Por ALINE MAGALHÃES PINTO*
Prefácio ao livro de Dominick LaCapra
Compreensão, justiça e generosidade: por um ethos além do humano
“Começar, re-começar (recomecemos) — é arriscado, às vezes impossível, sabemos, — por dizer nós, o mais justamente, o menos injustamente possível”. (Jacques Derrida, Nós).
“Tout autre est tout autre”, diz Jacques Derrida, em Donner la mort.[i]O filósofo — com quem Dominick LaCapra, ao longo de sua obra, dialoga intensamente — afirma que a estranheza causada por essa fórmula, a um só tempo extremamente econômica e profundamente elíptica, provém do fato de que o jogo de suas palavras, longe de se constituir como uma tautologia, guarda em sua linguagem cifrada algo que deveríamos considerar como se fosse o segredo de todos os segredos.
Pois, continua Jacques Derrida, nessa curta e potente formulação, o encontro do pronome adjetivo indefinido (tout) com o advérbio de quantidade (tout) produz o efeito de uma drástica heterologia: não são todos, mas somente uns que são outros. Só alguns, e nunca todos os outros, são totalmente, absolutamente, radicalmente e infinitamente Outros. E por quê?[ii] Podemos dizer que o movimento que Dominick LaCapra persegue no livro que temos em mãos está condensado na formulação da heterologia apontada por Jacques Derrida. Por meio do conjunto dos textos aqui reunidos, empenhamo-nos uma vez mais no movediço terreno das relações entre identidade e alteridade.
Compreender outros, todavia, não se constitui como um gesto especulativo abstrato em nome da decifração ou da conservação desse enigma antropologicamente basilar. Movendo-se, com destreza, entre prática e teoria, a reflexão de Dominick LaCapra mobiliza, de uma maneira que é muito peculiar, os vínculos entre ação e subjetividade, consciência e natureza, no sentido de indicar, por um lado, a necessidade de uma mudança no paradigma de regulação dos processos sócio-históricos pelos quais alguns, e não todos, tornam-se Outros.
Por outro lado, Dominick LaCapra aponta, por meio de seu trabalho, os elementos que, a seu ver, são fundamentais para a construção de um quadro de referências teórico-conceitual para uma história intelectual d’os outros: outros povos, outros tempos e outros seres além dos humanos — como o subtítulo do livro deixa claro. Essa história, adverte de saída o autor, não pode desconsiderar questões econômicas, sociais e ecológicas (p. 37). Mas isso não será suficiente. Para sermos capazes de ver e de fazer ver o outro, deveríamos nos tornar capazes de reconhecer como, mesmo contra nossa intenção deliberada, em nossas pesquisas e estudos estamos abertos à possibilidade de atuarmos como “informantes dos poderes” a que servimos.
Com alguma ironia, Dominick LaCapra afirma que, “estruturalmente, antropólogos são o que Jean-Paul Sartre chamou, em expressão reveladora, de funcionários subalternos da superestrutura” (p. 181). Esse reconhecimento é o ponto de partida para uma postura autorreflexiva e autocrítica acerca da limitação epistemológica das demandas por objetividade e neutralidade, muitas vezes associadas — no caso da historiografia — aos arquivos e documentos.
A complexa nebulosa que se arma entre nós, o outro que vive em nós e aqueles que se tornam outros, atua como um farol que orienta Dominick LaCapra na composição do que anteriormente mencionei como sua “maneira peculiar” de pensar. Nesse sentido, Compreender outros é um livro bastante interessante para conhecermos o que há de específico na produção historiográfica do autor, na medida em que oferece uma síntese refletida de suas inspirações teóricas, de seus principais objetos e de sua forma de praticar história intelectual, que, em geral, visa reelaborar padrões culturais a partir de diferentes recortes temporais, psíquicos e sociais.
Dominick LaCapra, desde os anos 1980, mostrou-se um historiador que se posicionou contra a ingenuidade empírica de seus pares. Seu procedimento teórico, ao colocar em diálogo Bakhtin e Jacques Derrida, desafiava a postura hegemônica na prática da historiografia profissional à época, marcada por uma concepção em que o contexto assumia o valor de um recorte de natureza ontológica privilegiada. Por meio da exploração das noções de carnavalização e textualidade, LaCapra desenhava suas pesquisas como o tecer de uma rede inter-relacional entre leitor, texto e contexto, evidenciando uma questão teórica: a aporia de um sentido histórico configurado de maneira instável, sempre mediado, nunca transparente, jamais discernível de uma vez por todas e que, por isso mesmo, engendra uma historiografia que caminha entre o território da linguagem em sentido denotativo, conceitual, sério e científico e os domínios da metáfora e da retórica.[iii]
Ainda que muito instigante, a visão de Dominick LaCapra não escapou das críticas ferozes que incidiram sobre aqueles que ousaram levar, para o campo historiográfico, desdobramentos teóricos extraídos do linguistic turn.
A partir dos anos 1990, temas que vinculam ética e memória emergem como centro das preocupações nas pesquisas acadêmicas, ao mesmo tempo que o impacto do pós-estruturalismo e do linguistic turn nos meios de pós-graduação norte-americanos tendeu a diminuir. Como analisei detidamente em outra oportunidade,[iv] intensos debates no mundo intelectual norte-americano a partir do final dos anos 1980 acabam se transformando na reivindicação por uma historiografia teoricamente sofisticada e eticamente atenta, capaz de recusar as interpretações fascistas do passado.
Nesse contexto, Dominick LaCapra repensou certas consequências éticas de um ceticismo orientado linguisticamente, deslocando seus esforços intelectuais em direção a novos objetos e temas, com destaque para o trauma, e transformou a psicanálise em fonte privilegiada de interlocução teórica. Os resultados dessa inflexão no trabalho de investigação de Dominick LaCapra podem ser vistos a partir do livro Representing the Holocaust: History, Theory, Trauma (1994) e nas publicações que o seguem, History and Memory after Auschwitz (1998) e Writing History, Writing Trauma (2001).
Desde então, a história intelectual de Dominick LaCapra, transitando entre diferentes objetos, mantém-se como prática de investigação teoricamente conduzida de forma crítica, questionadora, reflexiva, que se situa a partir de um enclave entre uma temporalidade “inconsciente” vinculada à memória, aos mitos e aos rituais e uma temporalidade propriamente histórica e conjectural ligada à especificidade e à singularidade dos eventos.
Em Comprender outros, Dominick LaCapra procede a um exercício críticoreflexivo sobre a forma como, em seu trabalho, dá-se a articulação entre os diferentes conceitos e noções que fundamentam sua visão historiográfica. Talvez, o nome mais adequado para esse exercício seja “vigilância autorreflexiva”, expressão cunhada pelo autor para designar a atenção que deve ser dada às distinções, aos conceitos e aos investimentos teóricos por parte do historiador. Retomando a ainda necessária problematização a respeito da noção de contexto, LaCapra reafirma a importância da contribuição de Jacques Jacques Derrida para o campo historiográfico, conduzindo sua interpretação em torno da obra do filósofo argelino para fora do campo do estrito textualismo.
Como Dominick LaCapra assevera, a concepção de texto na filosofia de Jacques Derrida é um operador que permite ao historiador articular os elementos sincrônicos e diacrônicos das temporalidades específicas e múltiplas que atravessam a experiência; isto é, ela possibilita um trabalho historiográfico com textos, linguagens e práticas significantes menos ingênuo e mais crítico a uma concepção denotativa-descritiva da linguagem. Como estrutura generalizada de traços de amarração mútua e assimétrica, atravessada por forças tensamente inter-relacionadas, o texto, ou melhor, a “inexistência de um fora do texto”,[v] constitui, para LaCapra, um caminho para se pensar em contraste ou desvio às oposições binárias que, para o autor norte-americano, alimentam o mecanismo de bode expiatório — expediente psíquico, coletivo e individual pelo qual a angústia e a insegurança inerente ao self são projetadas exteriormente em outros vulneráveis que, paradoxalmente, são temidos como uma ameaça.
A figura do bode expiatório e a oposição binária entre o self e o outro (ou entre “nós” e “eles”) nos reenviam ao “segredo de todos os segredos” enunciado por Jacques Derrida e que diz respeito, finalmente, ao fato de que a consciência moral e política permanece marcada pela noção de sacrifício e, no limite, pela sombra da violência: fazemos morrer ou deixamos morrer apenas alguns, e não todos. Esse alumbramento está na ordem no dia, uma vez que é o cerne das discussões sobre necropolítica.[vi]
A discussão política contemporânea não pode se esquivar do fato de que um bom funcionamento da ordem econômica, política e jurídica das formas sociais hegemônicas parece ligado ao sacrifício do outro a fim de não sacrificar a si mesmo. Num sentido profundo, a reflexão de Dominick LaCapra nos leva a reconhecer nos modos de vida tecno-científico-industriais a presença fundadora do trauma, do traço sacrificial e da violência. Sua reflexão nos conduz também à interrogação a respeito da possibilidade de uma história que perlabore (working through) essa presença em vez de reiterá-la (acting out).
O traço sacrificial, traumático e violento, certamente é uma marca inconsciente que participa da economia das relações de alteridade e identidade, incluindo a alteridade que reside no interior do próprio self, e está ligado a experiências de violência, vitimização, luto, trauma e opressão. Não obstante, e paradoxalmente, o sacrifício liga-se igualmente a oferta, doação, confiança, compaixão, responsabilidade e ao que se torna sagrado para uma determinada comunidade. Dominick LaCapra não busca diluir a complexidade dessas relações. Tampouco se deixa satisfazer com uma melancólica reafirmação de sua ambiguidade.
Ao longo do livro, em um embate corajoso com o momento político em que o governo de Donald Trump, nos Estados Unidos, significava a manifestação de questões como preconceito, racismo, misoginia, ultranacionalismo e ânimo anti-imigrantes, banhadas em um caldo de autoritarismo e personalismo político, Dominick LaCapra parece querer dizer a si mesmo e a todos nós que é preciso dar um basta à reiteração constante da violência sacrificial para nos lançarmos rumo a um projeto de futuro, um novo futuro, um futuro mais desejável ou, pelo menos, “um futuro mais suportável” (p. 268). Seu trabalho, portanto, incita deliberadamente a revisão dos limiares pelos quais uns se tornam outros, separando outros povos, outros tempos e outros animais.
Certamente, a elaboração dessa perspectiva parte da bagagem acumulada pela pesquisa que resultou em History and Its Limits: Human, Animal, Violence, em que Dominick LaCapra identificou a configuração de um trauma trans-histórico ou estrutural que é plasticamente encenado de maneiras diversas: como pecado original, como passagem da natureza para a cultura, como separação/perda da mãe, como a “entrada” na linguagem ou concebida como o real lacaniano. A partir daí, ele tratou de elucidar como e em que medida os elementos desse traumático plano trans-histórico estão inseridos em experiências históricas traumáticas, tais como as atrocidades da guerra e o genocídio. A articulação teórica entre os planos trans-históricos e históricos abre espaço para uma discussão antropológica sobre o trauma da qual emergem os limites não apenas da história, como também da própria relação entre o humano e o animal e, por consequência, os limites entre razão e a violência.[vii]
Em Compreender outros, vemos a retomada da discussão de fundo antropológico e histórico, agora acompanhada de um imersivo trabalho de esclarecimento a respeito da noção de transferência, cuja centralidade já era identificada nos livros anteriores. Essa elucidação é decisiva para entendermos como se dá o deslocamento da noção de transferência do campo estritamente psicanalítico para o historiográfico e qual o seu papel na formulação de uma crítica aos cortes produtores de alteridade que geram identidades sedentas por se autoafirmarem todo o tempo.
Dominick LaCapra considera a psicanálise como uma ciência social com a qual a historiografia não pode deixar de interagir. Nas obras anteriores, o diálogo com Lacan era mais corrente. Já nos textos que compõem Compreender outros, a interlocução com o campo psicanalítico se dá prioritariamente com o pensamento freudiano. Como LaCapra afirma, para Freud, a alteridade se associa ao papel da transferência e ela diz respeito, antes de tudo, à relação pai-filho, que sinaliza uma implicação mútua inerente, mas diferencial, doself nos outros.
Inicialmente, Dominick LaCapra solicitou o conceito de transferência para questionar as formas como o historiador encontra-se implicado em relação a seu objeto de estudo. Compreender outros apresenta uma expansão desse ângulo de atuação conceitual. Ao tratar a transferência como conceito relacional não restrito à psicologia individual, essa mútua implicação do self que envolve uma tendência à repetição e um investimento afetivo, para Dominick LaCapra, não se restringe às pessoas.
Ela se dá também nas relações entre diferentes comunidades humanas, entre textos e entre animais. Se Freud acreditava que a transferência afetava todas as relações humanas, Dominick LaCapra vai além e pensa que a transferência, ou seja, a mútua implicação do self, igualmente acontece nas relações com “seres outros-que-os-humanos” (p. 188).
A implicação transferencial, da maneira como compreendida por Dominick LaCapra, supõe a recuperação dos sentidos da empatia e da compaixão em contraposição ao significado da identificação. Conforme o historiador argumenta, enquanto a identificação ameaça a alteridade com o colapso e a sujeição, a empatia requer colocar-se na posição do outro, sem assumir o lugar dele ou tomar o locus enunciativo do discurso por ele. Isto é, insiste Dominick LaCapra, a empatia não é um sinônimo da identificação, uma vez que se baseia no reconhecimento, sob certas condições, da possibilidade de executar certas ações ou certas experiências — o que engendra uma “consciência ampliada”, capaz de se manter eticamente vigilante ante essa possibilidade.
Diante da perpetração de um ato atroz, a consciência vigilante entende que também poderia agir assim e, por isso, torna-se capaz de intervir em si mesma, preventivamente, de maneira a evitar que essa possibilidade se concretize. A empatia ou a compaixão não podem, da perspectiva de Dominick LaCapra, ser confundidas com apoiar, aceitar ou perdoar a perpetração de violências e experiências traumáticas. Seria quase que o contrário. Elas são componentes fundamentais e, todavia, não suficientes para uma compreensão histórica fundamentada e para uma ação social e política viável (p. 88).
A armação conceitual de Dominick LaCapra liga esse entendimento específico da empatia à inescapabilidade da tendência transferencial. Individual ou coletivamente, temos a propensão de incorporar traços do outro em nós ou de projetar nele certos traços que nos pertencem, mesmo que o “outro” seja um objeto de pesquisa. Esses “traços” são marcas que concernem a nossas próprias convicções, visões de mundo e desejos. Sendo compreendida dessa forma, a empatia é um dispositivo importante para que a implicação transferencial, envolvida ou não em uma experiência traumática, possa desencadear um processo de perlaboração.
Em Writing History, Writing Trauma, Dominick LaCapra construiu um modelo de análise sobre as respostas ao trauma histórico, no qual opõe o conceito de perlaborar (working through) ao conceito de acting out (que pode ser entendido por meio das ideias de reagir ou manifestar no presente reiterando algo previamente configurado ou experimentado). Nesse livro, LaCapra afirma que a reação característica do acting out está ligada a uma compulsão ou tendência à repetição, e os que dela sofrem sentem-se “presos” à experiência traumática, que é revivida repetidamente, acarretando uma sobrevivência dolorosa, muitas vezes perpassada por um sentimento de constante ameaça que gera uma compulsiva hipervigilância e um desejo de segurança.
Por sua vez, a perlaboração, ou trabalho de elaborar a experiência traumática, é um tipo de resposta muito mais difícil ao trauma, pois não sucumbe à tentação, muitas vezes justificável, de bifurcar o mundo entre bem e mal, vítima e algoz. O processo de perlaboração não prescreve respostas fáceis ou uma progressão linear através da dor, mas em vez disso envolve uma automodelagem da memória por meio da autorreflexão e do engajamento crítico.[viii]
Em Compreender outros, Dominick LaCapra prossegue sua perquirição acerca do trauma e de suas zonas cinzentas (termo que toma de empréstimo de Primo Levi[ix]), ampliando consideravelmente o horizonte de atuação dos conceitos de perlaboração (working through) e acting out. Deixando de estar restrito à experiência traumática, o âmbito concernente a ambos conceitos agora se relaciona à concepção ampliada de transferência como autoimplicação, envolvimento afetivo e tendência a repetir, que rege as relações entre pessoas, comunidades, textos, saberes e animais.
Conforme Dominick LaCapra explica, perlaborar acarreta um trabalho (no sentido psicanalítico) que se opera sobre o self e sobre os processos sociais, exigindo uma coimplicação transferencial que modela a repetição de forma a resistir à compulsão, desviando-se dela. Isto é, perlaborar “envolve abrir o self a considerar e respeitar os outros, e pelo menos a uma compreensão limitada dos outros enquanto outros, sem reduzi-los às próprias identificações narcísicas projetivas ou incorporativas” (p. 29). Por seu turno, o acting out caracteriza o modo de transferência totalmente submerso nas repetições compulsivas que produzem identificações e projeções reativas e defensivas, as quais, por sua vez, não estão apenas presentes como reação a uma experiência traumática.
Por acting out compreende-se também a projeção das angústias, fragilidades e inseguranças depositadas no self, que, então, reage contra qualquer reinvestimento e remodelagem que possa, no presente, produzir aberturas para o futuro. Esse modo de ação reforça preconceitos e a eleição de bodes expiatórios, num ciclo de feedback que se presta como instrumental para gerar ou reforçar oposições injuriosas e mesmo gestos de violência.
A referência feita por Dominick LaCapra ao comportamento do ex- presidente dos Estados Unidos é particularmente oportuna para interpretar essa forma ampliada de se entender o acting out. LaCapra afirma que Donald Trump “parece às vezes um caso paradigmático de ‘acting out’ com pouca ou nenhuma tentativa de ‘perlaborar’ problemas difíceis ou propensões dúbias” (p. 46). Ao longo do livro, são apontadas características que nos ajudam a pensar sobre o que seria tal paradigma.
O ex-presidente, afirma Dominick LaCapra, mente e repete compulsivamente a mentira até que ela passe a operar completamente em benefício próprio. “De modo hipócrita e opressor, [Trump] usa a ridicularização, o sarcasmo pungente, para intimidar e humilhar outros que ele faz de bode expiatório, contando com a ingenuidade ou duplicidade de seus apoiadores” (p. 243). Ou, ainda, “Se é ofendido por críticos, revida não na mesma medida, mas com uma massiva overdose do que ele projeta ou imagina ver neles. Na melhor das hipóteses, ele tem um ‘mecanismo’ severamente avariado de autocensura e autocontrole” (p. 242).
Quer dizer, ao analisar posições, posturas e comportamentos de Donald Trump, os quais, como Dominick LaCapra mostra, são conduzidos por táticas de pivotar-e-projetar, podemos vislumbrar em que consiste a forma mais radical e extrema de acting out. Para o leitor brasileiro, será inevitável identificar a mórbida semelhança entre os traços e ações de Trump descritos e analisados por LaCapra e a figura indigesta de nosso ex-presidente Jair Bolsonaro.
O caminho aberto por Compreender outros é oposto ao “sentimento de mundo” representado por essas figuras. A aposta cunhada no livro fia-se na esperança de que o fenômeno Trump, e, por extensão, para nós, o bolsonarismo, tenha nos tornado mais sensíveis às deficiências e aos limites de abordagens, práticas e posturas ancoradas em identidades impulsionadas por um desejo compulsivo, decorrente de certa fixação antropocêntrica (p. 177). Nesse sentido, o leitor encontrará no livro problematizações acerca de diferentes cortes de alteridade: humanos e outros animais, o povo ocidentalizado e os outros povos, história e ficção, história e memória, ciências humanas e ciências exatas e tecnológicas.
Em cada caso, esses cortes de alteridade são tratados de uma forma atenta aos detalhes, a partir de quadros de referências moldados em função de questões específicas que se abrem à indagação teórica e, certamente, ao debate crítico. Ao mesmo tempo, a reflexão de Dominick LaCapra permite a formulação de um “nó” fundamental: como um point of no return, a dissensão entre passado e futuro, e mesmo a possibilidade de algum futuro para os humanos, talvez estejam atreladas à conformação de um ethos que não atribua à nossa espécie nenhuma dominância ou excepcionalidade.
Mas, nesse caso, e é o que pode ser perturbador, as implicações nos forçam a perguntar: quem e em nome de que poderia ser justo, generoso e compreensivo?
*Aline Magalhães Pinto é professora de literatura na Faculdade de Letras da UFMG.
Referência
Dominick LaCapra. Compreender outros: povos, animais, passados. Tradução: Luis Reyes Gil. Revisão de tradução: Mariana Silveira. Belo Horizonte, Autêntica, 2023, 286 págs. [https://amzn.to/3yyUMp9]
Bibliografia
JACQUES DERRIDA, Jacques. Donner la mort. Paris: Galilée, 1999.
JACQUES DERRIDA, Jacques. Gramatologia. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
LaCAPRA, Dominick. History and Its Limits: Human, Animal, Violence. Ithaca, NY: Cornell University Press, 2009.
LaCAPRA, Dominick. Rethinking Intellectual History: Texts, Contexts, Language. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1983.
LaCAPRA, Dominick. (2001). Writing History, Writing Trauma. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2014.
LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
LIMA, Luiz Costa. Jacques Derrida ou a Amazônia da escrita. In: A ficção e o poema. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 66-95.
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção e política da morte. São Paulo: n-1 Edições, 2018.
PINTO, Aline Magalhães. Dominick LaCapra: textualidade, empatia, trauma. In: BENTIVOGLIO, Júlio; AVELAR, Alexandre de Sá (org.). O futuro da história: da crise à reconstrução das teorias e abordagens. Vitória:
Milfontes, 2019. v. 1, p. 155-178.
Notas
[i] DERRIDA, Jacques. Donner la mort. Paris: Galilée, 1999. p. 114.
[ii] DERRIDA. Donner la mort, p. 114.
[iii] Cf. LACAPRA, Dominick. Rethinking Intellectual History: Texts, Contexts, Language. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1983.
[iv] PINTO, Aline Magalhães. Dominick LaCapra: textualidade, empatia, trauma. In: BENTIVOGLIO, Júlio; AVELAR, Alexandre de Sá (org.). O futuro da história: da crise à reconstrução das teorias e abordagens. Vitória: Milfontes, 2019. v. 1, p. 155-178.
[v] “Il n’y a pas de hors-texte” é uma expressão que se tornou célebre tanto para identificar quanto para desqualificar a desconstrução derridiana. Como Derrida explica, em Gramatologia, e LaCapra reitera, a perspectiva da desconstrução supõe que “não há um fora do texto”, o que não quer dizer que todos os referenciais estejam suspensos ou negados, ou que todos os pontos de vista estejam legitimados numa espécie de “vale-tudo”. “Il n’y a pas de hors-texte” quer dizer que todo referencial, todas as realidades têm a estrutura de um traço diferencial, são textuais, e só nos podemos reportar a esse real numa experiência interpretativa que se dá, ou só assume sentido, num movimento diferencial. Cf. DERRIDA, Jacques. Gramatologia. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. Para uma perspectiva crítica, ver LIMA, Luiz Costa. Derrida ou a Amazônia da escrita. In: A ficção e o poema. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 66-95.
[vi] Segundo Achille Mbembe, a necropolítica é caracterizada pela confluência de três noções que participam da prática da soberania enquanto duplo processo de autoinstituição e autolimitação: a biopolítica, o estado de exceção e o estado de sítio. O autor procura demonstrar como o poder (e não necessariamente o poder estatal) continuamente se refere e apela à exceção, à emergência de uma cisão (nós e os outros) que configura a alteridade como inimigo. O poder é, no limite, poder sobre a vida do outro, e, para exercê-lo, é preciso que se opere esse movimento pelo qual uns se tornam outros, diferença que, em situaçõeslimite, baliza a divisão entre as pessoas que devem viver e as que devem morrer. Cf. MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção e política da morte. São Paulo: n-1 Edições, 2018.
[vii] LaCAPRA, Dominick. History and Its Limits: Human, Animal, Violence. Ithaca, NY: Cornell University Press, 2009. p. 1-36.
[viii] LaCAPRA, Dominick. (2001). Writing History, Writing Trauma. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2014.
[ix] Cf. LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
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