O cesarismo difícil

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Por Leonardo Avritzer*

Com Mourão na presidência teremos um militar burocrático que não entusiasmará os brasileiros, mas também não irá colocar a vida das pessoas em risco.

No domingo dia 03 de maio de 2020 uma carreta em Brasília era liderada por um veículo com os dizeres “intervenção militar com Bolsonaro”. Ao parar em frente ao Palácio do Planalto, o presidente se posicionou na rampa e disse aos participantes: “que não iria mais admitir interferência em seu governo e que chegou ao limite e que tinha o apoio das Forças Armadas”. A faixa da manifestação e a fala de Bolsonaro que não é a primeira e não será a última nesta direção aponta para a chamada solução cesarista da crise. Só que ao que parece faltou combinar com os russos ou com as Forças Armadas.

O cesarismo foi um conceito muito utilizado no século XIX quando diversos autores chegaram à conclusão de que a oposição ditadura versus democracia permitia diversos pontos intermediários. Uma boa definição de cesarismo encontrada no Dicionário de política (editora UnB) organizado por Norberto Bobbio o define como “um poder forte que sabe desvincular-se dos interesses dos grupos e dos indivíduos e aliar-se estreitamente ao Exército…”. Neste artigo, partiremos desta definição, mas iremos acrescentar outras dimensões: o plebicitarismo e as condições para o líder carismático adquirir o apoio militar.

Karl Marx e Max Weber trataram a questão do cesarismo, mas o fizeram de forma bastante diferente. Para Marx, o conceito de cesarismo e principalmente o bonapartismo tem duas dimensões principais: a primeira delas é um equilíbrio de classes causado pelo fato da burguesia ter perdido a capacidade de governar enquanto o proletariado ainda não a havia adquirido. A segunda está ligada às estratégias de Louis Bonaparte de ir derrotando os seus oponentes de um a um [1]. Para os objetivos deste artigo irei tratar apenas da questão do equilíbrio, mas não como equilíbrio de classe e sim entre grupos e subgrupos políticos. Estamos no Brasil em uma situação de equilíbrio, ou daquilo que Antonio Gramsci denominou de “equilíbrio político catastrófico”.

Max Weber também abordou o conceito de cesarismo ainda que em contexto diferente. Para ele, o cesarismo era o resultado da ascensão de lideranças plebiscitárias. Para Weber, os grandes líderes plebiscitários introduzem elementos emocionais na política. “A “massa” como tal (independentemente das camadas sociais que a compõem em qualquer exemplo particular) só é capaz de pensar a curto prazo. Pois, como toda experiência mostra, ela está sempre exposta a influências diretas puramente emocionais e irracionais” Assim, o perigo do plebicitarismo é corromper a capacidade democrática de produzir as decisões racionais que a política democrática necessita. Este é o papel pernicioso desempenhado pelos líderes. Todo brasileiro na crise do coronavírus tem capacidade de entender a frase “corromper a capacidade democrática de produzir decisões racionais” entre as quais poderíamos destacar “optar pela vida”.

O bolsonarismo pode ser entendido como uma combinação entre elementos do cesarismo destacados por Marx e outros enfatizados por Weber. O governo Bolsonaro não é um governo dos militares, e a relação entre Bolsonaro e os militares não é simples, uma vez que quando o Exército pôde, ele reformou o então tenente.

Bolsonaro se reaproximou do Exército pela via do corporativismo clientelista propondo emendas parlamentares para beneficiar a corporação. Mas, nada indica que ele seja visto com confiança pelas lideranças das Forças Armadas. Assim, o bolsonarismo seria uma associação entre carisma e uma aliança com o Exército enquanto legitimador em última instância de uma política de massas.

Temos assim os principais elementos do bolsonarismo, especialmente depois da ruptura com Sergio Moro: política de massas para uma classe média antiesquerda, mobilização e ancoragem militar. Bolsonaro tem tido a capacidade de manter este núcleo de apoio, mas perdeu o entorno deste núcleo que incluia setores de classe média com escolaridade mais alta e agora com a demissão de Sérgio Moro “lavajatistas” em geral.

Algumas dificuldades parecem estar no caminho entre Bolsonaro e a possibilidade de uma solução cesarista. A primeira e mais relevante reside no fato do capitão reformado ter pouca liderança efetiva na caserna. Em soluções cesaristas clássicas, como no bonapartismo francês, o carisma do político se estende às Forças Armadas. Há uma forte dúvida se o carisma do capitão frente a um baixo clero das redes sociais se associa a uma efetiva liderança militar. Bolsonaro não a tem.

Parece cada vez mais duvidoso que os generais mais próximos a ele tenham de fato a liderança da caserna. Aparecem, neste caso, lideranças alternativas e mais ponderadas no Exército, para não falar da Marinha e da Aeronáutica que foram muito mais relutantes em aderir à alternativa bolsonarista. Assim, comandantes como o general Edson Pujol parecem impedir esta solução. No final de semana dos dias 02 e 03 de maio apareceu em alguns órgãos de imprensa a notícia plantada por alguém do entorno do capitão, de uma intervenção dele no exército para inserir algum dos seus generais favoritos ali, uma solução que mais uma vez parece improvável e contra a qual quase todos os generais se opuseram.

Max Weber afirma em A política como vocação (editora Cultrix) que em épocas de crise profunda os líderes políticos precisam mostrar três qualidades: paixão, responsabilidade e proporção. Não falta paixão à reação de Bolsonaro à crise. Aliás, paixão é uma das características do comportamento do ex-capitão rebelde.

Só que o tipo de paixão com a qual o presidente se envolve nas questões é a paixão da lógica amigo versus inimigo, da destruição do outro. Se as ideias de coerção e de inimigo fazem parte da lógica da caserna, elas o fazem mediadas por outros conceitos que o bolsonarismo não consegue identificar, como o de confiança da população, fator importante para as Forças Armadas e que a aventura bolsonarista pode eventualmente colocar a perder.

O maior problema das Forças Armadas para aderir ao bolsonarismo, porém, é que os níveis de irresponsabilidade do presidente não geram uma perspectiva de estabilização da crise sanitária. As Forças Armadas saíram de sua aventura militar entre 1964 e 1985 com o prestígio pouco arranhado, quando pensamos em uma perspectiva histórica. Elas conseguiram manter a capacidade de intervir na sociedade a chamado de um dos poderes; elas conseguiram manter a autoanistia fajuta que elas mesmas se concederam e que caiu em países como a Argentina e o Chile e, por fim, elas mantêm um enorme aparato de benefícios corporativos tributários recentemente ampliados pelo capitão.

A pergunta que os militares devem estar a fazer é: vale a pena aderir a este pseudo-Bonaparte que parece ser uma farsa de saída e colocar tudo a perder? Ainda mais básico, no caso do impeachment as Forças Armadas passariam a estar na presidência com um general com níveis maiores de responsabilidade e estabilidade.

Assim, aqueles que têm medo de que um pedido de impeachment reforce a solução cesarista deveriam perceber que as tentativas cesaristas do capitão não parecem ter sido frutíferas. Depois de duas notas do Ministério da Defesa contra os arroubos antidemocráticos do capitão, a segunda delas assinada pelos comandantes das três forças, tudo indica que o estômago das Forças Armadas para mais uma aventura é baixo.

Temos medo do vice de Bolsonaro? Sim, mas os erros da esquerda foram cometidos em 2018 ou até antes e as alternativas institucionais já estão dadas. Tudo indica que Mourão será um vice das próprias Forças Armadas, mas com um comportamento mais clássico, em especial, se a pandemia do coronavírus seguir. Ou seja, ele não será um democrata convertido e não devemos ter ilusões quanto a isso, mas também não será um neofacistoide irresponsável. Ele apenas completará o mandato do seu titular sem grandes arroubos, mesmo porque lhe falta carisma e capacidade de mobilização. Ou seja, teremos um militar burocrático que não entusiasmará os brasileiros, mas também não irá colocar a vida das pessoas em risco.

*Leonardo Avritzer é professor de ciência política na UFMG. Autor, entre outros livros, de O pêndulo da democracia (Todavia).

Notas

[1] agradeço ao Ricardo Musse por esta dica.

 

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