Equívocos da crítica à financeirização

Imagem: Adrien Olichon
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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

Uma crítica mais bem fundamentada requereria considerar não apenas aspectos negativos, mas também benefícios potenciais da dita “financeirização”

A literatura de denúncia crítica à “financeirização” — o processo pelo qual os mercados, as instituições e as motivações financeiras se tornariam predominantes na economia — questiona os efeitos do crescimento do classificado por ela como “setor” financeiro (e não um sistema econômico-financeiro emergente de interações entre todos os agentes econômicos) sobre a produção, distribuição de renda e desigualdade. Alguns equívocos ou simplificações são frequentes nas abordagens críticas à financeirização e merecem, por sua vez, ser criticados.

Um erro comum é supor a financeirização se referir simplesmente ao aumento do tamanho do setor (sic) financeiro em relação à economia real, isto é, o setor produtivo para os denunciantes. A crítica, demonstrando preconceito moralista ou religioso medieval (antes da Teologia da Prosperidade), trata qualquer crescimento nas atividades financeiras como inerentemente negativo.

Ora, desde quando foi emergindo o sistema capitalista, a partir de fundações de bancos para financiar o comércio – a Casa di San Giorgio, fundada em 1406 na cidade de Gênova, na Itália, um importante centro comercial no início da Renascença, é considerada a primeira instituição financeira dessa história ocidental –, houve a interpenetração do capital financeiro em outras atividades econômicas, incluindo empresas não financeiras, famílias, governos e o “exterior”.

O crescimento dos mercados financeiros e o recurso aos instrumentos financeiros não são, por si só, problemáticos. Eles produzem bons resultados econômicos ao permitir maior liquidez, diversificação e proteção (por exemplo, via hedge cambial) de riscos, além de financiamento para alavancagem financeira de investimentos produtivos. A soma de recursos de terceiros aos recursos próprios resulta em maior economia de escala. O novo lucro operacional, superando as despesas financeiras, propicia maior rentabilidade patrimonial sobre o capital próprio.

No entanto, os críticos contumazes acham a financeirização favorecer a acumulação de capital financeiro às custas da produção real. Essa visão subestima o papel crucial do sistema financeiro na intermediação de recursos entre poupadores e investidores. Ao mobilizar a poupança aplicada em investimentos financeiros (fontes de funding) em direção a crédito para empreendimentos produtivos, o sistema financeiro é fundamental para o crescimento econômico.

A financeirização, analisada em sua dimensão positiva, permite a mais segura alocação de capital, com a avaliação de riscos ao financiar inovações e o desenvolvimento de novas tecnologias. É necessário diferenciar entre a negociação de ativos existentes (estoque de patrimônios privados) e a criação de ativos novos, geradores de empregos e fluxos de renda. Ambos acontecem de maneira cíclica.

Quando o valor de mercado não bem fundamentado cai abaixo do custo de produzir novos ativos, o crescimento estanca, em depressão, devido a esse custo de oportunidade. Quando o valor de mercado de ativos existentes volta a superar o custo de produção de ativos novos, a economia retoma o crescimento. Atos voluntários de todos os agentes resultam nesse ciclo econômico.

Muitas análises críticas da financeirização tratam o fenômeno como algo autônomo, ignorando sua relação com o processo de globalização econômica. Na realidade, a financeirização está profundamente interligada com a globalização, por esta ter ampliado os fluxos de capital entre fronteiras e facilitado a participação acionária de estrangeiros, destacadamente investidores institucionais como fundos de pensão de trabalhadores ou fundos de investimentos de famílias.

Desconsiderar essa relação global resulta em uma visão limitada das causas e efeitos da financeirização na economia contemporânea. Parte dela é uma resposta à necessidade de gestão de riscos, em um ambiente globalizado, onde empresas e governos enfrentam pressões para se proteger diante flutuações cambiais, crises de crédito e volatilidade de mercados internacionais.

Um problema monetário difícil de superar é a dupla assimetria cambial: moeda nacional apreciada (barateadora de importação) diante outra moeda nacional depreciada (favorável à exportação) como a da China. Evita a inflação importada no Brasil, mas as indústrias transnacionais aqui instaladas não conseguem gerar aumentos de produtividade capazes de superar as vantagens de preço conferidas por altos diferenciais de câmbio entre as moedas dos países.

Outro equívoco recorrente é achar todas as empresas não financeiras adotarem a financeirização de maneira homogênea, supostamente priorizando a maximização de valor para os acionistas em detrimento de investimentos produtivos. Essa dinâmica varia amplamente entre setores produtivos e tipos de empresas, por exemplo, familiares fechadas ou sociedades abertas.

Empresas multinacionais utilizam estratégias financeiras avançadas como hedge cambial ou gestão de fluxo de caixa sem comprometer investimentos produtivos. Portanto, reduzir a financeirização corporativa à simples priorização de dividendos ou recompra de ações ignora as necessidades de complexas interações entre estratégias financeiras e decisões produtivas na economia globalizada como onde é vantajoso produzir máquinas e equipamentos e onde importá-los.

É comum a crítica atribuir à financeirização a um avanço no aumento da desigualdade socioeconômica. A pobreza (carência de fluxo de renda) é superável, mas a desigualdade em termos de acumulação de estoque de riqueza não é.

Esta desigualdade é resultado de múltiplos fatores, por exemplo, desigualdade educacional, mudanças tecnológicas, fases de vida com tempo de acumulação de juros compostos, heranças etc. A financeirização contribui para a concentração de riqueza entre os detentores de capital, mas é resultante do incentivo ao trabalho, em sociedade capitalista, ser o acúmulo de reservas financeiras para a aposentadoria e o pagamento de cuidadores da demência sofrida na velhice.

Além disso, a financeirização permite o acesso ao crédito para famílias adquirir moradias e veículos e/ou empreender em pequenas empresas. Oferece oportunidades de mobilidade social e desenvolvimento humano.

Muitas abordagens críticas focam apenas nos bancos e nas empresas, negligenciando o fato de a financeirização envolver famílias e consumidores como participantes ativos, especialmente, por meio do crédito ao consumo, financiamento imobiliário e investimentos pessoais. A conquista da cidadania financeira aumentou o acesso das famílias a crédito, gestão do dinheiro com produtos financeiros e sistemas de pagamentos, ampliando o bem-estar social.

A crítica muitas vezes simplifica o conceito de financeirização, associando-o exclusivamente à especulação e à criação de bolhas de ativos. Embora esses fenômenos ocorram, a financeirização também inclui a criação de mecanismos de gestão de risco, como derivativos, para estabilização dos fluxos de capital.

Focar apenas no aspecto especulativo ignora os avanços positivos em termos de inovação financeira para melhorar a capacidade de gestão de risco das empresas e governos. A visão puramente negativa da financeirização obscurece a razão.

As críticas à financeirização tratam o sistema financeiro como uma entidade monolítica. No entanto, ele é composto por uma variedade de instituições (bancos comerciais, bancos de investimento, fundos de pensão, seguradoras, fintechs etc.), cada qual operando de formas distintas e com diferentes incentivos. Essa diversidade é ignorada ao tratar tudo como fosse um único fenômeno.

Além disso, o comportamento financeiro varia de acordo com as estruturas regulatórias e culturais de diferentes países. Países com sistemas financeiros mais regulados, como Alemanha ou Japão, apresentam uma relação diferente entre o setor financeiro e a economia real, em comparação com economias mais liberalizadas, como a da economia de mercado de capitais dos Estados Unidos.

A crítica à financeirização fica perplexa diante os efeitos potencialmente desestabilizadores ou cíclicos de um sistema econômico-financeiro, especialmente quanto à especulação descolada de fundamentos, crises de inadimplência no crédito e aumento da desigualdade com enriquecimento financeiro.

Há vários equívocos recorrentes ao simplificar a complexidade do fenômeno, como confundir financeirização com a simples expansão do sistema financeiro, subestimar o papel positivo da intermediação financeira, e ignorar a diversidade de comportamentos entre empresas, famílias, governos, instituições financeiras e economia globalizada.

Uma crítica mais bem fundamentada requereria considerar não apenas aspectos negativos, mas também benefícios potenciais da dita “financeirização”, especialmente quando adequadamente regulada e supervisionada pelo Banco Central. Em economia capitalista, não é possível encontrar um equilíbrio contínuo entre inovação financeira e estabilidade econômica, mitigando os riscos sistêmicos, ao restringir o papel positivo dos instrumentos financeiros na economia. A vida financeira é cíclica e difícil. É necessário saber lidar com ela…

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/4dvKtBb].


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