Por JORGE BARCELLOS*
A inundação como tema de um museu lembra os governantes que eles são responsáveis pela política de proteção das cidades, seja qual for sua ideologia
“Muita sabedoria da convivência com os rios foi apreendida ao longo do desenvolvimento da humanidade”
(Carlos Tucci) Nós aprendemos?
No Rio Grande do Sul, um grupo de intelectuais de esquerda estão refletindo sobre as bases para a construção de um museu da inundação. Tivemos inundação e não enchente porque na primeira há transbordamento, enquanto que na segunda, o rio fica no seu máximo previsto. A inundação como tema de um museu lembra os governantes que eles são responsáveis pela política de proteção das cidades, seja qual for sua ideologia. Ele é estratégico neste exato momento porque Porto Alegre vive o início da campanha eleitoral para prefeitos e vereadores. Para a esquerda é um cavalo de batalha. Isso impõe uma urgência no projeto. Mas isso é um problema.
Por quê? Porque o tema da inundação é uma parte de um problema maior, a dos acidentes do mundo contemporâneo. Sigo, nessa linha, o pensamento de Paul Virilio. A inundação é parte de uma grande história dos acidentes. Eles são de vários tipos: ambientais, tecnológicos, incêndios, naufrágios, desastres aéreos, terremotos. Isso exige um museu próprio. A inundação é apenas um capítulo.
Foi o que Paul Virilio mostrou em sua obra Unknown Quantity, exposição feita no Museu Cartier para a Arte Contemporânea onde pela primeira vez apresentou a tese do Museu dos Acidentes. Então caberia aqui defender a criação de um Museu dos Acidentes como esse, que vai desde o incêndio no prédio Renner, passaria pelo incêndio da Boate Kiss, pelas quedas de avião em solo gaúcho (e existem!) até a inundação de 2024. Isso é possível?
Seja qual for a proposta, a primeira ação necessária é a construção de uma linha de tempo sobre o tema da inundação. Há inúmeros estudos sobre a história das inundações gaúchas e estudiosos do tema melhores que eu como Rualdo Menegat. Mas entendo que é preciso divulgar a história dessas tragédias que se abateram sobre o Rio Grande do Sul. É o objetivo deste texto: divulgar que as inundações não são novidade em solo gaúcho, o que responsabiliza ainda mais as atuais autoridades em sua omissão frente a tragédia.
A melhor referência que encontrei sobre o tema da história das inundações na região sul foi o estudo de Lucia Porto e Maria Ilgenfritz intitulado Os rios na cidade: as enchentes na evolução urbana da Região Metropolitana de Porto Alegre, publicado pela Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional (Metroplan) em 2001. A obra, esgotada, é pouco acessível e raras bibliotecas tem um exemplar.
Na sua introdução, as autoras salientam que as inundações eram fenômenos raros no passado gaúcho, ocorrendo no intervalo de quase cada 50 anos. A população que aos poucos foi ocupando a região metropolitana e o interior do estado se localizou ao longo dos rios porque necessitava se beneficiar do uso de barcos, o meio principal de transporte. Mas salientam que desde a antiguidade se sabe como conviver com o risco de inundação.
Dos antigos egípcios que tinham o conhecimento de que áreas ribeirinhas deviam ser deixadas livres até nossos antepassados riograndenses que localizavam as igrejas em áreas não alagáveis, como a catedral metropolitana de Porto Alegre “existem vários canais construídos no século 19 que previam um leito para escoamento para a estiagem e outro para a inundação, o que foi esquecido no projeto do arroio Dilúvio, em Porto Alegre, que acabou sendo assoreado” afirmam Porto & Ilgenlfritz.
Aí começou o problema gaúcho. Com a pressa em ocupar os espaços urbanos, o grande desenvolvimento e a ocupação sem planejamento das cidades no século XIX levou a ocupação de áreas com risco de inundação. As cidades gaúchas passaram de uma população urbana na faixa de 55% nos anos 1970 para 82% nos anos 2000. Isso produziu a ocupação dos espaços planos próximos aos rios sem controle que, foram responsáveis por grandes inundações:
Porto Alegre foi diferente devido ao sistema de proteção de diques da cidade. Dizem as autoras “as inundações do período 1940 a 1968 foram significativas na cidade. Depois de 1970, quando foi construído o sistema de diques de proteção, as inundações foram insignificantes.” É que as autoras salientam que é preciso entender a geografia das cidades, onde dois fatores afetam as inundações. A primeira é a natureza dos rios, de que um rio não é construído por um único leito, na verdade ele tem dois.
O primeiro é o leito menor, que ocupa na maior parte do tempo (99%) e somente extravasa alguns anos, e o segundo, o maior, as planícies junto aos rios, chamadas de áreas ribeirinhas que, quando ocupadas pelos rios em cheia, geram as inundações. A segunda é a impermeabilização do solo fomentado pela produção das cidades. Casas, passeios, ruas, estacionamentos e parques são um problema para vazão das águas “como a água não consegue se infiltrar, este volume adicional escoa para o sistema de drenagem em direção aos rios. O aumento da vazão máxima é da ordem de seis vezes a vazão pré-existente.
Os projetos de drenagem urbana desenvolvidos dentro de um cenário local de cada loteamento têm como princípio ultrapassado o esgotamento de todo volume gerado o mais rápido possível através de condutos ou pela canalização dos riachos. Este processo gera uma forte aceleração das vazões máximas inundando os locais onde a capacidade de escoamento é pequena. O processo de aumento da capacidade dos canais ao longo da cidade se tornou insustentável economicamente”, dizem Porto & Ilgenlfritz.
A interpretação das autoras é importante para apontar que, antes de investir em canalizações que chegam a ser dez vezes mais caras que o controle local, falta uma política que analise a capacidade das bacias como um todo e se preocupe com as condições de infiltração. Os efeitos da urbanização, além de provocar inundações ao longo do rio, chamada de “jusante”, deterioram a qualidade da água pluvial pela lavagem das ruas, sedimentos e lixos que correm para o sistema de drenagem.
Foi o que vimos quando, inadvertidamente, o Prefeito Sebastião Melo orientou a população a colocar o lixo nas ruas, e logo após, com o retorno da chuva, seguiu-se uma série de entupimentos nos bairros Cidade Baixa e Praia de Belas. O Arroio Dilúvio é outro exemplo desse problema, já que à medida em que suas cabeceiras foram urbanizadas, os efeitos das cheias tendem a ser transferidos para a cabeceira do rio. Ali são depositados cerca de 57 mil metros cúbicos de sedimentos ao ano, fora o lixo urbano e esgoto cloacal sem tratamento, contaminando mananciais e reduzindo disponibilidade de água.
Segundo Carlos Tucci, do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS e autor da apresentação da obra, não é possível mais continuar impermeabilizando indiscriminadamente o solo da cidade, canalizando arroios e jogar para baixo do tapete nossos problemas de saneamento “o desenvolvimento de um planejamento de ocupação dos espaços de risco através do zoneamento das inundações permite conviver com as inundações ribeirinhas nas áreas em que o dique de proteção da cidade não cobre, com no caso da região metropolitana. O planejamento institucional do controle da fonte dos impactos da drenagem, resíduos sólidos e do esgotamento sanitário é essencial para ou desenvolvimento sustentável urbano”, finaliza.
Final do século XIX e início do século XX
Porto & Ilgenfritz lembram que a história da região metropolitana está ligada ao escoadouro natural da produção do estado, o Guaíba e a Lagoa dos Patos e os rios navegáveis foram escolhidos para dar acesso aos municípios que formaram o estado no século XIX: Rio Grande, Rio Pardo, Santo Antônio da Patrulha e Porto Alegre. Por isso é fundamental entender que nossa colonização acontece a partir de cursos d’agua. Somente a inclusão do eixo ferroviário mudará este destino: Canoas, Esteio e Sapucaia foram lugares de instalação de três estações ferroviárias. Já as obras contra as cheias são tardias: entre 1913 e 1920 é realizada a dragagem do canal de acesso ao porto de Porto Alegre quando a areia retirada é utilizada nos aterros que serviram para instalar a área portuária. A cidade começa a modificar os limites do rio.
Além de outra inundação que atingiu a cidade em 1847, os autores apontam o ano de 1873 para uma grande inundação. Ela começou na sexta-feira, 3 de outubro, interrompendo a linha de bondes para o Menino Deus, invadindo casas e cobrindo o trapiche da rua 7 de Setembro. Como na inundação atual, o transporte dos cidadãos era feito com canoas naquele bairro e a municipalidade organizava as doações para os flagelados “choveu, choveu, que era uma coisa nunca vista. O rio começou a encher, mas não assustou nos primeiros dias, desde que, porém, as grandes forças d’agua começaram a descer as serras, a inundação pronunciou-se de um modo espantoso e assustador”, citam as autoras em matéria publicada no jornal A Reforma.
A inundação atingiu ainda São Leopoldo e Canoas. Depois, a inundação de 1881 atingiu a abertura da exposição Brasileira-Alemã e após, a de 1897 impediu as corridas no Prado Navegantes e derrubou a Ponte de Pedra no Caminho da Azenha, enchendo o Arroio Dilúvio, ainda não canalizado e inundando novamente o Menino Deus.
Em 1905 e 1912 também foram registradas inundações na cidade, primeiro em agosto, e depois de maio a setembro, como a atual inundação. Afirma Porto & Ilgenfritz que “na capital, o riacho transbordava, o Guaíba ameaçava, o Gravataí saía do leito e o Campo da Redenção estava embaixo d’água. Ainda pior: naquela época existia o serviço de Asseio Público, carroças que recolhiam as matérias fecais e as despejavam no Cristal. Devido a cheia do Guaíba, isso acabou tendo de ser feito na Praia de Belas esquinas Botafogo”. Em 1914, outra cheia, considerada pelo Correio do Povo e pelo intendente José Montaury como a maior desde 1873 atingiu a cidade, chegando a 2,6m no trapiche da Secretaria de Obras, 20 cm a menos que a de 1873. Tudo até a rua Voluntários da Pátria virou rio.
Os anos 1920
A partir da década de 1920 várias transformações atingiram o estado e os municípios. Com a encampação da ferrovia com a criação da Viação Férrea do Rio Grande do Sul, Porto Alegre passou a ser centro nervoso do estado e o bairro Navegantes, localizado na zona norte e a beira do rio, se revelou completamente vulnerável às cheias. O Prefeito Otávio Rocha fazia reformas que cimentavam o chão, mas ao mesmo tempo criou a Hidráulica Moinhos de Vento e ampliou a rede de água e esgoto.
Em setembro de 1921 chuvas castigam a região, e especialmente o Vale dos Sinos, Montenegro e São Sebastião do Caí foram invadidas pelas águas. Os rios Jacuí, Sinos, Taquari e Caí estavam inundados e em Canoas teve água até no centro e faltou luz por dois dias em São Leopoldo. Em 1928 mais chuvas e cem quadras ficaram debaixo de água em Porto Alegre onde 30 mil pessoas tiveram de deixar suas casas. O bairro São João ficou alagado e a Cia Carris interrompeu os bondes para a região. Montenegro registrou a maior cheia, com o rio Caí atingindo 7,40 metros acima do nível normal. Ali, a inundação pegou o centro, a Rua Ramiro Barcellos até o Cais do Porto, quando a cidade ficou dois dias sem luz.
Os anos 1930
Em setembro de 1936 novas chuvas atingem o estado. Agora, São Jerônimo fica debaixo d’agua, além de pontes e pontilhões. A chuva chega em Porto Alegre no dia primeiro de outubro, o riacho sai de seu leito e o bairro Menino Deus e São João ficam alagados. Uma semana depois a cheia chega ao máximo de 3,12 m.
Diz Porto & Ilgenlfritz que “na Ilha da Pintada, os moradores estavam em alerta, pois o rio ameaçava invadir as casas. No centro da cidade, a água invadiu o depósito dos Correios e Telégrafos, prejudicando os serviços postais”. A chuva ainda atingiu São Leopoldo, impediu o tráfego e a comunicação no estado. Em Canoas, o transbordamento do rio Gravataí isolou a cidade e em Montenegro muitas casas ribeirinhas foram abandonadas.
Década de 1940
Enquanto o mundo atravessava a Segunda Guerra Mundial, em Porto Alegre travava-se outra: a da inundação de 1941. De 10 de abril a 15 de maio deste ano iniciaram as chuvas, sendo que 15 dias foram ininterruptos. Foram 15 mil casas atingidas e 700 mil pessoas desabrigadas “cinemas fecharam, colégios entraram em férias forçadas, jornais deixaram de circular”, dizem Porto & Ilgenlfritz. Porto Alegre ficou quase um mês sem água potável e energia elétrica.
Após a tragédia, os governos municipal, estadual e federal foram uníssonos em aceitar sua obrigação de se precaver para que no futuro não se repetisse, diferente de 2024. À época, os estudos previam nova inundação, no dia seguinte ou em 370 anos. Por essa razão, em 1949, ficou pronta a primeira parte do Sistema de Proteção contra as Cheias, a proteção do pôlder (planície protegida por diques) Aeroporto e da casa de Bombas número 6. Mas a conclusão da BR-116 um ano antes havia feito crescer a população urbana na beira da estrada.
As cenas vistas hoje e na inundação de 1941 eram as mesmas: centro transformado em rio, água no Mercado Público, Avenida Borges de Medeiros e ruas próximas. Em 1941 passamos de 110 mm de chuva para 678 mm no período. As cidades da região metropolitana como Canoas, São Leopoldo, Novo Hamburgo e São Jerônimo foram atingidas. Nesta última, 2/3 da cidade ficaram debaixo d’agua. Porto & Ilgenlfritz citam o depoimento de Edmundo Fróes, que morava no térreo em frente ao gasômetro e tinha o avô Haroldo Azambuja morando no andar superior de sua casa “eu e a turma pegamos um barco e fomos resgatar meu avô que estava deitado na cama, no segundo andar. Foi uma aventura”, diz.
Várias cidades ficaram incomunicáveis, os alimentos foram racionados, as aulas suspensas, a luz cortada, as fossas das casas pararam de funcionar e vieram os saques. Quando vemos os problemas de segurança no Bairro Sarandi hoje onde as pessoas preferem ficar em casa a sair por causa dos assaltos, vemos que este é um problema recorrente. Quando vemos brigas e uso da violência em abrigos que deveriam proteger a população, é novamente, o problema da segurança em situações de calamidade que retorna “a água não escolhe hora para tomar o lugar que é seu”, dizem Porto & Ilgenlfritz. O muro da Mauá, cortina de concreto que serve para proteger a cidade, só será finalizado trinta anos depois, nos anos 1970.
A década de 1950
A década de 50 viu a mudança do modal ferroviário e hidroviário para o rodoviário. Não havia outro lugar para as populações mais pobres se estabelecerem do que as margens dos rios. Para Porto & Ilgenlfritz “as cheias que volta e meia castigam municípios em desenvolvimento ou em processo de criação, em muito são creditadas ao desmatamento da Serra Geral, verdadeiro pulmão gaúcho.”
Em abril de 1956 uma nova inundação atinge a capital e as regiões perto do arroio Dilúvio, no Passo das Pedras, Passo da Cavalhada, Bairro Navegantes e Tristeza sofrem com o transbordamento de arroios. Esta inundação reavivou, como a atual, as lembranças da inundação de 1941 e a imprensa noticiava, segundo Porto & Ilgenlfritz que “há 15 anos não chovia tão violentamente em um período de 24 horas em Porto Alegre”. Canoas e Gravataí também sofreram os efeitos desta cheia.
Década de 1960
Nesta época, a expansão industrial da região impulsionou o desenvolvimento de cidades como Sapucaia, Alvorada e Cachoeirinha, municípios que, como Viamão, Gravataí e Guaíba, contribuíram para um boom imobiliário oferecendo novos, grandes e baratos loteamentos habitacionais “que muitas vezes surgiam em locais que não deviam, em banhados ou áreas alagáveis, terras que já nasceram condenadas para a ocupação humana. Terras que tinham como função regular o meio ambiente, servir como anteparo, realizar o “efeito esponja” quando as águas aparecessem em quantidade para retomar o seu lugar”, dizem Porto & Ilgenlfritz.
Hoje, com as inundações, o programa Fantástico da rede Globo anuncia o projeto das “cidades esponja” do arquiteto chinês Kongjian Yu como uma solução. Ora, os técnicos locais já conheciam a ideia mas nada puderam fazer quanto o Banhado Grande em Gravataí começa a ser drenado pelo DNOS, o que só foi suspenso em julho de 1979, quando um parecer de segurança público mandava suspender a drenagem “os cerca de 20 anos de redução e desmatamento da área foram talvez os maiores responsáveis pelas cheias ocorridas em Gravataí, Cachoeirinha e Alvorada“, dizem Porto & Ilgenlfritz.
Em agosto de 1965 ocorreu nova inundação e Porto Alegre foi atingida. Mais grave ainda a situação de São Leopoldo, com inundação em 16 bairros e mais de 33 mil pessoas atingidas e seis mil desabrigados, pessoas ficaram nos pavilhões da FENAC. Indústrias de calçados foram atingidas em Campo Bom e em Canoas, nas Vilas Niterói, Matias Velho e Rio Branco, nada diferente do que aconteceu na inundação de 2024.
Em Porto Alegre o bairro Navegantes e a vila dona Teodora ficaram debaixo d’água. O dique de proteção cedeu em parte. Sabemos desde esta época da fragilidade dos diques. Porque não são feitos diques maiores e mais resistentes? Em setembro retornaram as chuvas, as chamadas “chuvas de São Miguel’ e novamente a suspensão das aulas, vilas e bairros inundados, chegando a 35 quilômetros de extensão de águas, 1/3 do município à época, 18 indústrias e 80 estabelecimentos comerciais com prejuízos.
A chuva atingiu também Esteio, com inundação das vilas nas zonas baixas como a São José e a transformação da Avenida Presidente Vargas, uma das principais da cidade, em um rio. Nos anos seguintes 66 e 67, também chega a inundação a Porto Alegre com prejuízos à Vilas do Guaíba e a morte de um menino de onze anos. Neste último ano a inundação atingiu mais a região metropolitana, com chuvas em São Leopoldo, Alvorada, Campo Bom e São Jerônimo. E, como na inundação de 2024, vários trechos rodoviários foram interrompidos: entre Sapucaia e Gravataí, Viamão e Cidreira, Montenegro e Taquari, e Gravataí e Taquara.
Década de 1970
A drenagem do Banhado Grande, em Gravataí, impacta na construção da BR 290 cuja construção quase não foi finalizada pelas cheias que interrompiam a obra. Bacias de retardo, propriedades dos arroios e rios, são ocupadas para a criação de loteamentos junto ao distrito industrial de Gravataí. A primeira grande inundação acontece em julho de 1970 em São Leopoldo, com o rio dos Sinos 5, 89 m acima do normal, com a margem direita transbordando e dez vilas inundadas.
Em julho de 1976 foi a vez de Viamão, com cheia que destruiu 80% da produção hortigranjeira. No mesmo período foi a vez de Novo Hamburgo, onde as chuvas obrigaram a Secretaria de Saúde a elaborar esquemas de vacinação e abrigar, mais uma vez, desalojados nos pavilhões da FENAC. Diz Porto & Ilgenlfritz que “um perigo constante começa a rondar silenciosamente a Região Metropolitana: os alagamentos, causados por problemas de escoamento, falta de planejamento e, muitos casos, falta de conscientização da população”. Em 15 dias tivemos 351,4 mm de chuvas, uma das piores medições desde 1941.
A década de 1980
Novamente, em maio começam as chuvas e em agosto de 1983, surgiu uma inundação que obrigou os portões de ferro do muro da Mauá a serem fechados pela primeira vez. Segundo os técnicos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE era também o início das manifestações do El Nino. Cerca de 29 mil pessoas ficaram desabrigadas, 3 mil só na região do Delta do Jacuí.
Os movimentos sociais começam a exigir do poder público soluções para as cheias dos rios Caí, Taquari, Jacuí e Sinos que subiam vertiginosamente a cada inundação, dizem Porto & Ilgenfritz. Em São Leopoldo, 7 pessoas de uma mesma família morrem vítimas de um deslizamento de um depósito de cascalho no Morro de Paula, em São Leopoldo. David Ianosgrodski, então diretor do DMAE, decidiu junto com João Dib agir e “os dois bateram o martelo e Porto Alegre amanheceu com os portões da cidade lacrados”.
A passagem do século
Somente em 2002 veríamos nova inundação significativa na capital, com cerca de 2,46m e em 2015, com as águas atingindo 2,94m. A inundação de 2024 está sendo vivida como tragédia: suas características, causas e problemas são conhecidos e acompanham a história das inundações gaúchas. Elas envolvem precarização do sistema de proteção às inundações, precarização dos serviços públicos, politicas facilitadoras do desmatamento, abandono do financiamento da Defesa Civil, loteamento de áreas que deveriam servir de ocupação para águas das inundações. A principal é o modelo de desenvolvimento neoliberal, que costura e fomenta todas elas.
São muitas as lições das inundações ao longo da história: elas são produtos do descolamento das políticas de desenvolvimento urbano do gerenciamento ambiental; da ocupação de áreas impróprias e massiva do solo urbano; da destinação precária dos resíduos sólidos e desarticulação de programas educacionais, entre outros “hoje temos presentes a necessidade de mudança de paradigmas na gestão urbano-ambiental das cidades, em especial no que tange aos sistemas de drenagem. Um conjunto de ações deverá mitigar seus efeitos, prevenir outros e considerar que inundações são fenômenos naturais recorrentes e, portanto, devem ser considerados em todo planejamento e forma de intervenção”, dizem Porto & Ilgenlfritz.
Esse novo paradigma inclui a incorporação de cursos d’agua à paisagem urbana, reflorestamento, controle sobre a impermeabilização das áreas urbanas, incorporação de áreas públicas abertas para amortecimento das águas das chuvas e saneamento de bacias. Assim, nas eleições municipais que se aproximam, a Frente de Esquerda deve apresentar programas que proponham um pacto de integração de politicas onde “drenagem se constitua como um paradigma de fundamental importância na qualificação urbana e ambiental da cidade”, nos termos dos autores.
Jorge Barcellos, Historiador, é doutor em Educação pela UFRGS e servidor aposentado do legislativo municipal de Porto Alegre. Autor, entre outros livros, de Educação e Poder Legislativo (Clube dos Autores).
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