Por MARIO LUIS GRANGEIA*
Comentário sobre o livro recém-lançado de Malu A. C. Gatto e Débora Thomé
Um livro lançado neste período eleitoral dirige atenção merecida a um tema invisibilizado há tempos na agenda democrática: as múltiplas e ainda atuais violências contra mulheres na disputa pelo voto. Em Candidatas: os primeiros passos das mulheres na política no Brasil, as cientistas políticas Malu A. C. Gatto e Débora Thomé iluminam, a partir de entrevistas feitas nas eleições de 2020 e 2022, um quadro familiar a grande parte das mulheres atuantes na política partidária. Assim, fazem refletir sobre uma pauta tanto política quanto científica: as cotas de gênero e outras inovações legislativas não livraram as candidatas de práticas avessas a seus direitos políticos.
Ao articularem depoimentos de 79 políticas, as autoras interpelam não só as persistentes violências contra elas. Candidatas pode ser lido inclusive como um convite para aplicar às eleições o termo “teto de vidro”, usual na alusão a limites invisíveis à ascensão de grupos sub-representados no mercado de trabalho. São bons os diálogos firmados entre olhares das candidatas e achados de estudos recentes da ciência política.
Mecanismos que limitam o trabalho das candidatas são evidenciados nos testemunhos do front das campanhas discutidos por Malu Gatto e Débora Thomé. A estrutura do livro ajuda a identificar a natureza e a dinâmica de tais barreiras. De início, o perfil das candidatas é revisado com base em dados sociodemográficos de 2020 e 2022 (ex.: idade, estado civil e raça/etnia). O foco depois recai nas percepções das candidatas sobre cinco temas (a que me detenho adiante): interesse pela política; filtro partidário; campanhas (offline e digitais); violências vividas; e pós-eleição. Por fim, as autoras repassam visões masculinas sobre tais temas e discorrem sobre o perfil de mulheres eleitas e novas perspectivas das candidatas.
Interesse pela política
Quatro motivações para a política são mais captadas entre elas: vontade de transformar a política; necessidade de maior representatividade; a percepção de sua vocação; e incentivos e convites à disputa (tais razões não se excluem). Muitas delas são convidadas a concorrer pela necessidade de partidos cumprirem a cota (30%). “Estavam precisando de mulheres”, contou candidata do PTC a vereadora em município nordestino.
Dados do Latin American Public Opinion Project (Lapop) citados mostram ser mais comum partidos encorajarem candidatos (18%) do que candidatas (11,5%). Ou seja, lideranças partidárias ainda os privilegiam, em detrimento delas, apesar do incentivo das cotas de gênero para candidaturas e orçamentos de campanha.
Filtro partidário
A relação com o partido, por razões como essa, nem sempre flui bem. Daí as candidatas serem ouvidas sobre a decisão da legenda e os laços com lideranças partidárias e com a distribuição de recursos. Houve caso até de quem soube de evento partidário só por ser casada com outro candidato. A disputa intrapartidária se mostrou até mesmo a mais tensa delas. “Algumas aceitam as dinâmicas de poder que já estão postas e caminham estrategicamente pelas brechas” (p. 76).
Aliás, o processo contra políticos do antigo PROS-RJ pelo boicote a candidatas à Alerj e Câmara dos Deputados, que recém-chegou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), é um exemplo nítido de que partidos podem fraudar a cota de gênero de forma tácita (e não só explicita), exigindo uma reação oficial à altura em prol da equidade de gênero buscada na legislação.
Campanhas (offline e digitais)
Os relatos delas sobre as campanhas têm o diferencial de clarear desafios ignorados por eleitores e até muitos estudiosos de processo eleitoral, sobretudo os da majoritária matriz quantitativa. Há estratégias criativas, como a candidata que aborda cidadãos entregando seu currículo, e as táticas usuais e seus desafios, como o papel de broker, em campanha também para nomes de outros cargos.
Violências
Uma lei de 2021 (no 14.192/2021) firmou a violência política de gênero como crime e ainda há muito a tratar nas violências contra candidatas. Eis, a meu ver, o maior mérito do livro: dar voz a candidatas que viveram algum tipo de violência, na classificação de Krook e Restrepo Sanín e seguida por Malu Gatto e Débora Thomé.
Há quatro tipos: violência física (ameaças limitam a campanha); psicológica (ofensas, ataques e questionamentos abalam sua saúde mental); econômica (a maioria das 79 ouvidas citou a falta de acesso a recursos como crucial); e simbólica (via difusão da desconfiança e a ocultação dos nomes delas).
Um relato ilustra como a violência pode ser implícita: “Se eu for olhar juridicamente, só o fato de eu não receber verba e não ter tido reuniões periódicas já é violência. Mas ninguém me desrespeitou ou fez fake news comigo”, notou candidata do Solidariedade a uma Assembleia Legislativa (p. 122). Aliás, teria sido bem-vindo expor mais da história da Lei 14.192/2021.
Pós-eleição
O título do capítulo 7 (“Ressaca de campanha”) já sinaliza as percepções debatidas ali. Frustrações e alegrias entremeiam avaliações sobre resultados nas urnas. “O apoio que eu tive foi de Deus e da população”, apontou candidata derrotada do PP-GO a deputada federal. Como frisam as autoras (p. 144) no fecho do capítulo (que caberia ao do livro), “vontade política, disposição para o risco, desejo de fazer a diferença. Movidas por esses sentimentos, apesar de tudo, as candidatas resistem, persistem e insistem nas candidaturas: é quase uma profissão de fé”.
*Mario Luis Grangeia, analista do Ministério Público, é doutor em sociologia pela UFRJ. Autor, entre outros livros, de Irmãos de além-mar? Portugueses e a imigração no Brasil (Ed. UFRJ).
Referência
Malu A. C. Gatto, Débora Thomé. Candidatas: os primeiros passos das mulheres na política no Brasil. Rio de Janeiro, FGV Editora, 2024, 200 págs.l. Rio de Janeiro, FGV Editora, 2024, 200 págs. [https://amzn.to/3Y4Bq5b]
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