Por CÍNTIA MEDINA & ADRIANO PARRA*
Comentário sobre o livro recém-lançado de Soleni Biscouto Fressato
Intelectual vê novela? Essa é uma pergunta que intitula uma matéria da revista Lua Nova, publicada em 1985, na qual indaga algumas personalidades intelectuais e políticas da época.[1] Essa matéria recolocava em pauta a antiga questão acerca da alienação como estigma maior das telenovelas, outrora suscitada no campo intelectual desde os anos de 1960.
Diante da indagação “Você vê novelas de televisão?”, a maioria dessas personalidades responderam afirmativamente, fosse de modo frequente ou esporádico. Embora suas justificativas reforçassem as novelas apenas como um entretenimento, o psicanalista José Ângelo Gaiarsa, a cineasta Zita Carvalhosa e o advogado e político Rogê Ferreira atribuíram às novelas um caráter informativo acerca da realidade brasileira.
Entretanto, foi o sociólogo Octavio Ianni quem forneceu uma auspiciosa resposta que abriria um caminho investigativo desse fenômeno social no campo das ciências humanas. Nela expressava a necessidade de se estabelecer uma compreensão sociológica das novelas que ascendesse à sua tradicional equação social enquanto sinônimo de alienação. Assim, à questão “Você vê novelas de televisão?”, Octavio Ianni responde que “não gostaria de falar sobre novela, em uma entrevista deste tipo, sem poder desenvolver uma discussão maior sobre o tema”.
Seria, portanto, necessária uma argumentação que transcendesse o simples ‘sim ou não’ seguidos por sentenças limitadas em poucas linhas. Essa necessidade posta por Octavio Ianni foi concretizada ao longo das décadas seguintes a partir do desenvolvimento de uma massa crítica investigativa acerca do tema. Cada vez mais novos intelectuais e acadêmicos passaram a abordar o fenômeno das telenovelas como uma objetivação substantiva da vida sociocultural do país.[2]
É nessa tradição, portanto, que se encontra o novo livro da historiadora e socióloga Soleni Biscouto Fressato, Novelas, espelho mágico da vida: quando a realidade se confunde com o espetáculo, lançado recentemente no Centro de Pesquisa e Formação do SESC e na sala Florestan Fernandes, da Fundação Escola de Sociologia Política de São Paulo (FESPSP),[3] neste ano de 2024. Nesse livro, Soleni Biscouto Fressato convida o leitor a uma viagem nas imagens, memórias e situações contraditórias problematizadas pelas principais novelas da Rede Globo desde o seu surgimento nos anos de 1960, a começar pelo título da obra, a qual remete à novela Espelho Mágico, transmitida pela emissora carioca em 1977.
Nela, conforme salienta a autora, encontramos em sua base formal-compositiva sua própria metalinguagem, ou seja, uma composição narrativa na qual a novela fala de si mesma. Trata-se da novela Espelho Mágico espelhando literalmente os bastidores da vida cotidiana de seus respectivos personagens, os quais incorporam os arquétipos dos atores da telenovela Coquetel de amor, representada no enredo da obra como uma espécie de linguagem de segunda ordem da dramaturgia brasileira àquela época.
Com essa abordagem, Soleni Biscouto Fressato suscita no leitor as seguintes questões: teriam as novelas algo a dizer sobre a sociedade brasileira? Ou elas seriam apenas um mero e típico entretenimento massificado e alienante? Ademais, a autora nos faz indagar sobre a própria validade dessas questões, uma vez que nos encontramos em tempos de certo declínio na audiência das telenovelas, com destaque evidente para o principal canal de veiculação do gênero, isto é, para a Rede Globo.
Embora o livro não toque nessa última questão, esclarecê-la, a partir do levantamento de dados da realidade, nos auxilia a refletir sobre as duas primeiras questões problematizadas por Soleni Biscouto Fressato, sendo fundamental para situarmos historicamente a distinção de Novelas, espelho mágico da vida ante outras publicações já lançadas sobre o tema.
Estamos diante do fim das novelas globais?
O lançamento do livro Novelas, espelho mágico da vida ocorre em um momento no qual se multiplicam as matérias jornalísticas acerca da permanente tendência de queda do ibope das novelas da TV Globo.[4] Esse fato coincide com um contexto histórico particular vivenciado pela sociedade brasileira marcada por uma franca reconfiguração produtiva-comunicacional, resultante de uma persistente crise socioeconômica há muito deflagrada.
Trata-se de uma crise que tem levado o grande capital à procura de novas frentes de acumulação em diversos ramos econômicos, entre os quais estão aqueles diretamente envolvidos com a chamada “indústria cultural”, berço da dramaturgia nacional. Neste novo cenário, encontramos uma evidente rearticulação do mercado de bens culturais a partir do usufruto das novas tecnologias de informação e comunicação (NTICs), as quais têm reformulado profundamente as formas de produção e consumo desse tipo específico de bens.
Quanto a esse fato, a propósito, basta nos referirmos ao boom de séries e programas disponibilizados de modo on-demand em streamings de crescente popularidade, como a Netflix e o YouTube, principalmente após a conflagração da pandemia da COVID-19. De fato, esse novo cenário tem afetado a dinâmica de produção e consumo das novelas, principalmente via aparelhos televisivos.[5]
Aliás, isso pode ser notado nos baixos índices de audiência das chamadas “novelas globais”, principalmente as “novelas das nove”, com médias reduzidas em torno de 20 pontos de audiência.[6] Embora estejam amargando médias historicamente reduzidas de telespectadores anualmente, essa constatação está muito longe de revelar a decretação do fim das novelas enquanto um formato cultural de elevada demanda de consumo no Brasil. Afinal, as novelas globais “alcançam mais de 173 milhões de pessoas ano após ano, correspondendo a cerca de 81% da população brasileira inteira”, segundo afirma Amauri Soares, dos Estúdios Globo[7].
Ademais, apesar dessa baixa pontuação na audiência, “a cada semana, uma novela das 21h da TV Globo, sozinha, atinge 70 milhões” de telespectadores, marca que algumas das plataformas de streaming mais famosas como a Netflix e a Amazon Prime Video, por exemplo, demoram cerca de um ano para atingir. Ou seja, em uma única noite de estreia, a Rede Globo obtém uma audiência noveleira que essas plataformas só atingem em quase 365 dias de oferecimento de seu vasto catálogo.[8]
E mais, quando não são consumidas diretamente via aparelhos televisivos, as novelas da Rede Globo são acessadas digitalmente via redes sociais, cortes no YouTube e pela própria plataforma digital da emissora, o Globoplay – na qual, a propósito, as novelas são seus infoprodutos audiovisuais mais consumidos.[9]
Isso significa que, se não são consumidas na programação tradicional da TV aberta, elas são acessadas a partir dos novos meios de comunicação digital à disposição.[10] Inclusive, as novelas globais ainda continuam cumprindo a sua função estruturante para a emissora, intercalando e aglutinando toda a sua programação, bem como permanecendo como um de seus principais produtos de exportação desde os anos de 1970.[11]
Além disso, as telenovelas, enquanto bens culturais de destaque no cenário nacional, apresentam um alcance significativo de público nas assim chamadas classes A, B, C e D.[12] Não à toa, a Netflix e a Amazon Prime Vídeo, por exemplo, têm investido cada vez mais nesse tipo de formato, fomentando a produção de novelas em vários países – com destaque para novelas de origem turca, mexicana, colombiana, além das brasileiras de autoria própria, conforme notamos no seu catálogo.[13] Isso é uma clara evidência de que as empresas de streaming têm cada vez mais reconhecido a potencialidade mercadológica das novelas para a ampliação do público consumidor em suas plataformas digitais, agregando ao seu tradicional catálogo de séries e filmes esse gênero específico de teledramaturgia.
Consequentemente, toda essa facticidade demonstra-nos muito mais uma reconfiguração em torno da produção, disseminação e consumo das novelas a partir de novas (e antigas) modalidades de seu acesso (online e offline) do que propriamente o seu efetivo declínio ou sequer o seu fim. Posto isso, se o intelectual ainda não vê novela, atentar a esses dados da realidade sinaliza que ela assume um papel significativo na cultura brasileira. Um papel que Soleni Biscouto Fressato, em Novelas, espelho mágico da vida¸ se dispõe a nos elucidar. E o faz justamente em torno dessa reconfiguração sociocultural que deve ser considerada na leitura dessa obra.
“Quando a realidade se confunde com o espetáculo”
Em Novelas, espelho mágico da vida, a autora oferece uma compreensão original acerca da constituição histórica das novelas e seu papel no interior da sociedade brasileira. Afinal de contas, se as novelas ainda continuam tendo apelo social para milhões de brasileiras e brasileiros via meios televisivos e/ou digitais, elas teriam, sim, algo a nos dizer sobre a nossa própria realidade nacional.
Ademais, ela nos informa sobre esse “algo” a partir do já conhecido e eficiente formato ficcional da narrativa em melodrama, com amplo poder de afetar. A novela continua a entreter, emocionar e envolver a sua audiência em torno do apelo à constante e contraditória interação entre a verossimilhança fruitiva das contendas do viver cotidiano e o estranhamento de sua estética e interpretação hiperbólicas.
Essa contradição novelística entre seu conteúdo verossímil e seu potencial estranhamento estético, com dimensões informativas e recreativas evidentes, não passa despercebida pelo escrutínio investigativo de Soleni Biscouto Fressato. Sob a lupa fornecida pela vasta massa crítica dirigida aos estudos da então nascente indústria cultural, a autora destaca não apenas os possíveis efeitos mercadológicos da homogeneização dos bens culturais em sua capacidade socioeconômica de reprodutibilidade técnica,[14] realçando também o modo como as telenovelas, ao integrarem a chamada “sociedade do espetáculo”, nos termos de Guy Debord,[15] impactam a psique de seus espectadores.[16]
Diante dessa dimensão sociocultural presente nas novelas, como compreendê-las enquanto um bem de consumo voltado a tal fruição que interage com a psique e subjetividade da audiência, mas que não se restringe ao ‘velho lugar-comum do simples entretenimento e da alienação’? Assim, munida de tal arsenal teórico, Soleni Biscouto Fressato conduz o leitor por uma viagem reflexiva em busca pela compreensão das novelas, identificando a sua conformação nos processos sócio-históricos constituídos, simultaneamente, nas relações culturais, psíquicas, econômicas e políticas da vida social.
Nesse sentido, a autora conduz o leitor a “um nível [mais amplo] de abstração” da realidade histórica nacional, captando traços constituintes das novelas no interior das relações sociais desenvolvidas no interior da própria Indústria Cultural. Afinal, enquanto “bens de culturais” de consumo, as novelas se apresentam à sociedade “sob a forma de mercadorias”.[17]
Enquanto tal, a sua existência satisfaz tanto o valor mercantil de seus produtores quanto atende os valores de uso (de fruição) de seus potenciais consumidores/espectadores. Esse caráter contraditório das novelas se deve à organização socioprodutiva em torno da forma-mercadoria na qual as novelas se estabelecem. Enquanto tal, ao mesmo tempo que elas possuem o ficcional de entreter, emocionar e afetar seu público, elas jamais abandonam o seu caráter histórico enquanto objeto que nasce de um processo de especialização e expansão da indústria capitalista, a qual avançou também na produção de valores de uso no âmbito da cultura e do entretenimento. Sobretudo nos mais diversos modos e gêneros de bens culturais, mesmo aqueles vinculados às chamadas Belas Artes ou ao vasto campo cinematográfico.[18]
Essa dimensão sociocultural é descoberta na leitura de Novelas, espelho mágico da vida, quando Soleni Biscouto Fressato expõe claramente essa processualidade histórica acerca das novelas da Rede Globo. Elas surgem enquanto a principal mercadoria da emissora no setor de telecomunicações desde o início dos anos de 1960; e nascem em meio às relações político-econômicas e ideológicas estabelecidas com o Regime Civil-Militar e com a conglomerado de comunicação estadunidense Time-Life.
Foi desse conglomerado que a Rede Globo recebeu capital estrangeiro, burlando a legislação da época que estabelecia regras contrárias a esse tipo de negócio. A produção e disseminação de telenovelas, aliás, assumiram um papel crucial nessa negociação entre a emissora, o capital estrangeiro e o regime político então vigente, visto que atuariam como veículos ideológicos de manutenção da ordem social que, no caso brasileiro, era posta violentamente por meio de uma ditadura compromissada em conservar a histórica condição econômico-periférica do Brasil no mercado mundial.
É neste ponto, portanto, que Soleni Biscouto Fressato aproxima o leitor propriamente do caráter particular das novelas, isto é, das relações culturais de caráter psíquico e subjetivos que as conformam, sem perder de vista a sua constituição nas relações sociais mais abstratas como as apresentadas anteriormente. Além de sua forma-mercadoria, as novelas possuem características particulares. Seu formato narrativo-melodramático, por ter como centralidade as ações sucessivas de personagens agindo e respondendo aos acontecimentos cotidianos, consegue estabelecer uma trama que facilmente entrelaça a dimensão ficcional da prática cotidiana com a dimensão real da vida de seus espectadores.
Em outras palavras, o pragmatismo cotidiano e o processo sociomaterial são trabalhados na narrativa ficcional novelística a fim de evidenciar a própria conjuntura socialmente determinada na qual a audiência se situa.[19] Isso, no plano individual, cria uma verossimilhança entre a história ficcional e a realidade da audiência, capaz de promover um forte poder de identificação com o seu público. Não à toa, o formato narrativo-melodramático é matriz na produção de séries e filmes estadunidenses, demonstrando o histórico êxito da hegemonia ideológica do estilo American way of life e da própria reprodução sociomaterial do modo de produção capitalista aos moldes estadunidenses ao redor do globo.[20]
Nessas condições, as novelas globais têm conquistado um lugar hegemônico semelhante na cultura brasileira, uma vez que, sob essa linguagem narrativa-melodramática, produzem “imagens-referência” as quais, segundo Soleni Biscouto Fressato, “constroem formas de pensar e agir, veiculando elementos simbólicos significativos na formação da subjetividade”, estabelecendo um processo psíquico de mobilização contínua de um “imperativo do gozo”.
Isto é, o espectador sente na sua pele a vivência das dores e as delícias dos próprios personagens, priorizando a dimensão do gozo ficcional como o ápice a ser alcançado e vivenciado em sua subjetividade. Um exemplo emblemático disso citado pela autora foi a experiência de sua mãe defronte a uma cena idílica da representação do Céu na novela A Viagem, de 1975. Essa imagem mobilizou a sua memória, fazendo-a crer ter visto o seu pai, falecido em 1969.[21]
Essa dinâmica de construção de imagens-referência é analisada por Soleni Biscouto Fressato com base em algumas novelas que retratam temas da vida cotidiana como formas de concepção de amor, família, mulher, homem, autoridade, modos de se vestir e falar, de caminho para o sucesso, de trabalho, de organização social etc. Essa capacidade simbólica demonstra o quanto as novelas globais assumem um importante papel de mobilização da audiência, divulgando ideias, concepções, gostos, comportamento e estímulos de consumo.[22] Mesmo nas situações de ausência de quaisquer graus de verossimilhança do telespectador com o cotidiano ficcional da novela, suas imagens-referência abrem espaço para projeções de comportamentos e concepções a serem perseguidas por sua própria audiência.
De fato, as novelas dotadas dessa capacidade simbólica adquirem uma potencialização pelo seu ineliminável caráter mercantil. Enquanto tal, elas estão submetidas ao interesse primário de seus proprietários, os quais visam não apenas promover a valorização de seus investimentos (via ganhos com espaços publicitários, por exemplo) – como ocorre no caso das novelas globais –, mas também difundir seus interesses políticos e ideológicos. Isso contribui para uma clara tendência do papel das novelas globais na consolidação da ordem capitalista-periférica na qual se assenta a reprodução material da sociedade brasileira.
Entretanto, mesmo diante dessa condição mercantil, as novelas não se resumem a instrumentalização desses interesses. Pois, como em qualquer processo de criação, sobretudo no campo simbólico, os agentes envolvidos na produção de novelas as elaboram com base em suas próprias internalizações subjetivas, as quais apenas foram efetivadas na medida em que se defrontaram com diversas objetivações sociais em suas respectivas vivências cotidianas.[23] São justamente essas objetivações sociais vividas o caldo cultural que envolve a externalização das novelas enquanto produtos de um trabalho de criação.
Seja essa externalização produzida de modo consciente ou inconsciente, seja efetivada em caráter disruptivo ou de modo conservador.[24] E esse processo não pode ser plenamente controlável, a despeito dos interesses econômicos e das diretrizes ideológicas impostas pelos detentores de sua propriedade intelectual.
Tudo isso, a propósito, fica evidente quando Soleni Biscouto Fressato traz ao leitor algumas imagens e projeções que tensionam as predispostas tendências de conservação do chamado “padrão Globo de produção”, presentes, sobremodo, em suas análises sobre as novelas Torre de Babel (1998-1999) e Velho Chico (2016). A primeira novela exibida, por exemplo, tratou de questões como feminicídio, relação homoafetiva e dependência química. Diante da forte reação conservadora da audiência à época, despertada por tais questões, o autor Silvio de Abreu imputou o desfecho a seus personagens consoante a expectativa conservadora do público: o marido violento se redime, o casal homoafetivo e o garoto adicto morrem na explosão do centro comercial Tropical Towers.
Afinal, como bem mostra Soleni Biscouto Fressato, as novelas são bens culturais dotados de “imagens simbólicas” que precisam ser consumidas na esfera mercantil. Já no caso de Velho Chico, ao contrário da dramaturgia de Torre de Babel, o enredo apresentado questionava o papel do agronegócio no desenvolvimento socioeconômico do país, tendo sido transmitida em canal aberto justamente em plena campanha pró-agro da Globo, representada pelo seu reiterado bordão: “o agro é tech, o agro é pop, o agro é tudo”.
Não obstante as novelas sejam amplamente concebidas como veículos ideológicos, esse caráter não se encontra apenas nesse tipo específico de bem cultural, mas se estende aos demais produtos do trabalho humano realizado sob a ordem capitalista. A partir do momento histórico em que ocorre a generalização das trocas e, com ela, a expansão e especialização do trabalho, essa sociedade capitalista estabelece a sua própria atomização social. Nessas condições, perdemos a dimensão da realidade em sua totalidade, restando-nos internalizar subjetivamente apenas partes unilaterais das objetivações humanas. Isso contribui para a dificuldade de compreensão da vida social em geral – os objetos sociais que nela se produzem também trarão em algum grau essa parte alienada, ausente, de modo que o real entendimento de um determinado contexto somente será possível mediante o resgate de suas mediações históricas.
Assim, enquanto epifenômenos de processos sociais mais amplos, as imagens, as ideias e os fatos sociais veiculados pelas novelas costumam aparecer ao grande público de modo mistificado, suscitando em parte de sua audiência uma apreensão cotidiana carregada de apelo às “emoções e impressões de cunho moral”. Isto é, revelando-se muitas vezes como meros produtos de “elevado teor ideológico” que, não obstante, visam defender e reforçar uma espécie de ‘coerência interna’ que seria ‘naturalmente’ inerente à própria ordem social já estabelecida.[25]
Por isso, como bem observa Stuart Hall[26], o campo das práticas culturais é historicamente aquele que mais explicita as contradições sociais vigentes, visto ser um espaço privilegiado da disputa de mentes e corações, seja para a manutenção ou para disrupção do status consciente ou inconscientemente efetivado. São mentes e corações mobilizados por uma disputa pela psique e subjetividade individuais dentro dessa lógica produtiva-cultural há muito massificada. Este momento é justamente “quando a realidade se confunde com o espetáculo”, tal como expõe Soleni Biscouto Fressato em Novelas, espelho mágico da vida.
É ela quem, com sua nova publicação, nos suscita a refletir: se intelectual ainda não vê novelas, ele continua desconhecendo parte da constituição histórico-cultural brasileira; indubitavelmente um marco de nossa Indústria Cultural. E quanto a isso, nada mais a fazer do que seguir as reflexões de nossa autora, erguendo nossa cabeça em direção ao espelho que diariamente invade os lares brasileiros.
*Cíntia Medina é pós-doutoranda em sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
*Adriano Parra é doutorando em sociologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Autor do livro Dialética da experiência (Sundermann).
Referência
Soleni Biscouto Fressato. Novelas, espelho mágico da vida: quando a realidade se confunde com o espetáculo. São Paulo, Editora Perspectiva, 2024, 208 págs. [https://amzn.to/3BQnzXR]
Notas
[1] LUA NOVA. Intelectual vê novela? Lua Nova: Revista de Cultura e Política, v. 2, n. 1, p.29-30, 1985.Dentre as personalidades entrevistadas à época, encontra-se o político Luiz Inácio Lula da Silva, o filósofo e professor universitário José Arthur Gianotti, o sociólogo e ex-dirigente sindical Roque Aparecido da Silva, a cineasta Zita Carvalhosa, a economista Lídia Goldenstein, a antropóloga Carmem Junqueira, o sociólogo Octávio Ianni, a presidente da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo Margarida Genevois, o cientista político, jornalista à época, André Singer, o artista plástico Rodrigo de Andrade, o comentarista econômico Marco Antônio Rocha, o psiquiatra José Ângelo Gaiarsa, a deputada federal Irma Passoni, o escritor Fernando Gabeira, a economista Maria da Conceição Tavares, a advogada Sílvia Pimentel, e o político e também advogado Rogê Ferreira. Para mais detalhes, acesse aqui.
[2] BACCEGA, Maria Aparecida. Narrativa ficcional de televisão: encontro com os temas sociais. Comunicação e educação: telenovela e temas sociais, educação a distância e tecnologia digital, Ano IX, n. 26, p.7-16, 2003. Nesse texto, Baccega apresenta uma série de estudos seminais acerca da temática novela e sociedade desenvolvidos desde as décadas de 1980. Inclusive, em 1989, autora, em parceria com a professora universitária Renata Pallottini, coordenaram o I Seminário Latino-Americano de Dramaturgia da Telenovela no Memorial da América Latina, em São Paulo. Para mais detalhes acesse aqui.
[3] O lançamento do livro Novelas, Espelho Mágico em São Paulo ocorrido na FESPSP pode ser acessado aqui.
[4] NASCIMENTO, Sandro. Novelas fracassam, espantam público da Globo e levam crise histórica ao horário nobre. Na Telinha, UOL, 2024. Acesse aqui.
[5] DIAS, S. & RUSSO, E. Caso de ensino: a internacionalização das novelas brasileiras na era do streaming: o caso do grupo Globo. Internext: International Manager Business Review. v.19, n. 1, p.24-41, 2023. Para uma informação mais aprofundada, acessar aqui.
[6] DALCIN, Jurandir. Confira as audiências das novelas entre 08 e 13/04/2024. Portal Comenta, 2024.Trata-se de uma pontuação relativamente baixa para esse tipo de novela exibida no chamado horário nobre da televisão brasileira. Isto se comparada com os outrora exitosos padrões de audiência das telenovelas globais entre os anos de 1970 e 2008, em torno dos 52 pontos, segundo a média dos ibopes desde a novela Irmãos Coragem, de Janete Clair até Duas Caras, de Aguinaldo Silva, segundo aponta a TV Globo Wiki. Para tais informações, acesse respectivamente este site e este outro site.
[7] DORES, Kelly. Em alta na TV e no streaming, remakes de novelas fazem resgate afetivo. Propmark, 2024. Para mais detalhes, acessar aqui .
[8] Id., 2024; VAQUER, Gabriel. ‘Renascer’: novela da Globo atrai homens e jovens e rouba audiência do streaming. F5, Folha de São Paulo, 2024. Para mais detalhes, acesse aqui.
[9] KOGUT, Patrícia. Consumo de novelas no Globoplay cresce. Descubra quais são as mais assistidas. O Globo, 2023; TOLEDO, Mariana. Dos dez conteúdos mais vistos no Globoplay, sete são produções do Grupo Globo. Telaviva, 2024. Essas matérias demonstram que as novelas estão entre as primeiras opções de programação na lista dos top 10 do Globoplay. Para mais detalhes, acesse respectivamente este site e este outro site.
[10] DIAS, Tiago. Novelas ainda são relevantes? Sim, e elas estão invadindo o streaming…, Splash, Folha de S.Paulo, 2024. Para mais informações, acessar aqui.
[11] GILARD, V.;WOLFF, E.; NUNES, S. Confira as 10 novelas brasileiras mais exportadas e os países que mais compram. Gshow, 2021; DIAS, S. & RUSSO, E. Op.cit., 2023. Segundo essas publicações, a Rede Globo exportava suas novelas para 86 países, em 2001, porém este número varia consoante as novelas exibidas.
[12] FELTRIN, Ricardo. Veja o perfil de quem assiste a novelas da Globo, SBT e Record… 2018. Em 2018, a telenovela das nove Segundo Sol, de João Emanuel Carneiro, era assistida por 33% das classes A e B, 30% da classe C1, 26% das classes C2 e 12% das classes C e D. A média de sua audiência ficava entre 30 e 40 pontos, isto é, baixa se comparada com as gigantescas pontuações das telenovelas de 1985, como Corpo a corpo e Roque Santeiro, com 52,67 e 62,30. Essa tendência de queda da audiência vem ocorrendo conforme se apresenta na atual novela das nove, Mania de Você, do mesmo autor João Emanuel Carneiro. Desde sua estreia, em 9 de setembro de 2024, a novela mantém a sua audiência em torno dos 20 pontos. E o perfil de sua audiência é composto pelas classes AB e C2, representando 52% dos telespectadores. Para mais detalhes, acessar aqui.
[13] DELAS IG. 12 novelas para assistir na Netflix ou Amazon Prime. 2024. Para visualizar algumas dessas novelas, acessar aqui.
[14] Assim, Fressato mobiliza em sua obra algumas reflexões de Adorno e Horkheimer passando também pelas observações de Benjamin e Kracauer acerca da reprodutibilidade técnica de obras culturais.
[15] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
[16] Neste caso, Fressato mobiliza em sua obra proeminentes autores da psicanálise como Erich Fromm, Giles Deleuze & Félix Guatarri, Eugênio Bucci & Maria Rita Khel, Vladmir Safatle, entre outros.
[17] PARRA, Adriano. Dialética da experiência: cultura, trabalho e urbanidade na questão da moradia. São Paulo: Sundermann, 2021, p. 97.
[18] MEDINA, Cíntia. A obra cinematográfica como fonte histórica: por uma abordagem crítico-materialista. Revista Marx e o Marxismo – Revista do Niep, Niterói, v.8, n. 15, p. 360-387, 2020.
[19] MORETTI, Franco. Signos e estilos da modernidade: ensaios sobre a sociologia das formas literárias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
[20] Id., 2007.
[21] Segundo Bosi, “a memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a Igreja, com a profissão: enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo. Se lembramos é porque os outros, a situação presente, nos fazem lembrar. Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado”. Neste caso, a experiência vivida pela mãe da autora demonstra como uma cena dramatúrgica é capaz de mobilizar imagens coletivas que sintetizam vivências pessoais significativas para aqueles que as consomem. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Edusp, 1987, p. 17.
[22] Por exemplo, no caso específico da autora desta resenha, ela se deparou com um rapaz da Geórgia em 2008 que se lhe apresentou com o inesquecível chacoalhar de pulso do personagem Sinhozinho Malta, da novela Roque Santeiro de 1985. Em seguida, foi recepcionada por duas alegres romenas pela expressão “chocolate com pimenta”, título da novela das seis de 2003. Esses casos se contrastam com as típicas recepções de estrangeiros aos brasileiros, os quais geralmente se referem a personalidades do futebol, carnaval ou até da bossa nova para se referir ao Brasil.
[23] PARRA, op. cit.
[24]“Afinal, as obras de teor estético não são autotélicas, ou seja, não são entidades supra-históricas que explicam a si mesmas, conforme salienta Eagleton (1993). Elas se forjam em práticas sócio-individuais específicas, sendo, portanto, expressões de internalizações subjetivas da objetividade do mundo, mesmo que o autor esteja inconsciente disso (LUKÁCS, 2012; MARX, 2004).” Ver: MEDINA, Cíntia. A trágica racionalidade do capital no cinema de Ken Loach: uma ofensiva irracional à classe trabalhadora no século XXI. (Tese de Doutorado) FFLCH-USP, 2023.
[25] MEDINA, 2023, p. 104.
[26] HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. 2ª ed. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2013.
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