Sociedade do espetáculo

Imagem: Pierre Blaché
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Por CHRIS HEDGES*

O espetáculo é tudo que resta à classe dominante americana

O Comitê Selecionado para Investigar o ataque de 6 de janeiro de 2021 ao Congresso dos EUA, cujas primeiras seis audiências públicas televisadas começaram no dia 09 de junho, é um espetáculo que substitui a política. Nada há de substancialmente novo nas acusações. O comitê não tem poderes de promotoria. Nenhuma acusação foi apresentada pelo Procurador-Geral dos EUA, Merrick Garland, contra o ex-presidente Donald Trump e não se espera que haja alguma.

As audiências coreografadas – assim com o foram os julgamentos para o impeachment de Donald Trump – não terão efeito algum sobre os eleitores de Trump, a não ser fazê-los se sentirem perseguidos, especialmente considerando-se as mais de 860 pessoas que já foram acusadas (incluindo 306 autodeclarações de culpa) pelo seu papel na invasão do Capitólio.[i] O comitê ecoa para os opositores de Trump aquilo que eles já acreditavam. Este comitê foi planejado para apresentar a inação como sendo uma ação e substituir a política pelo desempenho farsesco de papéis. Como escreve Guy Debord ele perpetua o norte-americano “império da passividade moderna”.

O comitê – boicotado pela maioria dos Republicanos – contratou James Goldston,[ii] um produtor de documentários e antigo presidente da rede de TV ABC News, para transformar as audiências em envolventes espetáculos televisivos embalados de maneira esperta e com uma variedade de frases de efeito concisas. O resultado disso é – como tinha a intenção de ser – a política como “reality TV”, uma diversão mediática que nada mudará na sombria paisagem estadunidense. Aquilo que deveria ser uma séria investigação bipartidária sobre a variedade de violações constitucionais praticadas pelo governo Trump, foi transformado em um comercial de campanha em horário nobre para um Partido Democrata sem combustível. A epistemologia da televisão está completa. E também assim está o seu artifício.

As duas alas estabelecidas da oligarquia – o velho Partido Republicano representado por políticos como Liz Cheney, uma dos dois Republicanos que estão no comitê, e a família Bush – agora estão unidas com a elite do Partido Democrata, formando uma única entidade política dominante.[iii] Os partidos dominantes já marchavam juntos há décadas nos assuntos importantes – incluindo: guerra, acordos de comércio, austeridade, a militarização da polícia, prisões, vigilância governamental e o assalto às liberdades civis. Eles trabalharam em paralelo para perverter e destruir as instituições democráticas, para benefício dos ricos e das corporações. Eles trabalharam desesperadamente juntos para repelir a revolta de trabalhadores e trabalhadoras brancas enfurecidos e traídos que apoiam Donald Trump e a extrema direita.

Os membros do comitê procuram enjoativamente santificar a si mesmos e as suas audiências, proclamando sustentar a constituição, a democracia, os Pais Fundadores dos EUA, o Estado de direito, o consentimento dos governados e o processo eleitoral.

O presidente do comitê, Bennie Thompson, falou sobre “os inimigos domésticos da Constituição que assaltaram o Capitólio e ocuparam o Capitólio, tentaram contrariar a vontade do povo e impedir a transferência de poder”. Liz Cheney chamou o Capitólio de “um espaço sagrado na nossa república constitucional”.[iv]

Não houve reconhecimento algum por parte dos membros do comitê que “a vontade do povo” foi subvertida pelos três poderes da república a fim de servir as ordens da classe bilionária. Ninguém mencionou os exércitos de lobistas a quem se permite assaltar diariamente o Capitólio para financiar o suborno legalizado das eleições e de escrever os textos das leis pró-corporações que eles aprovam. Ninguém falou sobre a perda dos direitos constitucionais – incluindo o direito à privacidade. Ninguém mencionou os desastrosos acordos comerciais que desindustrializaram o país e empobreceram a classe trabalhadora. Ninguém falou sobre os fiascos militares no Oriente Médio, os quais custaram US$ 8 trilhões aos contribuintes de impostos, nem o sistema de saúde para fazer lucro que logra o público e impede uma resposta racional à pandemia – que já resultou em mais de um milhão de mortes – nem a privatização de instituições governamentais, incluindo escolas, prisões, tratamento de água, coleta de lixo, parquímetros, serviços de utilidade pública e até a coleta de inteligência, para enriquecer a classe bilionária às custas da população.

O buraco aberto entre a realidade daquilo que nos tornamos e a ficção de quem nós somos supostos de ser é a razão pela qual o espetáculo é tudo que resta à classe dominante. O espetáculo toma o lugar da política. Esta é uma admissão tácita de que todos os programas sociais – seja o plano Build Back Better [Reconstruir Melhor], a proibição de armas de ataque de guerra, o aumento do salário mínimo, a diminuição da devastação da inflação ou a instituição de reformas ambientais para evitar a emergência climática – jamais serão implementados. Aqueles que ocupam o “espaço sagrado” da “nossa república constitucional” são só são capazes de despejar dinheiro em guerra, alocando US$ 54 bilhões para a Ucrânia e aprovando orçamentos militares cada vez maiores para enriquecer a indústria de armamentos.

Quanto maior fica o buraco entre o ideal e o real, tanto mais serão empoderados os protofascistas que estão fixados em retomar a maioria do Congresso nas eleições de novembro deste ano. Se o mundo racional e factual não funciona, por que não tentar usar uma das tantas teorias da conspiração? Se for isso que a democracia significa, por que apoiar a democracia?

A direita também se comunica através do espetáculo. O que foram os quatro anos da presidência de Donald Trump, senão um vasto espetáculo? Espetáculo versus espetáculo. A estética do espetáculo é tudo o que resta, como o foi nos dias derradeiros do Império Romano e da Rússia Tzarista. “A nossa política, a religião, as notícias, os esportes, a educação e o comércio foram transformados em adjuntos congeniais do show business”, escreveu Neil Postman no seu livro Amusing ourselves to death: public discourse in the age of show business [Estamos nos divertindo: o discurso público na era do show business]. Cega pela sua soberba e pomposidade, a atual classe dominante, no entanto, não é muito boa nisso.

A extrema direita – que acredita que vacinas provocam autismo, que anjos existem, que um conluio de satânicos e canibalísticos abusadores de crianças que operam uma rede global de tráfico sexual de crianças estão tentando destruir Donald Trump, e a inerrância da Bíblia – esta é muito mais divertida, mesmo enquanto acelera a solidificação da tirania corporativa. Se a república está morta, você quer ver Joe Biden balbuciar o seu caminho em mais uma conferência de imprensa, ou a paródia de Rand Paul serrando o código de impostos pela metade, e Ted Cruz acusando Barak Obama de tentar prove “Medicaid expandido” para o ISIS?

Você quer se acordar com o mais novo ultraje retórico de Donald Trump – que, quando estava fazendo a campanha presidencial, acusou Trump de ser o fundador do ISIS, que sugeriu que o pai de Ted Cruz estava envolvido no assassinato de John F. Kennedy, que argumentou que o ruído dos moinhos de vento da energia eólica causa câncer e recomendou a ingestão de desinfetante para lutar contra a COVID, ou prestar homenagem a uma conjunto de valores que foram descartadas há muito tempo pela classe dominante e substituídas por mentiras, corrupção e ganância?

Em resumo, já que o sistema traiu e tosquiou você, por que não desmontá-lo com a vulgaridade e a crueza que este merece? Por que não se entretido por incendiários políticos? Para que engajar-se em cortesias polidas e no decoro político exigido por aqueles que destruíram as nossas comunidades, arruinaram a nação, saquearam o Tesouro dos EUA, supervisionaram uma série de custosos desastres militares e nos tiraram a capacidade de ter um nível de vida adequado, bem como o futuro dos nossos filhos?

Em 1924, o governo da Alemanha de Weimar decidiu livrar-se de Adolf Hitler e do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, os nazistas, ao julgar Hitler por alta traição no Tribunal do Povo. Estava claro que Hitler era culpado. Ele havia tentado derrubar o governo eleito com o fiasco do seu “Golpe da Cervejaria” de 1923 – o qual, como o tumulto de 6 de janeiro de 2021 no Capitólio, era mais uma farsa do que uma insurreição. Aquele era um caso para abrir e encerrar. No entanto, o tiro saiu pela culatra e o julgamento transformou Hitler num mártir nacional e impulsionou o destino político dos nazistas.

A razão disso deveria ter sido aparente. A Alemanha estava uma bagunça, convulsionada pelo desemprego generalizado, os tumultos por comida, a violência nas ruas e a hiperinflação. As classes dominantes alemãs, como as norte-americanas não tinham credibilidade. O apelo ao estado de direito e aos valores democráticos era uma piada.

Houve um momento revelador nas audiências [no Congresso, na semana passada], quando a policial da guarda do Capitólio Caroline Edwards, que sofreu uma concussão craniana durante o assalto ao Capitólio, relatou uma conversa que ela teve com Joseph Biggs, o líder dos The Proud Boys que foi indiciado junto com outros quatro líderes do grupo por conspiração sediciosa em conexão com o assalto ao Capitólio.

“A maré começou a virar quando o que agora é o grupo de Arizona – é isso que você disse – o pessoal com os bonés laranja, eles chegaram entoando o canto “F-U-C-K Antifa”, Edwards contou ao comitê. “E eles se juntaram àquele grupo. Uma vez juntos, a retórica de Biggs se virou contra a polícia do Capitólio. Ele começou a nos fazer perguntas do tipo: “Você não deixou de receber o seu cheque de salário durante a pandemia, né?”, mencionado coisas sobre a nossa escala de salários e, sabe. Começou a virar contra nós”.

Aquela breve conversa salientou o enorme hiato entre os que têm e os que não têm – o qual, se não for respondido, transformará Donald Trump, os seus apoiadores, Biggs, os Proud Boys e os Oath Keepers em mártires.

O Congresso dos EUA é uma fossa sanitária. Os políticos corruptos de prostituem para os ricos e se tornam ricos em troca. Esta realidade – a qual as audiências ignoram – fica aparente para a maior parte da nação; é por isso que as audiências não reforçarão as fortunas salientes da classe política dominante, desesperadas para evitar a sua substituição.

A velha classe dominante está destinada à extinção, não que a que segue será melhor. Não será. Porém, o jogo de pilhagem e corrupção em nome dos sagrados valores democráticos já não funciona mais. Um novo jogo está tomando o seu lugar, no qual os bufões narcisistas que alimentam os fogos do ódio e que só sabem destruir, nos entreterão até a morte.

*Chris Hedges é jornalista. Autor, entre outros livros, de Empire of illusion: the end of literacy and the triumph of spectacle (Nation books).

Tradução: Rubens Turkienicz para o portal Brasil 247.

Publicado originalmente no The Chris Hedges Report

 

Notas


[i] https://www.insider.com/all-the-us-capitol-pro-trump-riot-arrests-charges-names-2021-1

[ii] https://www.nytimes.com/2022/06/09/us/the-committee-hired-a-tv-executive-to-produce-the-hearings-for-maximum-impact.html

[iii] https://scheerpost.com/2022/02/14/hedges-democrats-the-more-effective-evil/

[iv] https://theamericanonews.com/floricua/2022/06/10/full-transcript-heres-what-was-said-at-the-first-jan-6-committee-hearing/

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