente nem tem capacidade de fingir que se importa com direitos das mulheres e homossexuais. Não é um Emmanuel Macron, quanto mais um Obama. Mas não há por que entrar em desespero: Tábata Amaral está sendo bem trabalhada há tempos para ocupar este papel um dia. Ela é uma boa aluna, sempre foi.[vii]

*Diogo Fagundes é mestrando em Direito e graduando em Filosofia na USP.

Notas


[i] Os produtos mais famosos deste Zeitgeist, ainda que não os melhores, são dois best-sellers: “Como as democracias morrem”, de Stephen Levitsky, e “O povo contra a democracia”, de Yascha Mounk. Compõem, ao lado de livros voltados a discutir (em um estilo jornalístico e superficial) a filosofia do “tradicionalismo” (como a produção de Benjamin R. Teitelbaum, a doxa do anti-fascismo vulgar, isto é, do progressismo atual.

[ii] Para compreender o conceito (apesar de Lazarus não ter muita simpatia por esta palavra, demasiada filosófica, cientificista ou dialética), ver sua formulação original no final da terceira parte do texto “Peut-on penser la politique en intériorité?” (pp.135-140), contido na coleção de textos de Lazarus, organizada por Natacha Michel, “L’intelligence de la politique”, publicada pela editora Al Dante em 2013.

[iii] Estranho fenômeno este, afinal o auge do Gulag e do grande terror soviético se deu nos anos 30 até os 50. Nesta época, o que menos podemos dizer é que o marxismo havia sido afetado como inspiração intelectual e política no Ocidente. Pelo contrário: era o auge da influência do marxismo na cultura e dos partidos comunistas ocidentais como referência política! Causa certa curiosidade, além do mais, a absorção seletiva de Alexander Solzhenitsyn pelos intelectuais ocidentais: um admirador da monarquia imperial czarista, ancorado na cultura cristã eslavófila (e bastante anitessemita), sem qualquer admiração por parlamentos ou instituições democráticas, virou símbolo para toda uma geração apologética do Ocidente liberal como ideia comensurável à Humanidade e ao fim da História. Quando lembramos que boa parte desses intelectuais, como Bernard-Henri Lévy, são apoiadores exaltados do Estado de Israel até em suas ações mais brutais e extremadas, taxando qualquer crítico do país como anti-semita, a curiosidade ganha ares de humor (ainda que macabro).

[iv] Ver “Oito observações sobre a política”, em “Para uma nova teoria do sujeito”, Alain Badiou, ed. Relume Dumára, 1994.

[v] Até mesmo economistas do mainstream, como Angus Deaton, premiado com Nobel (deixamos de lado o ridículo da própria ideia da “ciência econômica” ser premiada ao lado de coisas sérias como física, matemática e literatura), apontam o estado desastroso herdado da despolitização da disciplina, prejudicial mesmo para seus fins prosaicos: gerir e administrar, sem grandes perturbações, sociedades marcados pelo único objetivo medíocre de se reproduzirem infinitamente. Segundo Angus, há cinco grandes deficiências da economia contemporânea: a negligência das estruturas de poder nas análises econômicas; a marginalização das questões filosóficas; a obsessão pela eficiência; a interpretação restrita dos métodos empíricos e a fixação cega em estatísticas inferenciais; e a falta de humildade face a outras ciências sociais. Ver neste link.

[vi] Mais de um editorial de Folha e do Estadão já lamentou a ingratidão do país contra o seu suposto grande legado.

[vii] O bom comportamento se manifesta em atos singelos, como a viagem a Israel acompanhada pelo lobismo sionista da CONIB. Tabata falou algo de ruim a respeito de Israel? Claro que não, só apontou o dedo para quem ousa criticar o genocídio palestino, como Lula. Que menina educada! Jamais devemos incomodar os anfitriões ou a opinião respeitável dos nossos editoriais de imprensa. E lembrar que Jacques Chirac, líder da direita francesa, tinha, pelo menos, a coragem básica de criticar os crimes israelenses contra a lei internacional e o direito dos palestinos, quando visitava Israel… Nosso “centro”, tão moderno e tão sem vida, não tem este farrapo de dignidade.


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