Bartleby, o professor de história

Imagem: Lucas andreatta
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ANTONIO SIMPLICIO DE ALMEIDA NETO*

Por que não recusar o que é imposto, o que agride?

Não faltava nunca, não saia de licença, nem usava as “faltas abonadas”. Tão logo soava o sinal se dirigia à turma prevista na grade de horários. Era assim de segunda a sexta, manhãs, tardes e noites. Almoçava e jantava na escola, frequentemente conseguia filar alguma merenda destinada aos estudantes, fosse arroz com atum ralado e ervilha em lata ou achocolatado com biscoito. Era viciado no café da sala dos professores, sem se importar se era fresco ou requentado.

Trabalhava na escola “XYZ” desde 2007, por aí. Era um dos mais antigos. Nos últimos anos suas aulas tornaram-se pouco ou nada criativas, principalmente depois que passou a utilizar o material didático do “São Paulo Faz Escola”, com suas apostilas do aluno e do professor. Entrava em sala, como num ritual, conferia a aula prevista e prescrita, três aulas para Iluminismo na 7ª série, quatro aulas para Revolução Russa na 8ª série, quatro aulas para Renascimento na 6ª série… e assim seguia, bimestre a bimestre. Abria a apostila, lia a lição e pedia que os alunos respondessem as questões pré-determinadas, cujas respostas podiam ser obtidas facilmente na web.

O professor tinha 37 anos de idade, começou a dar aula ainda como estudante, fez um excelente curso de licenciatura em história e mestrado stricto sensu. Iniciou Doutorado, mas desistiu. Passou a seguir as apostilas: “Caderno do Professor” e “Caderno do Aluno”.

Nessa manhã, durante a reunião pedagógica de planejamento, informei que seguiríamos um novo currículo, a BNCC. Expliquei que era um documento “feito por especialistas”, que correspondia às “demandas do aluno contemporâneo”, que continha o “conjunto de aprendizagens essenciais aos estudantes brasileiros”. Mas Bartleby[i] olhava fixamente através da janela da sala em que estávamos reunidos em direção ao muro alto que cercava nossa escola, distante dois ou três metros, criando uma situação um tanto claustrofóbica. Parecia ignorar minha presença e a dos professores das demais disciplinas. Olhava através e bebericava o café morno e requentado da garrafa térmica.

Aquilo me incomodava. Eu era a coordenadora pedagógica e seu alheamento soava desrespeitoso, parecia um tanto insolente, soberba de historiador… Eu havia ingressado na escola, por remoção, dois anos antes dele. Parecia ser um bom sujeito, bem afeiçoado, solteiro (ainda é, solteiro e sem filhos, sob a alegação de não querer deixar para ninguém o legado de sua miséria, explicação que nunca compreendi muito bem), estudioso, estava sempre carregando livros, títulos complexos, mantinha boa relação com os demais professores, alunos e funcionários.

Logo após o coffee break comunitário resolvi indagá-lo, expondo-o diante de seus pares na reunião, parceiros atentos e operantes, que trouxeram os biscoitos, o bolo de caixinha e as torradinhas com patê de creme de cebola, e o indaguei sobre a importância de seguirmos a BNCC de História, discorri com razoável propriedade sobre as habilidades e as competências, sobre os direitos de aprendizagem, sobre os códigos alfanuméricos e até me arrisquei a falar sobre o amplo consenso nacional, o pacto interfederativo, o Novo Ensino Médio, as Trilhas Formativas, e conclui, com a voz embargada…, lembrando que o futuro das novas gerações estava em nossas mãos. Ao final de minha explanação disse a ele: “E então, professor, o que pensa disso?”

– Acho melhor não, disse Bartleby, o professor de História.

Sem esboçar nenhum sentimento ou mover qualquer músculo da face, assim respondeu à minha indagação. Olhava fixamente o muro em frente à janela da sala, impassível. Não se percebia qualquer constrangimento, parecia uma esfinge a degustar café requentado.

Tornei a indagá-lo, primeiro me dirigindo a todos, para não parecer alguma perseguição pessoal, e depois diretamente a ele, apelando para a importância do trabalho coletivo. Mas ele tornou a responder:

– Acho melhor não.

Os colegas se entreolhavam, perplexos. É certo que Bartleby nunca fora muito expansivo, sempre estava mergulhado em seus livros e pensamentos. Eventualmente, arriscava algum comentário lacônico sobre o cenário político e suas ambiguidades, que parecia mais confundir que explicar. Os alunos até gostavam dele. Mas essa recusa em participar, logo no início do ano letivo, primeira reunião pedagógica, a resposta lacônica causou-nos espécie.

A professora de biologia revirou os olhos, impaciente, em reprovação. O colega de geografia fez ar de tédio. A professora de língua portuguesa corrigia redações de um cursinho pré-vestibular, impaciente. O professor de matemática olhou indignado para o colega de educação física, que fez menção de agredir Bartleby. Nada irrita mais professores honestos que a resistência passiva.

Com o horário avançado e para apaziguar os ânimos, dei por encerrada a reunião e desejei um ótimo início de ano a todos. Bartleby continuava sentado na mesma posição, ainda olhando para um ponto imaginário no muro, através da janela. De saída, cruzando a porta, despedi-me:

– Nos falamos outra hora, Bartleby! Tenha um bom dia!

Já no corredor ouvi:

– Acho melhor não.

Foi a última vez que vi Bartleby.

*Antonio Simplicio de Almeida Neto é professor do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Autor, entre outros livros, de Representações utópicas no ensino de história (Ed. Unifesp). [https://amzn.to/4bYIdly]

Nota


[i] Referência a Bartleby, o escrivão – uma história da Wall Street, de Herman Melville. [https://amzn.to/4dis6j2]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A condenação perpétua de Silvio AlmeidaLUIZ EDUARDO SOARES II 08/09/2024 Por LUIZ EDUARDO SOARES: Em nome do respeito que o ex-ministro merece, em nome do respeito que merecem mulheres vítimas, eu me pergunto se não está na hora de virar a chave da judicialização, da policialização e da penalização
  • O avesso de Marxcultura los soles 14/09/2024 Por TIAGO MEDEIROS ARAÚJO: Comentário sobre o livro recém-lançado de José Crisóstomo de Souza
  • O triste fim de Silvio Almeidasilvio almeida 08/09/2024 Por DANIEL AFONSO DA SILVA: O ocaso de Silvio Almeida é muito mais grave que parece. Ele ultrapassa em muito os eventuais deslizes deontológicos e morais de Silvio Almeida e se espraia por parcelas inteiras da sociedade brasileira
  • O caso Silvio Almeida — mais perguntas que respostasme too 10/09/2024 Por LEONARDO SACRAMENTO: Retirar o ministro a menos de 24 horas das denúncias anônimas da Ong Me Too, da forma como foi envolvida em licitação barrada pelo próprio ministro, é o puro suco do racismo
  • A bofetada do Banco CentralBanco Central prédio sede 10/09/2024 Por JOSÉ RICARDO FIGUEIREDO: O Banco Central pretende aumentar a taxa Selic, alegando expectativas de inflação futura
  • As joias da arquitetura brasileirarecaman 07/09/2024 Por LUIZ RECAMÁN: Artigo postado em homenagem ao arquiteto e professor da USP, recém-falecido
  • Silvio Almeida — entre o espetáculo e o vividoSilvio Almeida 5 09/09/2024 Por ANTÔNIO DAVID: Elementos para um diagnóstico de época a partir da acusação de assédio sexual contra Silvio Almeida
  • O pedido de impeachment de Alexandre Moraesstf supremo brasília niemayer 15/09/2024 Por MARCELO AITH: Os processos de ruptura democrática se iniciam, invariavelmente, com o enfraquecimento do Poder Judiciário, como ocorreu na Hungria com o primeiro-ministro ditador Viktor Orbán
  • Silvio Almeida: falta explicarproibido estacionar 10/09/2024 Por CARLOS TAUTZ: Silvio Almeida acusou a Mee Too de ter agido para influenciar uma licitação do MDH por ter interesse no resultado do certame
  • Ken Loach – a trilogia do desamparocultura útero magnético 09/09/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: O cineasta que conseguiu capturar a essência da classe trabalhadora com autenticidade e compaixão

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES