Por JEAN MARC VON DER WEID*
Me intriga nos argumentos pró-Maduro, aqui no Brasil, a qualificação do líder do Partido Socialista Unido da Venezuela como sendo de esquerda. O que é, afinal de contas, ser “de esquerda”?
1.
As eleições na Venezuela fizeram correr mais tinta do que sangue, felizmente, embora os mortos naquele país já se contem às dezenas, os feridos às centenas e os presos aos milhares. Li inúmeros artigos e mensagens, expondo opiniões de vários lados, a maioria defendendo, em maior ou menor grau de simpatia, as posições do governo de Nicolás Maduro.
Muitos dos autores são meus conhecidos, amigos e companheiros de muitos anos de lutas e temo que venha a perder alguns dos mais veementes, após leitura deste artigo. Mas, depois de vacilar um pouco, decidi enfrentar a tormenta, motivado pela necessidade de discutir o assunto, não tanto pelo meu interesse específico na Venezuela ou em Nicolás Maduro, mas no modo de pensar da minha geração política.
O que leva alguns dos articulistas e comentaristas nos grupos de whatsapp a assumir inteiramente narrativa adotada pelo regime de Nicolás Maduro? Como é possível que se considere a versão governista como verdadeira?
As motivações individuais podem ser especuladas, mas só um debate aprofundado com cada um poderia, talvez, identificá-las. Há uma vertente que se explica por um tortuoso raciocínio, que tem como ponto de partida o axioma atribuído a Maquiavel: “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Com base neste princípio, usa-se o sofisma decorrente: o imperialismo americano é inimigo de Nicolás Maduro; a esquerda brasileira é inimiga do imperialismo americano; ergo: a esquerda brasileira é (ou deve ser) amiga de Maduro.
Apesar do sofisma ser discutível, a defesa de Nicolás Maduro não exige que se assine embaixo de tudo o que diz o presidente venezuelano e muito menos o que faz o seu regime. Não é preciso adotar a defesa de uma ditadura como se fosse uma democracia, com mais sofismas sobre a “relatividade” da democracia. Pode-se condenar os arreganhos imperialistas contra a Venezuela (ou Cuba, China, Rússia etc.) sem se corromper a verdade, afirmando que se trata de uma democracia exemplar.
Alguns artigos vão nesta direção ao escaparem da discussão específica sobre a legalidade e lisura das eleições para discutir “geopolítica”. É uma posição mais prudente, mas que deixa em silêncio a chamada “questão democrática” e isto, embora não tenha qualquer efeito sobre a crise venezuelana, fragiliza a defesa da democracia no Brasil pelos autores.
É constrangedor assistir militantes perseguidos pela ditadura militar no Brasil, afirmando que as ações de Nicolás Maduro estão apoiadas nas leis da Venezuela, que o organismo eleitoral é “independente” e que a direitista Corina foi barrada por impedimentos legais, assim como os muitos outros pré-candidatos. Ou que há liberdade ilimitada no país (“dentro da lei”). A ditadura militar não usou argumentos diferentes na defesa da imagem de um Brasil “democrático”, entre 1964 e 1985.
É também sintomático o argumento de que Corina, Capriles e outros líderes da oposição são da direita ou fascistas, financiados pela CIA, deixando implícito que contra “certas posições” vale tudo para impedi-las de chegar ao governo. Corina não é pior do que Bolsonaro, e não se pode questionar o fato de que o energúmeno ganhou uma eleição e chegou perto de ganhar outra. E que governou (ou desgovernou) legitimamente o Brasil. Este é um axioma das democracias: a alternância do poder.
É verdade que as “democracias” só aceitam a aplicação do axioma quando o poder das classes dominantes não é ameaçado por esta alternância e que isto justificaria que um poder “de esquerda” use o mesmo critério. No Brasil, apesar do terrorismo da direita em 2002, com várias ameaças contra a eleição de Lula, a alternância foi respeitada. Já em 1961 e, mais radicalmente, em 1964, ela não o foi.
Na primeira data a “solução” foi o golpe parlamentar que castrou o poder de Jango, instituindo o parlamentarismo. Na segunda, já com a recuperação dos plenos poderes pelo presidente, rompeu-se a legalidade democrática com o golpe militar. Tudo isto serve para mostrar que a “relatividade” da democracia é uma realidade, mas não que os princípios democráticos devam ser abandonados.
Quando se diz que a democracia é “relativa” e se fazem comparações entre a Venezuela do século XXI e a Atenas do século V aC (“apenas 20% da população adulta votava”) ou os Estados Unidos (“Bush e Trump foram eleitos com menos votos totais que seus adversários”), o que se ignora não são as peculiaridades históricas e as imperfeições dos processos eleitorais, mas o fato de que regras reconhecidas por todos são aplicadas e os resultados aceitos por todos. No caso venezuelano, as regras não são legítimas e não são aplicadas com isenção. E mesmo com tudo isso, se os resultados eleitorais não são do gosto do governo, aplica-se uma entorse “legal” e os derrotados viram vitoriosos.
Acreditar que as atas das mesas eleitorais não podem ser apresentadas por causa de um ataque hacker é acreditar em Papai Noel, no Coelhinho da Páscoa e no Saci Pererê. No sistema eleitoral venezuelano cada voto eletrônico é acompanhado de um voto em papel que fica guardado em urna e que pode ser verificado, se necessário. O fato de que não se apresentaram as atas eleitorais, nem se buscou uma recontagem quinze dias depois das eleições, deixa mais do que uma dúvida sobre a lisura do pleito, piorada pela proclamação às pressas da vitória e a posse do “eleito”.
Se fosse “apenas” o imbróglio das atas tudo já estaria bastante turvo, mas o fechamento das fronteiras, a impossibilidade da participação dos eleitores do exterior, os vetos às candidaturas de todos os opositores mais conhecidos, as dificuldades da propaganda da oposição, a hostilidade nos locais de votação, reportados por uma das poucas entidades observadoras independentes aceitas pelo governo, o Centro Carter, e mais o histórico de repressão e arbítrio de muitos anos não dão margem à dúvidas: a oposição, com todos os limitantes e inibições que sofreu, deve ter ganho com boa margem esta eleição.
Tenho lido que a oposição recebeu grana dos EUA, que seus militantes atacaram os eleitores maduristas, entre outras barbaridades. É bem possível, mas quem tem os poderes do Estado (polícia, milícias, forças armadas) é o governo e seu presidente candidato. A correlação de forças é totalmente desigual.
É bom lembrar que, se a direitosa Corina foi a expressão maior da oposição eleitoral contra Maduro, o Partido Comunista Venezuelano também teve um candidato a presidente, assim como alguns outros partidos de esquerda ou centro esquerda. E todos estão questionando os resultados. E que, em publicações nas redes sociais, setores chavistas em ruptura com Nicolás Maduro se manifestaram contra a sua reeleição.
2.
Me intriga nos argumentos pró-Maduro, aqui no Brasil, a qualificação do líder do PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela) como sendo de esquerda. O que é, afinal de contas, ser “de esquerda”?
Apesar das muitas nuances e mudanças ao longo do tempo, há uma marca permanente na esquerda: ela defende, numa linguagem bem genérica, as “causas sociais”. Isto vai desde direitos dos trabalhadores até o seu empoderamento político, passando por inúmeros temas.
Numa definição de esquerda, entretanto, não encontramos uma identidade democrática clara. Sim, as esquerdas (melhor assim, no plural) tendem a defender a democracia quando estão na defensiva sob o jugo de ditaduras ou mesmo regimes democráticos mais restritivos. Mas, uma vez derrubados os regimes ditatoriais ou autocráticos, as esquerdas tenderam a se dividir entre os que buscavam uma ditadura “do proletariado”, e os que aceitavam o jogo democrático eleitoral.
Na revolução russa a questão democrática colocou os mencheviques e toda uma gama de outras correntes contra os bolcheviques. A instalação da Assembleia Constituinte foi abandonada quando os bolcheviques ficaram em minoria entre os delegados, enquanto tinham o controle da força armada, pelo menos em São Petersburgo e Moscou. “Todo poder aos sovietes” também ficou para trás, uma vez consolidado o controle do aparato do Estado. Daí para frente a repressão foi num crescendo até o regime estalinista.
Na China não foi diferente, com o poder sendo tomado pelo exército vermelho, em 1949, e o partido comunista assumindo o poder sem limites e sem espaço para outras correntes. Os outros episódios revolucionários não fogem desta regra: uma vez no poder, a esquerda esquece a democracia. E não me venham dizer que apenas o conceito burguês de democracia foi abandonado. A chamada “ditadura do proletariado” foi apenas uma ditadura e o proletariado a sofreu, como as outras classes.
Por outro lado, a cada tentativa mais ou menos avançada de reformas sociais ameaçando os interesses das classes dominantes de um dado país ou os de algum império (inglês, francês e mais recentemente o americano) o resultado foi uma violação mais ou menos extensa ou tenebrosa da democracia. Ou seja, para a direita e para as classes dominantes, a democracia só é válida enquanto garante os seus interesses. E as acusações de antidemocratismo feitas à militância de esquerda são puro cinismo.
3.
Como se posicionar neste impasse político histórico?
A meu ver, existe um hiato de debate conceitual e histórico em relação ao tema da democracia. As esquerdas não fizeram uma ampla revisão dos conceitos à luz de sua aplicação na realidade concreta dos países onde se realizaram revoluções. A previsão de que o “centralismo democrático” levaria ao fim da democracia interna nos partidos leninistas, gerando o domínio do aparelho partidário por grupos cada vez mais restritos (até chegar ao controle de um chefe único) se cumpriu.
A previsão tinha um corolário pouco destacado, salvo talvez pelos anarquistas, nos primeiros anos da revolução russa: o partido único (“verdadeiro representante dos interesses do proletariado”) elimina a manifestação da imensa maioria da população e sua expressão em outras formas de organização partidária. O mesmo vale para as formas de manifestação de entidades de classe, como os sindicatos.
Ouvi, ao longo dos meus longos anos de militância, a repetida argumentação de que as restrições à democracia, tanto na sociedade como um todo como no interior do partido revolucionário, era uma contingência inevitável do processo de tomada do poder em nome das classes trabalhadoras. Tanto Lênin como Trótski e Stalin aplicaram este princípio, que finalmente se voltou contra o segundo, após a morte do grande líder. E a repressão, mesmo da mais tênue das posições contraditórias, nunca foi abandonada, sempre a pretexto da lógica da luta de classes permanente.
Há uma saída capaz de conciliar os processos de transformação e a manutenção da democracia? Quem acha que isto é uma “ilusão de classe” e defende o princípio da “ditadura do proletariado” vai viver em permanente contradição entre a defesa conjuntural e tática das liberdades democráticas aceitas pelas classes dominantes e suas convicções estratégicas.
A direita, aqui ou em qualquer lugar, não deixa e não deixará de apontar esta contradição e taxar a esquerda de falsa e cínica. E não vejo ninguém louco o suficiente para defender o fim da democracia e a ditadura do proletariado (estou falando simbolicamente, as divisões de classe hoje são mais complexas) pois ficaria politicamente isolado.
Quem acha que se deve garantir o direito de manifestação de todas as opiniões como premissa de um regime libertário, tem que refletir sobre que democracia queremos, não apenas taticamente, mas como princípio básico da organização social.
Quanto mais democracia melhor, é a única resposta. Se a conjuntura permitir apenas o jogo eleitoral, vamos jogá-lo, procurando ampliá-lo. Mas deveríamos, enquanto esquerda, buscar todas as formas de participação social em processos decisórios coletivos em todos os níveis possíveis. Da vizinhança ao bairro, da comunidade ao território e deste aos estados e ao país. De questões locais até as mais amplas devemos procurar mecanismos de consulta e formas participativas de decisão e de execução. E aprimorar os processos eleitorais e legislativos.
Isto não basta, é claro, tanto teoricamente como praticamente. Mas é um ponto de partida. Cabe também, nesta definição inicial, indicar que a descentralização do poder vai ser uma necessidade vital na reorganização da sociedade que resultará do desabamento da globalização sob o impacto das crises combinadas: ambiental, energética, alimentar, sanitária, manifestações da crise terminal do capitalismo.
A fragmentação dos espaços econômicos e sociais só vai poder ser enfrentada com o fortalecimento dos processos de colaboração econômica e social em espaços territoriais de dimensões muito menores do que os países e mesmo províncias. Tudo isto aponta para o fortalecimento de espaços locais de decisão muito mais significativos do que os nacionais e internacionais. E aponta para a necessidade da radicalização e aprofundamento do conceito de democracia.
4.
Para completar, gostaria de especular sobre a natureza das apostas de Nicolás Maduro com estas eleições. O presidente já mostrou que é capaz de dominar as estruturas de poder no país e fazê-las funcionar a seu talante. Não seria a primeira vez que perde uma eleição. Há duas eleições, ele perdeu o controle do legislativo e não teve como virar a mesa, fechando o congresso ou cassando a maioria, no estilo dos nossos militares.
Mas ele chamou outra eleição e manteve um inacreditável sistema de dois congressos, um dominado pela oposição e outro pelo governo. Como o poder real estava com o presidente Nicolás Maduro, o congresso paralelo foi se esvaziando. Depois disso os controles foram ficando mais fortes e a oposição partiu para a abstenção, para tranquilidade de Maduro.
Por que será que Nicolás Maduro se arriscou nestas eleições? A pressão internacional, inclusive com os bloqueios econômicos, certamente pesou na aceitação do pacto de Barbados. Mas Nicolás Maduro não respeitou o pacto e interferiu pesadamente no processo, barrando candidatos e cerceando a propaganda opositora. Provavelmente achou que o amarra-cachorros de Corina não seria capaz de batê-lo e aí errou totalmente a avaliação.
O “poste” de Corina era só um símbolo e foi o suficiente para um país com 50% de desemprego, 20% da população emigrada e com um custo da alimentação em alta. Isto e mais as dissidências chavistas deram base a um voto de protesto, infelizmente no fascista da vez. Nicolás Maduro não estava preparado para esta eventualidade, ou teria dado um jeito de arrumar as atas e manter as aparências de democracia. Será isso o que estão fazendo nestes momentos pós-eleitorais? A credibilidade de atas eventualmente apresentadas fica mais duvidosa a cada dia que passa.
Neste imbróglio, nem toda a boa vontade de Celso Amorim e de Lula vai ser suficiente para dar legitimidade ao regime. A solução negociada da saída de Maduro e de uma transição do regime está na ordem do dia e o papel do Brasil pode ser fundamental para um final menos catastrófico do que está se desenhando. A proposta de Amorim de um “segundo turno” sob vigilância internacional pode até ser adotada por Lula, Petro e Obrador e apoiado por Biden e pela União Europeia. Difícil é Maduro (e Corina) aceitarem a proposta.
5.
Quero terminar este artigo com um toque pessoal. Quando me tornei militante de esquerda, entre 1964 e 1966, aderi a uma corrente política sem origem no movimento comunista, a Ação Popular. A Ação Popular não tinha uma posição sobre a democracia ou sobre a ditadura do proletariado. Mas não era adepta do regime soviético e isto me atraiu pois vinha na mesma direção das minhas leituras (me marcou muito um livro, em especial: O zero e o infinito, de Arthur Koestler). Estava vacinado contra o regime estalinista, mas foi preciso muito mais estudo e reflexão para admitir que Lênin (e Trotsky) já antecipavam muitas das marcas do que veio a ser o regime de Stalin.
A Ação Popular teve um momento de aproximação com a revolução cubana, mas dela se afastou não por seu caráter antidemocrático, mas pela adesão da organização à revolução chinesa. O caráter repressivo desta última não era muito conhecido (ou reconhecido por mim) e a minha “resistência ao pensamento maotsetung” na luta interna da Ação Popular foi mais pelo caráter dogmático do maoísmo. Foram anos de estudo para encarar os fatos da realidade da China do presidente Mao.
Não fui, estou convencido, um caso à parte na minha geração. A nossa luta era democrática, contra a ditadura militar e não tínhamos tempo para discutir que regime político queríamos para o Brasil. Éramos libertários nas nossas consignas na luta concreta e afirmamos, quase todos, os valores da democracia como o objetivo a ser alcançado. Quantos de nós viam nesta meta apenas uma etapa tática para a tomada do poder pelas forças revolucionárias e a implantação de uma “ditadura do proletariado”?
Provavelmente muitos. Mas com o tempo e a maturação das ideias fomos ficando mais convictos da importância dos valores libertários e democráticos e mais céticos em relação às soluções autoritárias, mesmo que populares ou de esquerda.
*Jean Marc von der Weid é ex-presidente da UNE (1969-71). Fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA).
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA