Trajetórias do marxismo europeu

Héctor David Celi Echeverría, Código do país, 2016
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Por RAFAEL PADIAL*

Considerações sobre o livro de Ricardo Musse

1.

No ano passado a Editora da Unicamp lançou na coleção “Marxismo 21” (dirigida por Armando Boito Jr.) Trajetórias do marxismo europeu. O autor, Ricardo Musse, é professor do Departamento de Sociologia da USP e reconhecido estudioso da tradição marxista. O livro é resultado de décadas de elaboração teórica, desde a tese de doutorado (1998), passando pela livre-docência (2012) e desembocando em artigos mais recentes do autor.

Trajetórias do marxismo europeu deve ser saudado como um livro que desloca o eixo dos debates. Escanteando simplificações ou verdades dogmáticas (“de partido”), somos direcionados a problemas de fundo da tradição autodenominada marxista. Destaque é dado, sobretudo, aos debates internos e interrelacionados das correntes alemã e russa do marxismo europeu, desde o último quartel do século XIX até a primeira metade do XX.

Não espanta o escopo: após a derrota da Comuna de Paris (1871), foi numa contraditória e rica interrelação germano-russa que surgiu, desdobrou-se e se enriqueceu essa específica “linhagem intelectual”. Fundamentais debates teóricos estiveram aí estreitamente vinculados a acontecimentos históricos de monta, como o acintoso crescimento sindical e eleitoral da social-democracia alemã no final do século XIX (que trouxe à tona a questão da conquista do poder pela via parlamentar), a revolução russa de 1905, a revolução de outubro de 1917, os dilemas da revolução alemã de 1919-23 e a ascensão do nazismo e do stalinismo.

É assim amplo o arco traçado pelo livro, mas Ricardo Musse, longe de fornecer uma mera visão panorâmica, brinda-nos com uma reflexão conceitual/filosófica sobre os momentos-chave da “autocompreensão” do movimento herdeiro de Marx.

2.

O livro é estruturado em quatro capítulos que mantêm consistente relação orgânica (mas não deixam de denotar as marcas das suas diferentes constituições). Os dois primeiros – “A dialética como discurso do método” e “Ciência ou filosofia?” – trazem uma apresentação mais abstrata ou conceitual de uma hipótese geral: a criação do chamado marxismo gira em torno da tentativa de encontrar uma fundamentação metodológica para a obra de Marx e, nesse esforço, pendula-se ora para a “ciência” (tratada como saber empírico e positivo) e ora para a “filosofia” (concebida como saber geral e totalizante que daria base teórica à ação revolucionária).

Os dois capítulos seguintes – “De Friedrich Engels a Rosa Luxemburg” e “De György Lukács a Max Horkeimer” –, os mais volumosos do livro, não apenas reforçam a hipótese acima como a colorem em detalhes, apresentando os seus principais debates e recompondo a trama histórica geral. A tudo isso se soma, ao final, um “Excurso” sobre o marxismo ocidental, aparentemente extra-léxico (como um apêndice), mas que faz as vezes de conclusão.

Mais do que isso, o “excurso” ressignifica o livro. Ao final, percebe-se que o autor almeja com a obra duas coisas ao mesmo tempo: expor os momentos de “autocompreensão do marxismo” e – no próprio ato de fazê-lo – desabonar a tese, cuja sustentação se encontra em Perry Anderson, de existência de uma corrente chamada de “marxismo ocidental”.

3.

O primeiro capítulo traz como gancho a célebre afirmação de Lukács, em História e consciência de classe, a respeito do método como critério do “marxismo ortodoxo”. Entretanto, adverte logo Ricardo Musse, a primazia do método na busca pela ortodoxia não seria característica do pensamento do revolucionário húngaro e sim algo estabelecido antes, por Friedrich Engels – “o primeiro marxista”. Deste, ela teria se espraiado a diversos autores da chamada Segunda Internacional. Está correto: foi Engels quem primeiro sistematizou metodologicamente – mesmo que verbalmente a contragosto – o que posteriormente foi chamado de “marxismo”.

Em seu embate com Eugen Dühring, Friedrich Engels literalmente buscou uma exposição “positiva” da teoria “de Marx” e sustentou a existência de uma dialética na natureza. As ciências naturais, junto ao saber que buscava fundamentar, desbancariam a metafísica e a lógica formal. Engels, retomando um lugar-comum jovem-hegeliano, argumentou que caberia afastar o sistema metafísico de Hegel e manter o seu “núcleo dialético”.[i] Por essa expressão, o revolucionário entendia uma série de hipotéticas leis de movimento de toda a matéria, que se refletiriam na consciência e seriam, assim, apreendidas pelo pensar dialético. A “dialética” operaria, para Engels, no campo da gnosiologia (“a prova [materialista] do pudim é o comê-lo”, afirma o alemão numa célebre introdução a Do socialismo utópico ao científico).

Assim, esse diamante bem lapidado (o suposto “núcleo” da dialética), fortalecido pelos novos saberes das ciências de sua época, presumivelmente poria fim à filosofia. Não mais seria necessário um “saber metafísico” superior aos demais e o socialismo se expressaria cientificamente, como as leis recém-descobertas na natureza.[ii]

O próprio movimento do capítulo primeiro, porém, traz contraposições a Engels. Destaque é dado à crítica encontrada em História e consciência de classe, de 1923, de György Lukács. Ao ter o cientificismo como base, Engels, segundo Lukács, teria descurado da essência prática da teoria revolucionária. Para György Lukács, Friedrich Engels, baseado no objetivismo das “leis” das ciências naturais, teria extirpado as determinações “subjetivas” (partidário-revolucionárias) da dialética e dado base a uma concepção objetivista da política; teria, assim, preparado o terreno para a ideia de que a vitória do proletariado seria resultado de um movimento mais ou menos natural e necessário, um inevitável acúmulo de forças.

Contrariamente, para György Lukács, seria preciso alçar o proletariado à posição de sujeito e objeto do conhecimento ao mesmo tempo. Tal crítica se inseria a seu modo num filão que se gravara mais ou menos silenciosamente em solo alemão nos anos anteriores, mas que, graças ao impulso revolucionário de 1917, brilhava à luz do dia.[iii]

Aprofundando o mesmo tema, György Lukács argumenta que a interpretação da dialética realizada por Engels terminava por reafirmar a reificação das categorias da economia política. Nesse sentido, o húngaro se colocava ao lado de outros intérpretes que davam destaque à noção de forma social e de fetichismo na obra de Marx, num esforço de leituras que diferia das (e buscava superar as) da tradição social-democrata.[iv]

O segundo capítulo trata das referidas oscilações pendulares do “marxismo” – a crise de identidade que às vezes o põe ao lado das ciências e às vezes ao lado da filosofia. Na verdade – e mostra bem Ricardo Musse –, quanto a isso também se discute mais as posições de Engels do que propriamente as de Marx. O livro Anti-Dühring e a brochura Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã foram os responsáveis por dar o tom da questão.

Ricardo Musse é perspicaz ao apontar que a interpretação do último Engels deu base à ideia – ainda hoje corrente – de que o “materialismo de Marx” seria a “superação” do idealismo de Hegel e um “refinamento” do materialismo de Feuerbach. O autor está correto ao afirmar que Engels tem uma postura condescendente em relação a Feuerbach, não condizente com o que Marx (e o próprio Engels) fizeram em 1846.[v]

Antes adversário a ser combatido, Feuerbach foi reconfigurado – e assim passou à tradição de interpretação – como um “momento necessário” do “materialismo de Marx”. Isso explica, aliás, por que Engels, no prefácio de 1892 a Do socialismo utópico ao científico,reproduziu páginas e páginas de elogios feitos por Marx, ao final de 1844, ao materialismo francês do séc. XVIII e ao empirismo inglês. Friedich Engels recuperou posições filosóficas às quais Karl Marx nunca mais retornou.

A meu ver, o “materialismo” de Engels, que deu base a importante tradição interpretativa, está a meio caminho entre o materialismo francês registrado por Marx em 1844 e a crítica deste a Feuerbach nas famosas 11 teses de 1845 – mas difere do que resultou da Ideologia Alemã, sobretudo em 1846. Ou melhor, Engels busca operar uma síntese entre todos esses elementos (incluindo a Ideologia Alemã) que não é encontrada em Marx após 1846. Daí surge o amalgama entre teoria do reflexo, gnosiologia, tese do fim da filosofia, empirismo científico-positivista e “concepção de história”. A tudo isso posteriormente se deu o nome de “materialismo histórico” e “materialismo dialético” ou – por que não? – “marxismo”.

Dadas as fragilidades conceituais desse amálgama, os posteriores tenderam a interpretar o “marxismo” em formas diferentes, a depender das conjunturas históricas e locais. Daí G. Plekhanov ter pretendido conhecer o universo como totalidade orgânica, argumentando que as leis da natureza deveriam ser buscadas na matéria. Daí Karl Kautsky ter mesclado “materialismo histórico” e darwinismo. Daí Vladímir Lênin ter defendido materialismo como teoria do reflexo e como gnosiologia (em seu Materialismo e empirocriticismo),pendendo para a filosofia.

Daí Rudolf Hilferding, em seus estudos de crítica da economia política, ter voltado o “marxismo” à ciência e o afastado de ideários políticos. Daí Eduard Bernstein ter se distanciado da dialética e tentado reconstruir o marxismo como “ciência”, mas baseado (paradoxalmente) em Kant. Todos esses momentos denotariam, segundo Ricardo Musse, “a oscilação pendular característica da autocompreensão do marxismo da Segunda Internacional”.[vi]

4.

Do terceiro capítulo destacamos o que ficou conhecido como “a primeira crise do marxismo” ou “a querela do revisionismo”, promovida ao final do séc. XIX em torno da obra de Eduard Bernstein. Ricardo Musse se atém longamente, dada a patente importância (Bernstein foi nada menos que secretário de Engels, seu executor testamentário, um dos principais teóricos da social-democracia; responsável, junto com Karl Kautsky, pela aprovação do “marxismo” como doutrina oficial da II Internacional).

Em vez de explicar o “revisionismo” de Eduard Bernstein como algo inesperado em meio ao caminho reto da “ortodoxia”, o livro esclarece ser um desenvolvimento lógico das ambivalências teóricas e práticas contidas muito antes no seio da social-democracia. Para a melhor compreensão disso, Ricardo Musse fornece também uma detalhada análise das posições do “ortodoxo” Kautsky. Numa linha explicativa talvez próxima à apresentada depois por Karl Korsch[vii], Bernstein e a Kautsky são desenhados como encarnações da dubiedade característica da II Internacional, quase irmãos siameses.

Assim, em grande medida, o revisionismo bernsteiniano estaria contido na lógica dicotômica expressa, por exemplo, no Programa de Erfurt (redigido por Kautsky e Bernstein), famoso pelo estabelecimento da oposição entre “programa mínimo” e “programa máximo” na estratégia partidária. Essa não dialética programática teria levado tanto ao pragmatismo quanto ao discurso revolucionário – e ambos se complementariam.

Ainda que Rosa Luxemburg tenha se destacado primeiramente por sua crítica a Bernstein, o primeiro momento de sua produção não é descrito como o responsável por um novo capítulo da “autocompreensão do marxismo”. É certo que Reforma ou revolução? desmonta brilhantemente as teses de Bernstein (sobretudo graças à formação da polaca em economia), mas o método geral subjacente à sua argumentação parece ainda refém de dicotomias da Segunda Internacional (aliás, o mesmo pode ser dito das produções de Lênin no período, não menos influenciadas por Kautsky).

É como se o conteúdo almejado por Rosa Luxemburgo não encontrasse ainda melhor forma de expressão. Somente com o impulso da Revolução Russa de 1905 a revolucionária teria conseguido dar forma inicial a um pensamento novo. Ricardo Musse reconstitui as polêmicas no seio da social-democracia alemã a respeito do instrumento da “greve geral” (como item programático) e do movimento espontâneo das massas. Com a incorporação desses dois elementos – greve geral e espontaneidade – em sua reflexão política, Rosa Luxemburgo teria invertido as posições que, desde o famoso “testamento” de Engels, orientavam a social-democracia.

O mínimo, dizia ela, era muitas vezes o máximo e vice-versa; as reformas democráticas eram obtidas como subproduto da ação revolucionária; uma ação revolucionária espontânea de um mês ensinava mais sobre marxismo do que décadas de propaganda do partido etc. Com Rosa Luxemburgo e seu “Am Anfang war die Tat” o marxismo buscaria ser pensado como movimento revolucionário e, assim, era aproximado das formulações de Marx durante a revolução de 1848. As antinomias da social-democracia – tão bem expressas no Programa de Erfurt –, ainda que não sofressem já uma superação teórica totalmente consistente, começavam a explodir.

Esse caminho ganhou mais e mais expressão com o impacto da segunda revolução russa (1917), o estabelecimento do poder dos sovietes e a consequente constituição dos partidos comunistas. O debate para a superação do programa social-democrata foi assim colocado num novo patamar. É disso que trata o quarto capítulo. História e consciência de classe, de Lukács, e Marxismo e filosofia, de Korsch (ambos de 1923), seriam bons exemplares desse processo, pois pensaram o marxismo como totalidade não dicotômica e como movimento prático-revolucionário do proletariado. É o afastamento da interpretação do marxismo como concepção de mundo (Weltanschauung).

No entanto, ao recuperar Hegel, incorporar a categoria da “totalidade” e constituir a ortodoxia revolucionária em termos metodológicos, György Lukács interpretava outra vez o marxismo como um discurso do método; caía na “má infinitude” ou circularidade estabelecida pelos pressupostos engelsianos. Karl Korsch, por sua vez, ao pender o marxismo para a filosofia, reforçava a “oscilação pendular” advinda das elaborações do autor de Anti-Dühring. Para piorar, Korsch era condescendente com Engels, ao não considerá-lo responsável pelas concepções filosóficas da Segunda Internacional (inclusive, afastando-se de Lukács nesse quesito).[viii]

Ricardo Musse dá destaque a trechos interessantes da produção de Karl Korsch. Para este, uma nova etapa do movimento marxista – a “terceira etapa” – estaria se abrindo.[ix] Chamaram a nossa atenção as constatações produzidas pelo alemão no texto denominado “Anticrítica”, de 1930, publicado como introdução a uma nova edição de Marxismo e filosofia. O fato de escrever sete anos após a primeira publicação dessa obra e em meio à consolidação do fenômeno stalinista lhe permitiu conclusões interessantes. A primeira é que a condenação de Marxismo e filosofia e de História e consciência de classe, em bloco, em 1924, tanto num congresso social-democrata quanto no V Congresso da Internacional Comunista, revelava “a comunhão de ideias e doutrina entre as duas principais correntes do marxismo de então”.

Sobre essa situação geral, Korsch afirmava em 1930: “Neste debate fundamental sobre a direção do marxismo contemporâneo, previamente anunciado por inúmeros sinais e hoje aberto, encontraremos, no que diz respeito às questões decisivas […], de um lado, a antiga ortodoxia marxista de Kautsky e a nova ortodoxia do marxismo russo ou ‘leninista’, e, de outro, todas as tendências críticas e avançadas da teoria do movimento operário contemporâneo”.[x]

Karl Korsch enxergava num dualismo de Vladímir Lênin – ortodoxia em filosofia, à la Kautsky e Plekhanov; heterodoxia (revolucionária) na prática, conforme O Estado e a Revolução – as bases da deturpação posterior do seu pensamento pelos epígonos. Korsch relembra que Lênin seguiu Kautsky na ideia de que o socialismo não nasce espontaneamente na classe trabalhadora, mas externamente, sendo “introduzido nela por intelectuais” advindos da burguesia; e que em matéria de filosofia ele era fiel discípulo de Plekhánov.

Enquanto ressalva, Korsch afirma que a obra Materialismo e empirocriticismo de Lênin seria de escopo pragmático, voltada a questões concretas de orientação partidária; e somente depois os epígonos a teriam transformado em fonte filosófica de todo saber e verdade. Após essa relativa defesa de Lênin, Korsch desfere ataques graves à sua referida obra; argumenta ser equivocado conceber – como fazia o dirigente bolchevique – que “o que impera na ciência burguesa é o idealismo”. Pelo contrário, segundo Korsch, a tendência dominante “na filosofia, nas ciências naturais e nas ciências humanas da burguesia não é uma concepção idealista, mas algo que se inspira numa concepção materialista naturalista”.[xi]

Lênin é acusado de fazer uma “inversão” equivocada de Hegel (alçando a “matéria” à posição do Espírito no posto de “absoluto”) e construir, assim, uma oposição errônea entre materialismo e idealismo. “O materialismo de Lênin […] retrocede o confronto entre materialismo e idealismo a um nível de desenvolvimento histórico anterior ao alcançado pela filosofia alemã de Kant a Hegel”.[xii]

Lênin e seu “materialismo do ser” teriam transportado a dialética unilateralmente ao objeto (natureza e história) e, por isso, descreveriam o conhecimento como simples reflexo e reprodução passivos do ser objetivo na consciência subjetiva. Desse modo, a filosofia retornaria ao problema gnosiológico das relações entre sujeito e objeto do conhecimento. E conclui, afirmando que ao regredir a um ponto anterior a Hegel a “vertente russa” teria “mimetizado o materialismo francês do século XVIII”.[xiii]

A argumentação de Karl Korsch contra Materialismo e empirocriticismo nos parece, para dizer o mínimo, instigante. Espanta, no entanto, que ele não volte as suas flechas contra Friedrich Engels, afinal a produção filosófica final deste é a base (junto com a de Plekhánov e a de J. Dietzgen) da obra escrita em 1909 por Lênin.

5.

É difícil não considerar que os esforços intelectuais de Lukács e Korsch – junto a outros do período, já notados – engendravam algo novo, mas foram abortados pela complexa conjuntura dos anos 1920 e 1930, sobretudo pela ascensão do stalinismo e do fascismo. Ricas concepções ficaram a desenvolver e frestas a aparar. Partindo dessa conjuntura, Ricardo Musse nos encaminha para a parte final do quarto capítulo, que lida com a produção teórica de Max Horkheimer à frente do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt (a “Escola de Frankfurt”).

Numa longa análise do artigo “Teoria tradicional e teoria crítica”, de 1937, Ricardo Musse nos apresenta a concepção de Max Horkheimer como derivada da situação em que a classe operária já não estaria mais em cena. Na URSS, ela estaria esmagada pelo stalinismo; na Itália e Alemanha, derrotada pelo nazi-fascismo; nos EUA, integrada via consumo e fetichizada sob o New Deal.

Como dar continuidade ao marxismo em período de contrarrevolução em todas as frentes? Max Horkheimer teria se visto obrigado a se expressar de forma cifrada (o próprio nome “teoria crítica” seria um codinome para “marxismo”) e teria voltado seus esforços à salvação da “tradição intelectual”. É a “hibernação do marxismo em teoria, adequada para o momento e justificável em face das circunstâncias”.[xiv]

Com a “teoria crítica”, o proletariado, deixando de ser sujeito da história, tornar-se-ia objeto da análise intelectual. Não se trataria de renunciar à “perspectiva do proletariado”, mas de desenvolver uma teoria que prescinde do suporte do proletariado e, se preciso, pode pensar contra o proletariado, pode “opor ao próprio proletariado os seus verdadeiros interesses”.[xv] Todo um programa de pesquisa foi traçado (e realizado) pela escola de Frankfurt, buscando sintetizar contribuições advindas de diversos saberes. Esforços do marxismo, da psicanálise, das análises da estrutura familiar/patriarcal, das reflexões sobre as formas autoritárias do Estado etc. foram invocados para desenhar um quadro geral.

Ao levar à frente tal programa de pesquisas, Horkheimer, no entanto, inverteu as concepções apresentadas antes por Lukács e Korsch. Eis como Ricardo Musse conclui o quarto capítulo: “Com isso [Horkheimer] provoca uma nova inflexão na autocompreensão dessa doutrina. Impossibilitado de concebê-la como uma ‘teoria da revolução’, Horkheimer acaba transformando-a em ‘tradição intelectual’”.[xvi]

O “Excurso” final trata da “construção do marxismo ocidental”. É uma polêmica do autor, sobretudo, com a tese estabelecida por Perry Anderson, segundo a qual Lukács, Korsch e Antonio Gramsci seriam os pioneiros de uma corrente que poderia ser chamada de “marxismo ocidental”, responsável por uma ruptura entre teoria e prática no marxismo. O “marxismo ocidental”, conforme entendia Perry Anderson (nas palavras de Musse), “teria promovido um retorno à estirpe da cultura burguesa, deslocando gradativamente o seu centro de interesse dos temas econômicos e políticos para assuntos fillosóficos”[xvii].

Dos pais fundadores dessa corrente, ela teria se espraiado a sujeitos como Horkheimer, H. Marcuse, Walter Benjamin, Galvano Della Volpe, Henri Lefebvre, Theodor Adorno, Jean-Paul Sartre, Lucien Goldmann, Louis Althusser, Lucio Coletti etc.

Para Ricardo Musse, no entanto, o conceito de “marxismo ocidental” careceria de credibilidade, seria moldado conforme o interesse de cada intérprete e, por isso mesmo, limitaria o estudo das obras de diversos sujeitos. Eis também o que afirma: “O termo ‘marxismo ocidental’ nunca foi passível de uma determinação unívoca. Cada autor compõe à sua maneira as características principais do objeto, ora alterando o conjunto dos componentes, ora a abrangência temporal ou geográfica do conceito. Preocupados excessivamente em delimitar constantes e traços definidores, poucos atentaram para o enigma da sua fundação, apresar da inesperada unanimidade quando se trata de elaborar a lista dos pioneiros”.[xviii]

Está correto Ricardo Musse. O termo “marxismo ocidental” adveio da obra de Korsch, particularmente de sua referida “Anticrítica” de 1930. Todavia, nesse texto Korsch se refere um maior número de vezes a “comunismo ocidental” e poucas vezes (mas como sinônimos) a “marxismo ocidental”. Como é evidente, o “comunismo ocidental” de Korsch, de matriz luxemburguista, que pensava o marxismo na chave da teoria da revolução e tinha grande influência no Partido Comunista Alemão, em pouco ou nada poderia ser associado a algo que “retorna à estirpe filosofante da burguesia”, conforme quis Anderson.

Ricardo Musse toca num ponto chave: como agrupar pessoas avessas à luta partidária – Horkheimer, Goldmann e Adorno – e importantes dirigentes políticos, como Lukács, Gramsci e Korsch? Anderson, apesar de não ignorar o problema, contorna-o e não oferece resposta satisfatória. Na verdade, como esclarece Ricardo Musse, o “marxismo ocidental” é um conceito que abarca os autores distintos do que Perry Anderson considerava canônico.

Feita a crítica à tese de Anderson, Ricardo Musse dedica a sua análise à concepção de outros dois pensadores que, seguindo aquele, mas com argumentos e propósitos diferentes, buscaram sustentar a existência do “marxismo ocidental”. Trata-se de Martin Jay e Göran Therborn, os quais, para Ricardo Musse, resultaram em contradições similares às de Perry Anderson. Assim, segundo o autor do livro ora comentado, o conceito de “marxismo ocidental” não teria passado pela prova da história, visto que na pena dos seus maiores defensores não deixou de brilhar em contradições.

Apenas pela demonstração das contradições do conceito de “marxismo ocidental”, o livro de Ricardo Musse já se expressaria como necessário. Mas, mais do que isso, por tal demonstração estar assentada num amplo estudo da tradição “marxista”, Trajetórias do marxismo europeu se expressa como obrigatório aos estudiosos do tema.

*Rafael de Almeida Padial é doutor em filosofia pela Unicamp. Autor de Sobre a passagem de Marx ao comunismo (Alameda) [https://amzn.to/3UJqyHi]

Referência


Ricardo Musse. Trajetórias do marxismo europeu. Campinas, Editora Unicamp, 2023, 220 págs. [https://amzn.to/3R7K8wt]

Notas


[i] Musse está correto ao afirmar que se trata de temática jovem-hegeliana. No mesmo sentido, em Sobre a passagem de Marx ao comunismo, busco mostrar como esse tema apareceu tão cedo quanto em 1841, em A Trombeta do Juízo de Final, de Bruno Bauer.

[ii] Como corretamente esclarece Musse, o tema do “fim da filosofia” é fundado em Hegel (na relação entre o efetivo e o real) e ocupou longamente os jovens-hegelianos. O paradigma aí utilizado por Engels me parece ser o da famosa “11ª tese” Ad Feuerbach, escrita por Marx no primeiro semestre de 1845. Como busquei mostrar no capítulo 11 do meu livro (citado acima), o conteúdo dessa tese de Marx foi expresso concomitantemente por Moses Heß, em sua brochura significativamente intitulada Os últimos filósofos, que também buscava (sem sucesso) acertar contas com Ludwig Feuerbach.

[iii] Trata-se da posição conduzida principalmente por Rosa Luxemburgo, a qual encontra no “testamento político” de Engels (prefácio de 1895 a Lutas de classes na França, de Marx) a base para a ação reformista da social-democracia alemã. Sobre isso, cabe ver seu discurso de fundação do Partido Comunista Alemão, em 31 de dezembro de 1918. Lukács, em sua obra de 1923, busca, entre outras coisas, fornecer sustentação filosófica ao que Rosa Luxemburgo expusera politicamente.

[iv] É o caso, por exemplo, dos importantes Ensaios sobre a teoria do valor de Marx, de Isaak Rubin, publicados no mesmo ano que História e consciência de classe (1923), bem como de Teoria geral do direito e o marxismo, de E. Pachukanis, publicado em 1924. À frente tocaremos ainda em outra obra fundamental de 1923, Marxismo e filosofia, de Karl Korsch. Para fechar o arco de obras fulcrais desse mesmo ano, lembremos que nele veio à luz a primeira análise mais detalhada da burocracia soviética: O novo curso, de Leon Trótski. O que se passa é que, graças ao impulso propiciado pela revolução russa de outubro de 1917, e graças às profundas discussões sobre estratégia e tática que desatou (tendo em vista as dificuldades de ampliação da revolução russa e da realização da revolução em solo alemão), a teoria comunista foi refinada e colocada em novo patamar. Coube sobretudo aos comunistas alemães e russos a realização dessa tarefa. Parte dessa efervescência intelectual também pode ser encontrada nos debates sobre estratégia e tática das delegações russa e alemã, no âmbito do terceiro e quarto congressos da III Internacional.

[v] Por exemplo, cabe ver as importantes “teses” sobre Feuerbach escritas por Marx e Engels em algum momento entre janeiro e março de 1846 (ou seja, não se trata das famosas 11 teses Ad Feuerbach redigidas por Marx no primeiro semestre de 1845). Nas teses de 1846, a de letra E manifesta que a filosofia de Feuerbach é reacionária e afirma a ordem capitalista existente. Eis um trecho: “[A filosofia essencialista de Feuerbach é] Um belo elogio ao existente. […] Fique feliz como porteiro de uma mina de carvão desde os sete anos de idade, trabalhando quatorze horas por dia, sozinho, no escuro, porque tal ser é tua essência [Wesen]. Da mesma forma [trabalhando como] piecer de uma salfactor [máquina de fiar]. Está na sua ‘essência’ [Wesen] se submeter a um ramo de trabalho”. Cf. MARX, K. & ENGELS, F., Die Deutsche Ideologie, In MEW, vol. 3, Berlim: Dietz, 1978, p. 542.

[vi] MUSSE, Ricardo. Trajetórias do marxismo europeu. Campinas: Ed. Unicamp, 2023, p. 54.

[vii] KORSCH, Karl, “The Passing of Marxian Orthodoxy” (1937), disponível digitalmente em https://www.marxists.org/archive/korsch/1937/marxian-orthodoxy.htm.

[viii] Na nota de rodapé de sua “Anticrítica” (prefácio de 1930 a Marxismo e Filosofia), Korsch rebate os críticos do Partido Comunista que sustentavam que “eu teria sublinhado […] uma diferença essencial entre as ideias de Engels e as de Marx”. E segue: “Marxismo e Filosofia não se solidariza com a parcialidade com que Lukács e Révai trataram as idéias de Marx e de Engels como opiniões inteiramente divergentes”. Cf. KORSCH, K., “Anticrítica”, in idem, Marxismo e Filosofia. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2008, nota 29, p. 115.

[ix] Num certo esquematismo às vezes interpretado de forma infeliz (para não dizer enviesada), Korsch defendeu a existência de três etapas de desenvolvimento do marxismo: uma primeira, centrada na revolução de 1848, que concebia o marxismo como movimento revolucionário de massas; outra, que se desenvolveu na segunda metade do século XIX, determinada pelas concepções de Kautsky, Bernstein e Plekhanov; e a terceira, que nascia no início do século XX e aflorava com a revolução russa de 1917. 

[x] KORSCH, Karl, Marxismo e Filosofia, “anticrítica”, apud MUSSE, Ricardo, Trajetórias do marxismo europeu, op. cit., p. 161.

[xi] Idem, p. 163.

[xii] Idem, p. 164.

[xiii] Idem, p. 165.

[xiv] MUSSE, R., Trajetórias…, op. cit., p. 166.

[xv] Idem, p. 179.

[xvi] Idem, p. 182.

[xvii] Idem, p. 190.

[xviii] Idem, p. 192.


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