Celso Fernando Favaretto

Celso Fernando Favaretto
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Por RICARDO FABBRINI*

Discurso a ser proferido na cerimônia de outorga do título de Professor Emérito ao filósofo, educador e crítico de artes

É com grande prazer que participo dessa cerimônia de outorga do título de Professor Emérito da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo a Celso Fernando Favaretto. Certamente essa satisfação por poder homenageá-lo é compartilhada por todos aqueles que foram seus alunos e orientandos, assim como pelos professores e funcionários da Faculdade de Educação da USP, na qual ingressou em 1985.

Mesmo ciente de que “toda rememoração é uma ilusão retrospectiva” – como costuma lembrar nosso homenageado – destacarei alguns aspectos de sua mais que rica trajetória. Sendo já seu leitor fui seu aluno na disciplina de Prática de ensino em filosofia, no curso de licenciatura, logo após seu ingresso nessa Faculdade, e desde então, ou seja, nos últimos trinta e nove anos, acompanho com grata atenção sua viva reflexão.

Essa reflexão viva remonta à curiosidade intelectual suscitada pelos debates culturais, políticos e artísticos vividos inicialmente no ambiente escolar, na atividade informal de professor, e também no fervor das amizades, na cidade de Americana, no início dos anos 1960. Foi nesse ambiente conservador de uma cidade do interior do estado de São Paulo, que se avivou, nele, o desejo de tudo ler e viver: a literatura, as artes, a educação, a política, em meio às transformações profundas e contraditórias da dita realidade brasileira decorrentes do processo, então em curso, de modernização do país.

Esse desejo de não apenas compreender, mas também de atuar culturalmente para a modificação da sociedade brasileira fez com que Celso Favaretto abandonasse a licenciatura em matemática com habilitação em física, que seguira de 1961 a 1964, para a qual já mostrara talento, com o objetivo de ser professor dessas disciplinas no ensino médio, pelo curso de graduação em filosofia, que realizou na PUC-Campinas, de 1965 a 1968.

Dos anos 1960 resultou, assim, seu interesse por tudo o que se referia à “educação para o desenvolvimento”, seja nos termos do ISEB, pela tomada de consciência sobre a realidade nacional, seja no sentido dos projetos culturais engajados como o do CPC da UNE; do Teatro de Arena e Grupo Opinião; seja na música de protesto, nos festivais da canção, no Teatro Oficina ou no Cinema Novo.

Desse interesse por tudo o que dizia respeito à modernidade artística fez com que Celso Favaretto adquirisse um repertório amplíssimo de referências culturais que passaria então a mobilizar nos anos seguintes, para admiração de seus alunos, em sua atividade como professor, inicialmente no ensino médio e, em seguida, no ensino superior, já em São Paulo. Para a ampliação desse repertório muito contribuiu, a orientação epistolar do crítico literário José Geraldo Nogueira Moutinho ao qual sempre demonstrou gratidão, assim como as leituras trocadas com seus amigos João Adolfo Hansen e, uma vez em São Paulo, com Leon Kossovitch.

Finda sua graduação em filosofia, Celso Favaretto mudou-se para São Paulo, no início de 1969, para cursar a pós-graduação em estética no departamento de filosofia da USP, trazendo na bagagem, além de vasto repertório literário, suas leituras sobre a fenomenologia, o existencialismo, o marxismo, a psicanálise, e a teoria crítica da sociedade, sobretudo Walter Benjamin e Herbert Marcuse que lhe permitiam – ao lado de Roland Barthes, Marshall McLuhan e Guy Debord – refletir sobre os meios de comunicação de massa na sociedade de consumo, e mais especificamente, sobre a oposição entre arte engajada (ou de protesto) e arte experimental (ou de vanguarda), seja no teatro, na literatura, e, em particular, na música popular.

No curso de pós-graduação da USP foram decisivas, rememora Celso Favaretto, as aulas de Gilda de Mello e Souza (a “Dona Gilda”) e as do professor francês Jean Galard que aguçaram seu olhar para a pintura, a fotografia e o cinema. As aulas de Dona Gilda levaram-no à teoria e historiografia da arte de Erwin Panofsky, Heinrich Wölfflin, e Pierre Francastel, entre outros historiadores da arte, assim como lhe mostraram a importância da análise detida de detalhes de obras, como as que a própria Dona Gilda realizava ao mostrar aos seus alunos a beleza do gesto corporal na figura do trabalhador rural nas pinturas de Almeida Júnior e Candido Portinari, ou no gesto quase incorpóreo – “arabesco sem cor em pleno voo” – do bailarino Fred Astaire, no cinema.

Foi Dona Gilda que o convidaria a publicar, em 1971, um artigo no segundo número da Revista Discurso, do departamento de filosofia da USP, publicação que pela simples existência já era, naqueles anos, um de resistência à ditadura militar pela dimensão política da teoria. Sua primeira publicação foi, portanto, um artigo sobre a edição francesa de 1967 de Estudos de iconologia: temas humanistas na Arte do Renascimento, de Erwin Panofsky, editado originalmente em inglês, em 1939.

As aulas no curso de pós-graduação de Jean Galard, que havia chegado ao Brasil, no ano anterior, em 1968, foram-lhe de suma importância, assim como as conversas que elas desencadearam nos anos seguintes, daí resultando uma sólida amizade que se mantém viva, passados cinquenta anos. Suponho que dois aspectos da presença de Jean Galard no Brasil, naquele momento, foram decisivos para o encaminhamento das pesquisas de Celso Favaretto na área de estética contemporânea.

O primeiro aspecto é a atualização do pensamento francês promovida por Jean Galard ao colocar seus alunos em contato com a obra, então recém-publicada, de Gilles Deleuze, como Diferença e repetição, e também com a antropologia de Lévi-Strauss, a linguística de Saussure e Benveniste, a psicanálise de Lacan, a semiologia e semiótica de Roland Barthes, entre outras referências.

O segundo aspecto é que o convívio com Jean Galard mostrou-lhe que era possível desenvolver uma pesquisa na universidade sobre o tema com o qual já se envolvera, até mesmo existencialmente, a saber: a estetização da vida, que já fora objeto do livro de Jean Galard, Mort des beaux-art, publicado em 1971, na França, e que seria retomado em “A beleza do gesto: uma estética das condutas”, traduzido para o português em 1997 com revisão técnica do Celso Favaretto; como viria a ocorrer também nas edições brasileiras de Beleza Exorbitante: Reflexões sobre o abuso estético, de 2012 e A Gioconda está nas escadas: a condição prosaica, de 2023. Jean Galard estimulou-o, assim, naqueles anos, a cultivar seu interesse que resistia ao tempo, pela relação entre arte e vida – o que o levaria, nos anos seguintes, a se dedicar na dissertação de mestrado ao estudo da “tropicália”, e na tese de doutorado à obra do artista Hélio Oiticica.

No centro dessas pesquisas está, a meu ver, a ideia política da vida como obra de arte. Sua atenção se voltara, portanto, aos “modos de existência”, na expressão de Gilles Deleuze; ou aos “estilos de vida” no termo de Michel Foucault: à “estética da vida”, enfim, que é também uma ética. Interessou-se pelos “modos”, ou seja, pelos processos de subjetivação, de nenhuma maneira individual ou pessoal que indiciavam novas possibilidade de vida. Porque são os “estilos de vida que nos constituem de um jeito ou de outro”, dizia Deleuze em 1986, e “às vezes basta um gesto ou uma palavra” para que isso se realize.

Numa figura, pode-se supor: seria o gesto desviante, um détournement minimum – “em um tempo menor que o mínimo de tempo contínuo pensável” – na caracterização do clinâmen em De rerum natura, de Lucrécio – que instauraria a liberdade na horizontalidade morta da rotina (ou no interior de uma vida mutilada);seria a vitalidade de um salto ágil, a filigrana de uma malícia, a nuance de uma bossa, que permitiria vislumbrar – como num clarão – a possibilidade da reinvenção da política e da vida.

Paralelamente à pós-graduação em filosofia, Celso Favaretto iniciou, em 1969, uma intensa trajetória como professor de filosofia no ensino médio e superior, em instituições privadas e públicas, que só se encerraria com sua aposentadoria compulsória na USP, em 2011. Em 1976, ingressou no departamento de filosofia da PUC-SP, para ministrar a disciplina de Estética, assim como de Introdução à filosofia para outros cursos da universidade. Permaneceu na PUC-SP, na qual exerceu diversas funções de gestão, entre as quais chefia de departamento e coordenação de curso, até 1985, quando passou a lecionar na Faculdade de Educação da USP, em regime de dedicação exclusiva.

Seu ingresso na Faculdade de Educação da USP como titular da disciplina de Metodologia do ensino de filosofia ocorreu no momento em que se discutia o retorno dessa disciplina ao currículo do ensino médio, após sua ausência no período da ditadura militar. Pude constatar a importância de sua contribuição viva e original a esse debate, não apenas em seus cursos de licenciatura, mas também em seus textos, assim como em suas intervenções em seminários, palestras, colóquios, congressos, e cursos de extensão para professores, dos quais resultou uma perspectiva de ensino de filosofia que repercutiu em documentos oficiais, entre os quais, a Proposta curricular para o ensino de filosofia de 2º. Grau, apresentado em 1992 para a CENP da Secretaria de Estado de Educação de São Paulo.

Destaco como textos seminais dessa reflexão que tem sido acolhida, desde então, por alunos e professores, os ensaios Pós-Moderno em Educação?, publicado em 1991, na Revista da Faculdade de Educação da USP, volume 17, e Notas sobre Ensino de Filosofia, publicado no livro Filosofia e seu ensino, de 1995, organizado pela professora Salma T, Muchail. Considero como uma das contribuições desses ensaios inovadores, pensar a educação, e em especial, o ensino de filosofia no Brasil, a partir de operadores conceituais suscitados pelos textos de Jean-François Lyotard, até então ignorados no Brasil, como Le Cours Philosophique, de 1986, que viria a integrar o livro Le Postmoderne Expliqué aux Enfants, que não ganhara tradução no país.

Em suas disciplinas na licenciatura, Celso Favaretto não apenas comentava o processo de implantação, aclimatação, e consolidação da filosofia no Brasil, recorrendo aos textos de Jean Maugüé, Gaston Granger, Gerard Lebrun, Bento Prado Jr., Oswaldo Porchat Pereira, e Marilena Chauí, entre outros professores, mas também expunha a posição sobre o ensino de pensadores franceses contemporâneos, como Roland Barthes, Gilles Deleuze, ou Jean-François Lyotard. Nessas aulas, ele mostrava que uma leitura não é filosófica apenas porque os textos são tidos por filosóficos — ou porque seus autores são considerados autores da História da filosofia, de Platão a Sartre —, uma vez que “se pode ler textos filosóficos sem filosofar e ler textos considerados artísticos, políticos, jornalísticos, filosoficamente”.

Em outros termos, Celso alertava para o fato de que o que faz da leitura de um texto uma atividade filosófica não é a natureza disciplinar do texto lido, mas o modo como o leitor lê este texto; o que pressupõe considerar a filosofia uma operação perene, uma visada ou interpretação marcada pela consciência da impossibilidade do confinamento da linguagem. A leitura filosófica não se esgotaria, assim, na simples aplicação de metodologias de leitura. Ela seria um “exercício de escuta’”, num sentido análogo ao da psicanálise, ou seja, uma “elaboração que desdobra seus pressupostos e subentendidos”. Nem um “falso saber”, sofístico, que tudo pode provar — no sentido da crítica socrática —, nem uma “doutrina oficial” com a “pretensão a um saber absoluto”; mas uma escansão incansável de signos que pode produzir – sobretudo no aluno do ensino médio – “a segurança de uma dominação intelectual”.

A aula de filosofia, segundo Celso Favaretto, “não visa explicar, elucidar, mas interpretar, no sentido de que ela é uma atividade contínua, inacabada, voltada não sobre o significado das coisas, mas para a ação de inscrever signos”. Lyotard, nessa direção, afirmava que “o longo curso da leitura filosófica não ensina apenas aquilo que é preciso ler; mas que não se acaba de ler, que apenas se começa, que não se leu aquilo que se leu”. Em suma: aprender, para Celso Favaretto, é adquirir uma familiaridade prática com os signos: “Emitir signos a serem desenvolvidos no heterogêneo” – em seus próprios termos – é o que pode fazer todo professor, ciente de que “apoderar-se violentamente desses signos, dominar situações, dar forma, estruturar, impor relações de força”, situa aquele que se educa.

“Educar-se, conhecer, aprender: arte da multiplicação do sentido e da modificação da natureza dos signos que por estabelecerem relações entre um ocultado e uma superfície, manifesta-se como sintomas”. Toda educação processa-se, assim, – segundo Celso Favaretto – “ao nível dos sintomas para situar o intérprete na atividade de valoração dos signos”.

Por fim, lembro-me da surpresa causada em seus alunos, sua observação a propósito das dificuldades concretas do professor de filosofia, sobretudo naquele momento em que se buscava legitimar a volta dessa disciplina aos currículos do ensino médio. Nossa dificuldade consiste essencialmente – dizia, evocando Lyotard – na “exigência de paciência”; afinal, a aula de filosofia pode mostrar aos alunos “que se deve suportar não progredir (de forma calculável, aparente); que é preciso começar sempre, contrariamente aos valores dominantes de progresso, de desenvolvimento, de valorização, de performance, de velocidade, de execução, de gozo.

Dessa reflexão original e rigorosa, de fina urdidura, que aqui esquematizo, sobre o ensino de filosofia desenvolvida por Celso Favaretto ao longo dos anos, resultou sua Tese de Livre-Docência em Metodologia do ensino e educação comparada, intitulada Moderno, ‘pós-moderno, contemporâneo na educação e na arte, apresentada a Faculdade de Educação da USP, em 2004. No coração dessa Tese está a meu juízo, a substituição da concepção de educação como formação (Bildung), entendida como a conquista da autonomia em direção à emancipação, no sentido iluminista, com seu pressuposto metafísico da unidade do sujeito e da experiência, pela noção de “transformação”, aberta à multiplicidade das singularidades (aos acontecimentos), ou seja: à “produção de novas subjetividades”; às “mudanças de comportamento”, às “mutações das práticas artísticas”, que colocam em crise os sistemas de justificação moral, técnica e política da educação.

Em 1974, Celso Favaretto ingressou no mestrado em filosofia da USP, sob a orientação da professora Otília Arantes com um projeto de pesquisa sobre a canção tropicalista. Esse trabalho sobre uma manifestação cultural, ainda recente no país, que muito destoava das pesquisas calcadas na leitura estrutural dos autores clássicos da história da filosofia foi de extrema relevância uma vez que abriu, com seu pioneirismo, o campo de investigação na área de estética contemporânea do departamento de filosofia na USP.

Sua dissertação de mestrado, que foi defendida em 1978, e publicada em 1979, pela editora Kairós, intitulada Tropicália, alegoria, alegria, que está atualmente na 5ª. edição pela Ateliê Editorial, é um livro que já surgiu como um marco editorialnão apenas nos estudos sobre a canção tropicalista, mas, mais amplamente, sobre a tensão entre o experimentalismo artístico e a participação política na cultura brasileira nos anos 1960.

Destaco como um dos engenhos desse livro a mobilização da noção de “alegoria” do Drama Barroco Alemão, de Walter Benjamin, dos anos 1920 – que só seria publicado no Brasil em 1984 – na interpretação dos procedimentos tropicalistas. Celso Favaretto mostra que a estrutura da canção tropicalista, enquanto forma alegórica, é a da montagem por justaposição de fragmentos (arcaico/moderno; rural/urbano; cultura de massa/cultura erudita; forma pura/kitsch) sem que daí resulte alguma síntese ou conciliação (no sentido da arte orgânica, ou simbólica). A canção tropicalista não é, no entanto, para o autor uma ciranda aleatória de referências musicais disparatadas no sentido do pastiche pós-moderno, o que implicaria posição regressiva, porque evasiva ou saudosista, mas, em seus próprios termos, “jogos, inversões e dissimulações” que, “via de regra, são desmistificadores”.

No carnaval tropicalista haveria, portanto, consciência histórica, um “trabalho da cultura”, de elaboração da tradição, que produz tanto a ruptura com o passado quanto a irrupção no presente de possibilidades desse passado que ainda não foram realizadas. Esse trabalho da cultura operado na canção tropicalista é aproximado pelo autor, da elaboração onírica no sentido freudiano, pois de modo semelhante ao exercício surrealista, a prática tropicalista, recorrendo a procedimentos como condensação e deslocamento teria fecundado a realidade brasileira pela imaginação onírica, trazendo à tona dimensões reprimidas da tradição cultural.

Esse trabalho da memória efetuado na forma da canção é aproximada, ainda, da técnica psicanalítica da perlaboração (Durcharbeitung) de Freud; porque assim como “o paciente tenta elaborar sua perturbação atual associando-a livremente a elementos aparentemente inconsistentes com as situações passadas” de sua vida; os músicos tropicalistas teriam elaborado em suas canções a modernização pela qual passava o país, associando-a livremente a elementos da tradição cultural (como a antropofagia oswaldiana) desvelando sentidos ocultos da vida brasileira.

Findo o mestrado, Celso Favaretto coordenou com a professora Otília Arantes e seus orientandos, o Centro de Estudos de Arte Contemporânea (CEAC) no departamento de filosofia da USP, que publicou, de 1979 a 1984, oito números de Arte em revista, pela editora Kairós, que por reunir em perspectiva crítica uma valiosa documentação sobre a cultura brasileira dos anos 1960 e 1970 – que remanescera à sombra em função da censura imposta pelo regime militar – motivou diversas pesquisas sobre arte e literatura contemporâneas.

Recordo-me, por exemplo, o impacto causado pelo seu penúltimo número, que reuniu as posições de Mário Pedrosa, Peter Burger, Jürgen Habermas, Andréas Huyssen, Paolo Portoghesi, e Jean-François Lyotard sobre o suposto fim da modernidade artística, senão da própria arte, introduzindo no país o debate sobre a pós-modernidade, que seria tematizado por Celso Favaretto em seus cursos na pós-graduação da FEUSP.

Celso Favaretto, em 1985, ingressou no doutorado em filosofia da USP, agora sob a orientação do professor Leon Kossovitch, com um projeto sobre a obra do artista Hélio Oiticica. Defendida em 1988, sua tese de doutorado foi publicada pela Edusp/Fapesp, em 1992, com o título A invenção de Hélio Oiticica (Prêmio APCA de melhor livro de arte do ano) estando atualmente em sua 3ª. edição. Esse livro também pioneiro, constituindo-se, como o anterior, como obra de referência, foi o primeiro a reconstruir com engenho e rigor a trajetória experimental de Hélio Oiticica, de 1954 a 1981.

É um livro que reconstrói a “coerência do programa” e a “lucidez crítica” desse “artista inventor” que “cavou no desconhecido”, como diz o autor, “definindo suas próprias regras de criação e categorias de julgamento”; pois o que se tinha até então eram apenas coletâneas de textos esparsos do artista; a crítica de arte ligeira em jornais e revistas; apresentações em catálogos e documentação fotográfica. Só agora todo esse material é submetido a uma atividade interpretativa que mostra que o “dispositivo delirante” do artista é constituído por duas séries que se entrelaçam: a da produção artística e a do discurso verbal, sendo ambas de profunda coerência.

Nada escapa ao escrutínio sensível de Celso que explicita traço a passo o sentido construtivo do programa in progress do artista. Não há, em A Invenção de Hélio Oiticica, somente a coleta e o relato de sua produção (o “exercício experimental da liberdade”, no achado verbal de Mário Pedrosa), mas a especificação de sua legalidade própria, de sua ordem que nunca desmesura, da rede secreta de suas relações internas; enfim, da razão pulsional de seu dispositivo que interliga as obras: da fase visual (da arte) à fase “suprassensorial” (ao além da arte).

Esse livro que resultou da ampliação das pesquisas do autor sobre os projetos na arte dos anos 1960 e 1970, posto que ele se deslocou da canção tropicalista às artes plásticas de viés construtivo, permitiu-lhe também desenvolver suas reflexões sobre o esgotamento dos projetos de vanguarda e a nova condição cultural, contemporânea ou pós-moderna. É o que vem indiciado, no final de seu livro, na menção a uma das últimas entrevistas de Hélio Oiticica, após seu regresso ao Brasil, na qual o artista “dizia estar apenas começando”: “Tudo o que fiz antes considero um prólogo. O importante está começando agora”, afirmava em 1978. Face a essa declaração, Celso Favaretto conclui: “a sua morte deixou suspensa a questão: depois que a arte deslizou para o além da arte, o que poderia sobrevir?”. Haveria, sou levado a aduzir, um novo prelúdio, pós-tudo? Se tudo fora visto, dito, proposto, nada perdido, em que fresta, o imprevisto?

Depois de concluir o doutorado, em 1988, Celso Favaretto credenciou-se, inicialmente, no programa de pós-graduação em educação, oferecendo disciplinas e orientando pesquisas de mestrado e doutorado, assim como supervisionando pós-doutorados, e, em seguida, em 1992, no programa de pós-graduação em filosofia, acolhendo a um convite do departamento de filosofia da USP. Nesses programas concluiu muitas orientações – sempre interpenetrando práticas: filosofia, educação, arte, psicanálise, literatura – além de integrar inúmeras bancas de defesa de mestrado e doutorado, de livre-docência e de concursos públicos, pelo Brasil.

Se evito, no entanto, precisar os números é porque Celso sempre foi avesso à ideia de que a universidade deva ser gerida como uma empresa, ao modo neoliberal, que avalia a produção acadêmica de seus docentes, mediante métricas, rankings e “índices de impacto”, como se ela fosse produtos do mercado.

Não tive o prazer de ter sido, formalmente, seu orientando, mas posso supor por tê-lo ouvido em seminários, bancas e conversas diversas, como se dá seu processo de orientação. Seus orientandos, além disso, são unânimes em descrevê-lo como acolhedor haja vista que, de início, ele os ajuda a precisar, eles próprios, o tema que desejam efetivamente pesquisar. Feito isso, passa-se, então, a leitura compartilhada do texto em elaboração, em reuniões regulares, visando-se a adequar seu modo de enunciação, e a modular o sentido dos termos, sempre em prol da clareza e precisão, sem que nada seja imposto ao orientando.

Dessa orientação generosa resulta ao pesquisador a consciência do risco de uma adesão incontinenti ao conceito ao ponto de instrumentalizá-lo, e da necessidade de se atentar às nuances de cada palavra empregada em seu trabalho. Nessas orientações, em suma, a exigência e o rigor do orientador em relação à escrita do orientando, que o leva, não raras vezes, a reapresentar várias versões de seu texto, não tensiona a relação porque essa já está pautada, desde o início, pela delicadeza ou brandura – disposições ou sentimentos, vale notar, cada vez mais raros em nossos dias. Suponho que Celso conceba a orientação, e mesmo a aula de filosofia, menos como um acordo intelectual, e mais como um acorde musical, com suas intensidades e ressonâncias – como dizia Gilles Deleuze a propósito das aulas de Michel Foucault.

Desde os anos 1980, Celso Favaretto proferiu diversas palestras e escreveu vários textos sobre os desdobramentos do tropicalismo e a experiência contracultural dos anos 1970, os quais foram parcialmente reunidos no livro A contracultura, entre a curtição e o experimental, publicado em 2019, pela n-1 edições. Nesses ensaios, o autor reage à caracterização da cultura brasileira do início da década de 70 – apesar dos efeitos do AI-5 e da censura ainda vigentes – como um período de “impasse” ou “vazio cultural”, sustentando que nesses anos se constituiu uma noção mais ampla de cultura de resistência à ditadura, a saber: a “cultura alternativa”, entendida como uma “produção artística aliada a comportamentos” que privilegiava os gestos exemplares, as vivências, outra vida cotidiana – tudo o que pudesse ser considerado marginal em relação à cultura estabelecida ou oficial.

Essa produção alternativa dos anos 1970 que reagiu ao mito da modernidade cultural segundo o qual a arte totalizando o real produziria a redenção social, atribuía um poder de resistência (ou de afirmação da vida) à dimensão simbólica dos gestos, às experiências de limites, às novas formas de intersubjetividade ou de comunidade. Celso Favaretto vem examinando, também, além do pós-tropicalismo, o dito pós-modernismo, sem atribuir uma relação de implicação imediata entre os dois termos. De maneira mais precisa, sua reflexão, nos últimos vinte anos, tem tematizado os termos moderno; pós-moderno; e contemporâneo, no intento de explicitar o que resultou do esgotamento dos projetos de vanguarda do século passado; ou, mais especificamente, de evidenciar os “pressupostos implicados” na modernidade artístico-cultural que “permanecem ativos”, naquilo que passou a ser nomeado como pós-moderno ou contemporâneo.

O campo da arte contemporânea não é, para Celso Favaretto, o resultado da superação dos projetos modernos, mas aquele no qual se opera uma reflexão produtiva sobre os dispositivos modernistas. Seus ensaios teórico-críticos, de 2001 a 2021, que se inscrevem de modo autoral, e também erudito, no debate internacional sobre o moderno e o contemporâneo, foram coligidos, em 2023, no livro Ainda a arte contemporânea, pela n-1 edições.

Digo erudito, entre outras razões, porque Celso Favaretto foi um dos primeiros a comentar no Brasil a reflexão estética não apenas de Jean-Franços Lyotard e Jean Galard, como já vimos, mas também as de Jacques Rancière e Giorgio Agamben, hoje mais difundidas. Celso Favaretto mobiliza de Jacques Rancière, a ideia da arte como um “coletivo de enunciação” que recoloca em causa “a partilha já dada do sensível (dos papéis, dos territórios e das linguagens)”, em seu ensaio Em torno da arte e da política, de 2009; e de Giorgio Agamben, recorre à ideia da arte contemporânea como “aquela que não coincide perfeitamente com o seu tempo”, como a que é “inatual”; ou seja, como “aquela que fixa o olhar sobre seu tempo para aí perceber, não as luzes mas a obscuridade”, para então aproximá-la – em seu ensaio Entre luzes e sombras, a arte contemporânea, de 2020 – da concepção do “horror como o inominável, como o irrepresentável”, ressaltando, no entanto, que “não se pode dizer que o vazio [diferentemente do horror] também seja irrepresentável”. “E onde ele se impõe – conclui Celso Favaretto – surpreende‑se a tentativa de colmatar esse vazio, quando, ao contrário, conviria à arte “descobrir os interstícios do vazio” (ou, suas fissuras), como propusera Jean Baudrillard; só então, poder‑se‑ia falar em criação como resistência, pois a arte é [segundo Celso Favaretto] sempre invenção de novos devires e não a reiteração de um devir programado”.

Posição que é compartilhada por Gilles Deleuze que em seu Abecedário afirma: “E o que é resistir? Criar é resistir… [A arte] é uma liberação da vida, uma libertação da vida. Não há arte que não seja uma liberação de uma força de vida. Não há arte da morte. Esse é seu esplendor”.

Sei que essas minhas observações ligeiras não fazem jus aos méritos do homenageado. De todo modo, para expressar a gratidão e admiração dessa Faculdade de Educação, ou, mais extensivamente, de todos os que tiveram o privilégio de conviver com o professor Celso Favaretto, é preciso ainda lembrar o que talvez tenha sido, para muitos, sua principal lição: a experiência da amizade; entendida no sentido de Giorgio Agamben, como “uma partilha sem objeto”, como um “com-sentir” originário, uma vez que os amigos não com-dividem algo [um nascimento, uma lei, um lugar, um gosto]: eles são com-divididos pela experiência da amizade”; ou seja: “a amizade é a condivisão que precede toda divisão”, porque “aquilo que há para repartir, entre amigos, é o próprio fato de existir”.

Obrigado, ao professor emérito Celso Favaretto, por tê-lo como nosso amigo.

*Ricardo Fabbrini é professor do Departamento de Filosofia da USP. Autor, entre outros livros, de Arte contemporânea em três tempos (Autêntica). [https://amzn.to/4a35odf]

A cerimônia de outorga do título de Professor Emérito a Celso Favaretto será nessa sexta-feira (15 de março de 2024) às 16 horas no Auditório da Faculdade de Educação da USP.


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