Uma teoria do poder global

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Por JOSÉ LUÍS FIORI*

Prefácio do autor ao livro recém-lançado

No princípio era o poder

“A conclusão que se deve reter é que o aparelho do poder, força que traspassa e envolve todas as estruturas, é muito mais do que o Estado. Pode mesmo acontecer-lhe apagar-se, desfazer-se; mas tem sempre de se reconstituir e reconstituir-se infalivelmente, como se fosse uma necessidade biológica da sociedade” (Fernand Braudel, O jogo das trocas, p. 494).

Esta obra reúne vários artigos e ensaios que fazem parte de uma longa pesquisa histórica, e de uma reflexão teórica, que começou na década de 1980 com o debate sobre o desenvolvimento e o “capitalismo tardio” e com a crítica das teorias da dependência, para depois tomar o caminho da “economia política internacional” e da crítica de suas teorias dos “ciclos” e das “crises hegemônicas”. Ao todo, foram quatro décadas de investigação da conjuntura internacional, lida e interpretada à luz das “grandes durações históricas”, e de uma perspectiva teórica que foi sendo construída ao longo desse tempo, sobre a dinâmica expansiva do “poder global”.

A conjuntura

A conjuntura internacional dos últimos 40 anos foi marcada por rupturas e inflexões extremamente rápidas, surpreendentes e profundas. Começando pela chamada “crise americana” dos anos 70 do século passado, que se manifestou e se desenvolveu num momento de máximo esplendor da hegemonia norte-americana do pós-Segunda Guerra Mundial. Quando se deu a reconstrução da Europa e ocorreram vários “milagres econômicos” ao redor do mundo, “a convite” dos Estados Unidos, incluindo o “milagre brasileiro”, que entrou em crise na década de 1980, como consequência indireta da própria crise americana, da década anterior.

E mesmo assim, num curto espaço de tempo, entre 1970 e 1973, foi como se tudo tivesse vindo abaixo: os Estados Unidos foram derrotados na Guerra do Vietnã; ao mesmo tempo, foram obrigados a se desfazer do “sistema monetário de Bretton Woods” assentado sobre o “padrão ouro-dólar”, que eles mesmos haviam criado e tutelado desde 1944; e foram surpreendidos pela Guerra do Yom Kippur, em 1973, que foi responsável pela explosão do preço do barril de petróleo que havia sido sustentado pelos americanos e que fora uma peça-chave do “sucesso econômico” dos anos 1950 e 1960.

Naquele momento, muitos analistas e estudiosos da economia política internacional anunciaram o fim da supremacia mundial norte-americana, mas a história tomou um rumo completamente diferente, depois que os Estados Unidos redefiniram sua estratégia geopolítica e econômica, ainda na década de 1970. Primeiro, se reaproximaram da China, e em seguida lançaram uma grande ofensiva estratégica contra a União Soviética (a chamada “segunda Guerra Fria”), assumindo, ao mesmo tempo, a liderança de uma nova política econômica internacional, de abertura e desregulação dos mercados financeiros, uma verdadeira “revolução neoliberal” que mudou a face do capitalismo e contribuiu decisivamente para a vitória americana na Guerra Fria. Uma vitória que permitiu aos Estados Unidos exercerem um poder sem precedentes na história moderna: um poder militar exibido na Guerra do Golfo de 1991/92, ao qual se somou um poder financeiro que se expandiu de forma geométrica até a crise econômica de 2008.

Nesse mesmo período de uma década e meia, a União Soviética foi destruída, a Alemanha foi reunificada e a OTAN expandiu sua presença até as novas fronteiras da Rússia. Foi o momento em que o “Ocidente” comemorou a vitória da “liberal-democracia” e da “economia de mercado”, e a derrota do “nacionalismo”, do “fascismo” e do “comunismo”. E muitos acreditaram que houvesse chegado a hora da “paz perpétua”, com o surgimento de um único poder político global capaz de tutelar uma ordem mundial orientada pelos antigos valores da “civilização europeia”.

Muito pouco tempo depois, entretanto, essa conjuntura mundial mudou radicalmente. Os Estados, com suas fronteiras e interesses nacionais, e as “grandes potências”, com suas guerras e políticas protecionistas, voltaram ao epicentro do sistema mundial e os grandes sonhos utópicos dos anos 90 foram relegados a um segundo plano da agenda internacional. Sobretudo depois do início das “guerras sem fim”, travadas pelos Estados Unidos e seus aliados da OTAN durante mais de 20 anos, concentradamente, nos territórios islâmicos do “Grande Médio Oriente”.

No campo econômico, depois da grande crise financeira de 2008, que começou pelo mercado imobiliário americano e alastrou-se por quase todo o mundo, atingindo o território europeu de forma extremamente destrutiva. A partir daí, o fantasma do “nacionalismo de direita” e do “fascismo” voltou a assombrar o mundo, e o que é mais surpreendente, penetrou na sociedade e no sistema político norte-americano, culminando com a vitória da extrema-direita nas eleições presidenciais de 2017.

Nas duas primeiras décadas do século XX, o mundo também assistiu à ascensão econômica da China, à reconstrução do poder militar da Rússia, e ao declínio da União Europeia dentro do sistema internacional. Mas não há dúvida de que o mais surpreendente foi a nova inflexão norte-americana, comandada pela administração republicana de Donald Trump, que a partir de 2017 passou a atacar ou desmoralizar as instituições responsáveis pela gestão da ordem “liberal cosmopolita” instaurada pelos próprios Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial.

Depois disso, o mundo foi atropelado pela pandemia da Covid-19, que paralisou a economia mundial e acelerou o processo de desconstrução das cadeias econômicas globais iniciado com a crise financeira de 2008. Processo de “desglobalização” que alcançou um ponto de “não retorno”, depois com a deflagração da Guerra na Ucrânia em 2022. Uma guerra que começou de forma local e assimétrica e depois se transformou numa das mais intensas desde a Segunda Guerra Mundial, uma verdadeira “guerra hegemônica”, envolvendo a Rússia, Estados Unidos e todos os países da OTAN.

A mesma guerra que voltou a eclodir na Palestina, em torno à Faixa de Gaza, em outubro de 2023, e deverá se multiplicar, com a militarização de outras disputas e conflitos regionais, que deverão se transformar em novas guerras, devido à ausência de critérios e de instrumentos de arbitragem aceitos pelas partes envolvidas em cada um desses conflitos.

Uma sucessão de inflexões e rupturas cada vez mais rápidas, que sinalizam uma situação de “desordem mundial” cada vez mais extensa e profunda, sem nenhum tipo explicação simples ou linear. Mas onde se destacam, sem dúvida, o declínio da hegemonia cultural europeia, dos últimos 300 anos, e o encolhimento da supremacia militar global dos Estados Unidos, dos últimos 100 anos.

A história

Para avançar no estudo e na interpretação da conjuntura histórica posterior à crise dos anos 70, decidimos alargar o horizonte da nossa pesquisa, recuando até o momento à formação do próprio “sistema interestatal”, que se consolidou na Europa, durante os Séculos XVII e XVIII. E mais tarde, para colocar em perspectiva o sistema europeu, estudamos os sistemas de “poder internacional” anteriores, que se formaram dentro do continente eurasiano, primeiro na Mesopotâmia e no Egito,[i] e depois na China e na Índia.

E foi por este caminho que chegamos até a primeira grande “ordem internacional” que se formou de fato no continente eurasiano, depois do fim do Império Romano e do Império Persa, nos séculos V e VI, d.C.. A ordem criada pela “expansão muçulmana”, entre os séculos VII e XI d.C., quando o islamismo se transforma numa força cultural unificadora, que conecta o mundo arábico com as civilizações asiáticas, e com todos os demais povos mediterrâneos do antigo Império Romano do Ocidente.[ii]

A pregação religiosa, o comércio e a diplomacia ocuparam papel decisivo neste processo expansivo do Islã, mas foram as guerras de conquista, sobretudo, que abriram as portas para o avanço e consolidação do seu sistema de poder que esteve submetido, primeiro, à tributação do Califado Assânida, de Damasco, e depois, do Califado Abássida, de Bagdá, muito antes que ocorressem as invasões turcas e a formação do Império Seljúcida, no século XI, e do Império Otomano, no século XIV.

É importante sublinhar que foi nesse espaço integrado pelas guerras de conquista, e que depois foi pacificado transitoriamente pelos poderes mongóis e turcos, que se estabeleceram e consolidaram as primeiras grandes rotas do comércio de longa distância, unindo a China à Europa, entre os séculos XI e XIV, passando pela Ásia Central, Ásia Menor, Norte da África e Mediterrâneo. Sobretudo depois que a dinastia Yuan, fundada pelos mongóis, pacificou a China e estimulou o comércio na direção do Ocidente, reabrindo e protegendo a “rota da seda” e suas conexões até as cidades e as grandes feiras europeias.

Quando se olha para a formação desses primeiros “sistemas internacionais eurasianos” e para seu “esgotamento” e desintegração, nos séculos XIV e XV, percebe-se que a formação e expansão posterior do “sistema interestatal europeu” não foi um “raio em céu azul”, nem nasceu no vazio.[iii] Seu primeiro impulso veio de suas próprias guerras intestinas, mas sua expansão para fora da Europa aproveitou as vantagens criadas pela desintegração do sistema anterior e retomou seus mesmos espaços, rotas e circuitos comerciais, só que agora liderados pelos Estados territoriais e pelos capitais privados que vinham sendo acumulados dentro da “península europeia”, entre os séculos XI e XV.

Neste sentido, é muito importante entender estas lutas e transformações políticas e econômicas dentro da “península europeia” durante o longo período da hegemonia islâmica, e de supremacia turca, para poder explicar a expansão vitoriosa dos europeus no período posterior durante os séculos XVI e XVII.

Com relação a estes “processos endógenos” ou intereuropeus, é importante destacar duas coisas fundamentais: primeiro, o fato de que o território europeu fosse pequeno e limitado por fronteiras militarizadas e intransponíveis, ao leste e ao sul, onde se estabeleceram os mongóis e os islâmicos; e segundo, que a Europa tivesse se transformado num mosaico de pequenas unidades territoriais “soberanas” após a decomposição do Império de Carlos Magno. Uma configuração geopolítica que forçou a competição e a guerra quase permanente entre esses pequenos feudos ou poderes territoriais, antes que eles começassem sua expansão marítima, contornando o “cerco otomano”.

Nessa luta contínua pela própria sobrevivência, como disse Norbert Elias, “quem não subia, caía, e a expansão significava o domínio sobre os mais próximos e sua redução ao estado de dependência”.[iv] E todas as unidades envolvidas tinham o mesmo objetivo estratégico: acumular a maior quantidade possível de terras, súditos, escravos e tributos, monopolizando, ao mesmo tempo, o acesso às novas oportunidades de acumulação de riqueza. Ou seja, todas as pequenas unidades desse sistema de poder europeu ambicionavam e lutavam pela mesma coisa: a conquista de um território cada vez amplo, unificado e centralizado.[v] Uma conquista que foi lograda, quase invariavelmente, através das guerras que se transformaram numa peça inseparável do novo sistema de poder que foi sendo forjado dentro da Europa, antes mesmo de sua “explosão” para fora do continente europeu.

Ao chegar neste ponto, nossa pesquisa deslocou seu foco para a expansão bélica e mercantil europeia, com a formação de seus primeiros impérios marítimos e coloniais ao redor do mundo. Seis ou sete “grandes potências” que conquistaram, dominaram e definiram as regras do sistema internacional nos últimos 500 anos. Com destaque para a Grã-Bretanha e seu império global, na segunda metade do século XIX, e para os Estados Unidos e seu império militar quase universal nos séculos XX e XXI. Um panorama mundial e uma configuração de forças internacionais que assumiram sua forma contemporânea através das duas grandes Guerras Mundiais do século XX, pelo menos até a crise dos anos 70 e 80, quando começam a se acelerar as transformações que foram o objeto direto da nossa pesquisa histórica das últimas décadas.

O método

O ensaio de Karl Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte, exerceu uma influência inicial muito importante sobre nosso método de pesquisa histórico-conjuntura. Por conta, sobretudo, de sua ideia de estudar e interpretar a conjuntura política francesa de meados do século XIX, à luz de uma teoria de longo prazo do modo de produção capitalista, e da formação das sociedades de classe. Mesmo quando tivéssemos a firme convicção de que o conceito de “interesse de classe” não dava conta, isoladamente, da multiplicidade de conexões materiais e analíticas estabelecidas pelo próprio Marx, entre a história estrutural e o tempo conjuntural da luta entre os partidos e grupos políticos que ocupavam o cenário parisiense, entre 1848 e 1851.

Para enriquecer este conceito e tentar superar suas limitações, procuramos sugestões complementares alternativas, na teoria da hegemonia e dos blocos históricos de Gramsci, na teoria das “autonomias relativas”, de Nicos Poulantzas, na teoria da ação racional e da dominação, de Max Weber,[vi] na teoria da guerra, de Von Clausewitz,[vii] na teoria dos “tempos históricos”, de Fernand Braudel,[viii] e no “método indiciário” do historiador Carlo Ginzburg.[ix]

Mas foi a prática e o exercício continuado da análise de conjuntura que nos permitiu desenvolver e ir aperfeiçoando os instrumentos e as categorias que utilizamos na nossa leitura e interpretação da conjuntura política e econômica, nacional e internacional, desde a publicação do nosso primeiro trabalho metodológico, em 1984.[x] Seguindo de perto a recomendação de Fernand Braudel, de que “não há nada mais importante do que a viva e íntima oposição, infinitamente repetida, entre o instante e o tempo lento”.[xi] E sofrendo uma forte influência da teoria e do método psicanalítico que também influenciou o “paradigma indiciário” do historiador italiano Carlo Ginzburg.

O método sugerido por ele na crítica da pintura, no diagnóstico das doenças, e na investigação do inconsciente, através da identificação de pistas, sinais e sintomas “que permitam captar uma realidade mais profunda e que não é experimentada diretamente”. Uma pesquisa “indireta, indiciária e conjetural”, que requer um profundo conhecimento dos pintores, dos pacientes, das “escolas”, dos “quadros nosográficos” e da teoria psicanalítica, para poder ler e descobrir, em cada sinal e sintoma, a pista que pode nos conduzir à identificação do autor, da doença ou da neurose.

A diferença é que, no caso da história e de suas conjunturas, o analista também precisa utilizar informações e conhecimentos extraídos da geografia, da demografia, da sociologia, e dos sistemas de valores culturais e civilizatórios. Deve trabalhar simultaneamente nas três temporalidades de que fala Fernand Braudel: o “tempo breve”, dos acontecimentos políticos imediatos, jornalísticos, “a mais caprichosa, a mais enganadora das durações”; o “tempo cíclico”, tipicamente econômico; e a “longa duração”, o tempo próprio das estruturas e das grandes permanências históricas.

Deve-se manter permanentemente alerta e atento porque os mesmos acontecimentos que desvelam as “permanências históricas” são os que podem estar assinalando, a cada momento, uma “mudança de rumo”, ou uma grande ruptura histórica que possa já estar em processo de gestação, sem que o pesquisador disponha de nenhuma lei que antecipe os caminhos do futuro e lhe facilite o diagnóstico do presente.

Por isso mesmo, para mover-se nesse campo extremamente complexo e instável, o pesquisador necessita de alguma visão teórica sobre a dinâmica do sistema político e econômico internacional. Só assim é possível identificar as “crises”, as “rupturas” e as “inflexões” que se escondem por atrás dos acontecimentos, hierarquizando e conectando os fatos e os conflitos, locais, regionais e globais, dentro de um mesmo esquema de interpretação. Esta teoria, entretanto, precisa ser testada e submetida a um exercício constante de “falsificação” de suas hipóteses, o que só pode ser feito através da própria análise conjuntural, de sucessivas análises de conjuntura, razão pela qual será sempre um “método” e uma “teoria em processo de construção”.

A teoria

Em grandes linhas, recapitulando, nosso programa de pesquisa partiu de um conceito abstrato e universal de “poder” para depois examinar suas relações históricas concretas com as guerras, e com o processo de formação e expansão do “sistema interestatal europeu”. Em seguida, investigou a forma como se deu o encontro do processo de centralização e expansão do poder territorial dentro do continente europeu, com o processo da criação do excedente econômico e da acumulação da riqueza capitalista, em particular depois da formação de seus primeiros estados e economias nacionais.

Vejamos, pois, alguns tópicos ou passos dessa pesquisa e construção teórica que segue em construção:

Sobre o poder

Do ponto de vista estritamente lógico, abstrato, e universal, o poder é uma relação assimétrica, hierárquica, e de disputa pelo próprio poder, e pelo controle monopólico de sua expansão. Isso é, certamente, uma definição tautológica, que se justifica, entretanto, porque se trata de um fenômeno, ou de um conflito, que apresenta a mesma estrutura e a mesma dinâmica fundamental, em qualquer plano, em qualquer tempo, ou em “qualquer mundo que possamos imaginar”.[xii]

Ainda nesse plano lógico e universal, pode-se deduzir que a relação de poder não pode ser binária, porque se fosse binária, seria uma disputa de “soma zero”, e no caso de vitória de um dos dois lados, despareceria a relação constitutiva do poder. Neste sentido, se pode afirmar que a “relação binária” de poder supõe a existência de um terceiro elemento, vértice, ou “jogador”, cuja necessidade lógica se impõe para que possa existir o próprio poder.

Além disso, o poder é “expansivo”, ou está em permanente expansão, e a energia que o move “para frente” não vem de fora, vem de sua própria disputa interna. É neste sentido que se pode afirmar que o poder é movimento, é fluxo permanente, muito mais do que um estoque de equipamentos, de qualquer natureza que seja. Na verdade, o poder só existe enquanto é exercido e acumulado: (P= +P= P’= +P = P’’….. ).

Por fim, a relação triangular do poder sugere que o poder é – de certa forma – “prisioneiro” de si mesmo, porque só pode existir dentro de um “sistema de poderes” no qual, cada “relação de poder” supõe a existência de outra “relação de poder”, e assim infinitamente. E desta forma, quando se olha para o conjunto, de dentro do próprio sistema, seja “para trás”, seja “para frente”, o que se divisa são sempre novas relações de poder, todas elas em movimento, o que nos indica que o conjunto desse sistema de poderes também se expande infinitamente.

Sobre o poder e a guerra

Da nossa perspectiva, portanto, o poder é essencialmente hierárquico e conflitivo, e sua disputa envolve uma competição permanente por mais poder, e pela conquista e controle monopólico das condições mais favoráveis para a expansão deste poder. Por isso, na história das relações entre as tribos, os povos, os impérios e os Estados nacionais, a luta pela imposição da vontade de uns sobre a dos outros incluiu a possibilidade e a “necessidade-limite” do recurso à guerra. Neste sentido, se pode afirmar que a guerra é indissociável do poder, ou de forma ainda mais dura, que não há como eliminar as guerras enquanto existir o poder.

Mas mesmo sabendo que as guerras sempre existiram, os números comprovam que elas adquiriram uma frequência, uma regularidade e uma intensidade muito maior a partir da formação “sistema interestatal europeu”, quando se transformaram na força motora de suas primeiras unidades de poder territorial, a partir dos séculos XII-XIII e, em particular, depois dos séculos XVI e XVII.

O historiador Charles Tilly estima que “de 1480 a 1800, a cada dois ou três anos iniciou-se em algum lugar um novo conflito internacional expressivo; de 1800 a 1944, a cada um ou dois anos; e a partir da Segunda Guerra Mundial, mais ou menos a cada quatorze meses. E a era nuclear não diminuiu a tendência dos séculos anteriores, e as guerras se fizeram mais frequentes e mortíferas”.[xiii] Donde extraía sua hipótese de que “foi a guerra que teceu a rede europeia de Estados nacionais, e a preparação para a guerra foi que obrigou a criação das estruturas internas dos Estados dentro dessa rede”.[xiv] Segundo Charles Tilly, essas guerras foram a principal atividade dos Estados nacionais europeus, consumindo cerca de 80-90% dos seus orçamentos, nos últimos cinco séculos.

Sobre o poder, o tributo e o “excedente”

Como o poder é “movimento”, e é sinônimo de “acumulação de mais poder”, seu exercício demanda recursos materiais ou, ainda, em termos econômicos, se diria que o “poder territorial” necessitam “financiar” sua reprodução “simples” e “ampliada”. Esses recursos foram adquiridos, nos primeiros tempos, através da conquista e do saque de novos territórios e populações, e depois, através do estabelecimento e da imposição de “serviços”, “taxas”, “dízimos” ou “tributos” – primeiro, de forma excepcional, durante as guerras, e depois, de forma cada vez mais regular e universal.

Por isso, o poder dos “príncipes” ou “soberanos” era calculado indiretamente pela quantidade de seus territórios conquistados, e pelo tamanho de suas populações submetidas ou escravizadas, mas também, e cada vez mais, com o passar dos séculos, por sua capacidade de impor o pagamento de tributos, rendas e serviços pelas populações estabelecidas dentro de seus “domínios”. Daí provinham os recursos indispensáveis à contratação de exércitos mercenários e à mobilização bélica dos seus vassalos, servos e camponeses, muito antes da formação dos primeiros exércitos regulares e profissionais.

Se não fosse pelas guerras, se poderia imaginar teoricamente que os produtores diretos pudessem sobreviver no nível da sua “reprodução simples”. Mas com as guerras e a imposição dos tributos, esses produtores diretos foram obrigados a aumentar sua produção e separar um “excedente” destinado ao pagamento de suas “dívidas fiscais” com os soberanos. Assim, pode-se deduzir que as guerras estiveram associadas diretamente com as primeiras formas de “excedente econômico”.

Para William Petty, os tributos existiam porque existia um excedente de produção disponível e tributável.[xv] Mas nos pareces mais adequado dizer que – do ponto de vista lógico – a verdadeira origem do “excedente” foi o poder dos “soberanos” e sua capacidade de definir e cobrar tributos, independentemente de qual fosse – naquele momento – a produtividade do trabalho e o tamanho da produção disponível em mãos dos produtores diretos.[xvi] “Essa “precedência lógica” do “poder” sobre a produção e a distribuição da riqueza é óbvia no período que vai dos séculos XI ao XVII. Mas, do nosso ponto de vista, ela se mantém mesmo depois do estabelecimento da produção capitalista e da consolidação do processo de concentração e centralização privada do capital. E esta é, sem dúvida, uma das premissas fundamentais da nossa visão teórica do “poder global”.

Sobre o poder, a moeda e a dívida pública

Com a multiplicação das guerras e das conquistas, aumentaram o custo de manutenção dos novos territórios e a dificuldade de remunerar as tropas e adquirir seu armamento. Essas novas condições estimularam a “monetização” dos tributos pagos pelas populações derrotadas aos vencedores das guerras. E assim surgiram as primeiras moedas, emitidas pelos “poderes soberanos” estabelecidos em distintas latitudes do território europeu, permitindo a substituição dos tributos e serviços pagos em espécie, facilitando as trocas à distância, e facilitando a quantificação dos primeiros “contratos econômicos” privados.

No entanto, as próprias guerras criaram a necessidade do câmbio entre a moeda dos conquistadores e a dos derrotados, e o “financiamento” das guerras, por cima da capacidade fiscal dos soberanos, obrigou à criação dos primeiros títulos da “dívida pública”. Estes acabaram se transformando no “território” privilegiado dos “financistas do rei” e dos “comerciantes-banqueiros”, que conquistaram o favor dos “príncipes”, junto com seu direito monopólico ao exercício da “senhoriagem monetária”, na relação entre as várias moedas e dívidas dos poderes territoriais europeus.

Esta monetização dos tributos permitiu uma transferência líquida e mais ágil de uma parte do excedente produzido pelos produtores diretos, para seus governantes e, indiretamente, para as mãos dos financistas e dos comerciantes, permitindo uma primeira separação, no longo prazo, dos dois circuitos: o da acumulação do poder e o da acumulação da riqueza privada.

Deste ponto de vista, a história real do capital e do capitalismo europeu não começou pelo “jogo das trocas”, nem mesmo pelo “mercado mundial”; começou pela “conquista” e “acumulação do poder”, e pelo estímulo produzido pelas guerras com relação a produção e multiplicação do excedente econômico, das trocas de bens e dos ganhos financeiros. Grandes lucros e ganhos financeiros que foram sendo acumulados pelos “financistas dos reis”, dando origem progressivamente às primeiras “casas bancárias” que foram sendo criadas à sombra dos poderes vitoriosos.

E foi assim que se forjou – desde a primeira hora do novo sistema político e econômico europeu – uma relação “atômica” entre a “compulsão expansiva do poder” e a “acumulação infinita do capital”. Uma relação que se manteve e aprofundou, através dos séculos, mesmo com o aumento da complexidade e da autonomia relativa dos “circuitos privados” da riqueza, com relação aos “circuitos públicos” do poder. Uma autonomia relativa que foi sempre, de fato, a contraface de uma dependência mútua que volta a se manifestar de forma mais nítida, a cada nova guerra ou grande crise econômica sistêmica. Uma verdadeira aliança, fundamental para a conquista conjunta de novas posições monopólicas, no mundo do poder e da riqueza.

Sobre os “mercados” e os “Estados-economias nacionais”

Numa conferência feita na Universidade John Hopkins, nos Estados Unidos, em 1977, Fernand Braudel se pergunta sobre a origem das “economias nacionais”, e responde a si mesmo, dizendo que: “[…] a economia nacional é um espaço político que foi transformado pelo Estado, devido às necessidades e inovações da vida material, num espaço econômico coerente, unificado, cujas atividades passaram a se desenvolver em conjunto numa mesma direção… Uma façanha que a Inglaterra realizou precocemente, a revolução que criou o mercado nacional inglês”.[xvii]

É muito importante agregar que foram exatamente esses Estados que acabaram se transformando na marca diferencial da “superioridade” europeia, com relação ao resto do continente eurasiano. Em particular depois que eles criaram suas “economias nacionais” – como ensina Fernand Braudel – e as transformaram num instrumento de poder com uma enorme capacidade de acumulação de riqueza. Até o século XV, o continente europeu era uma periferia econômica – quase um apêndice – do “mundo islâmico” e de sua gigantesca rede de conexões tributárias, militares e comerciais, que se estendia – como já vimos – do Mediterrâneo até o Sudeste Asiático.

E não está errado afirmar que foi exatamente o aparecimento desses “Estados-economias nacionais” que mudou o rumo dos acontecimentos, assinalando o início da ascensão europeia e sua expansão conquistadora na direção da África, da Ásia e da América. Fernand Braudel destaca a importância do “jogo das trocas” nesse processo de reorganização do poder dentro da Europa e de toda a geoeconomia eurasiana, mas acreditamos que o historiador Charles Tilly tem razão quando diz que foram as guerras, de fato, que construíram, em última instância, as fronteiras internas e externas desse novo “sistema de poder” que foi nascendo desde dentro da “península europeia”, antes de projetar seu poder e supremacia sobre o resto do mundo nos séculos XIX e XX.

Durante este longo período secular de acumulação originária do poder e da riqueza, estabeleceram-se relações incipientes entre o mundo das trocas e o mundo das guerras, mas só depois que os poderes e os mercados se “internalizaram” mutuamente é que se pode falar do nascimento de uma nova força revolucionária, com um poder de expansão global, uma verdadeira máquina de acumulação de poder e riqueza que só foi inventada pelos europeus: os “Estados-economias nacionais”.

Não existiu nenhum cálculo racional ou planejamento estratégico de longo prazo nesse movimento expansivo dos poderes locais […]. O que havia, eram “unidades de poder” que competiam pelo mesmo território, e foi essa luta que orientou o movimento expansivo dos ganhadores que depois seguiram lutando com novos vizinhos e competidores, num processo continuado de “destruição integradora”.[xviii]

É importante assinalar, entretanto, que desde o primeiro momento da formação dessas novas unidades de poder territorial, foi o seu conjunto e sua luta interna contínua que as obrigaram a desenvolver suas “economias nacionais”, como já havia acontecido com seus “sistemas tributários” e suas primeiras “casas financeiras”. E foi esse mesmo ambiente de competição e disputa que criou as condições originárias do próprio “modo de produção capitalista”, que foi um verdadeiro monopólio da Europa, pelo menos até o século XIX.

Com sua mercantilização progressiva de todos os bens de consumo e de produção, com a monetização universal das trocas, com o assalariamento do trabalho e a reprodução e valorização contínua do capital. E o mesmo se pode dizer com relação ao processo posterior de industrialização ou mecanização do processo produtivo, que operou de forma decisiva a favor da supremacia mundial da Europa, ao potenciar, de forma muito particular, a capacidade bélica dos europeus que se distancia do resto do mundo de forma cada vez mais acelerada a partir do século XVIII.

Sobre o “sistema interestatal capitalista”

Assim mesmo, é importante relembrar que nenhum desses “Estados-economias nacionais” operou sozinho, nem pode ser entendido isoladamente. Porque a força inovadora da Europa veio desse sistema de poder, e não de suas unidades individuais, tomadas separadamente. Sobretudo porque foi a competição e as lutas internas desse “sistema interestatal” que gerou sua energia propulsora, exatamente como dissemos ao discutir as premissas abstratas e universais de todos os sistemas de poder.

No caso europeu, como constatou Norbert Elias, “um número relativamente grande de unidades de poder se desviou do seu estado de equilíbrio e se aproximou de um Estado diferente, no qual um número cada vez menor de unidades de poder competia entre si”.[xix] E neste sistema, “quem não subia, caía, sendo que sua expansão significava o domínio sobre os mais próximos, e sua redução ao estado de dependência”.[xx] Uma regra válida para todos os territórios e Estados europeus que estavam obrigados a se expandir e conquistar, para poder preservar seu próprio território e seu próprio poder, aumentando-os continuamente, dentro dos limites de suas possibilidades materiais.

Mesmo assim, ao contrário do que previu Norbert Elias, ao contrário do que passou na China, por exemplo, na Europa, este processo de concentração e centralização competitiva do poder reduziu o número das unidades envolvidas nesta competição, mas não deu origem à criação de um único império, com a consequente submissão de todos a um só Estado vencedor. Isso corrobora e reforça a tese de que o poder diferencial do sistema interestatal europeu veio da competição contínua entre suas unidades territoriais, contíguas, relativamente pequenas, e armadas com os mesmos instrumentos de poder.

Sobre a hierarquia e a “ordem internacional”

As lutas internas da Europa não deram origem a um só império, mas seu processo de concentração e centralização do poder produziu uma ordenação hierárquica de seus feudos, prelazias, e reinos, que se multiplicaram depois da desintegração do projeto imperial de Carlos Magno, no século IX, e depois do fracasso do projeto de construção de uma “monarquia universal”, do Papa Inocêncio III, no século XIII.

E desde o início dessa história, e em particular depois dos séculos XV e XVI, houve um grupo de territórios e de Estados que monopolizaram as posições superiores desta hierarquia internacional. Um pequeno “clube” de cinco ou seis Estados que mantinham entre si relações políticas e econômicas complementares, mas que ao mesmo tempo estavam em estado de guerra quase permanente. E mesmo dentro desse grupo das “grandes potências”, sempre existiu uma hierarquia na qual se destacaram, em distintos momentos, Portugal, o Império Habsburgo, França, Holanda, Inglaterra, Rússia etc.

A melhor forma de representar graficamente o movimento hierárquico e expansivo desse sistema é como se fosse um “cone deitado” que se comporta como a cauda de um grande cometa. O pequeno grupo situado no topo de hierarquia se comportaria como se fosse o próprio cometa, que avança aumentando suas dimensões e alargando, ao mesmo tempo, o espaço ocupado por sua cauda, que seria – metaforicamente – o conjunto do “sistema interestatal”. Como se o sistema de poder territorial criado pelos europeus, e em particular o seu “sistema interestatal”, se comportasse como um verdadeiro “universo em expansão”, contínua e infinita.

A dinâmica conjunta desse sistema supõe que seus “líderes” nunca interrompam seu movimento expansivo e estejam sempre à frente dos processos de inovação organizacional e tecnológica, econômica e militar, com relação a todos os demais membros do sistema. Isso que explica melhor por que as “grandes potências” são de fato, e ao mesmo tempo, “ordenadoras” e “desordenadoras” do sistema interestatal. Porque elas só conseguem ordenar e impedir o caos sistêmico, expandindo-se, inovando e mantendo suas posições relativas, e ao mesmo tempo, elas só conseguem manter suas posições relativas inovando e mudando as regras e regimes do próprio sistema, e impedindo o acesso de seus concorrentes às inovações que elas controlam.

Por isso também, a disputa pela “ponta tecnológica” foi se transformando, através dos séculos, na principal causa das grandes “guerras hegemônicas” pela liderança do sistema. O paradoxal, entretanto, é que se alguma dessas potências líderes parasse de se expandir, ou se dedicasse apenas à “estabilização do status quo”, o mais provável é que o sistema se desordenasse e entrasse em processo de entropia e desintegração caótica.

Ao mesmo tempo, observa-se também que através da história, toda vez que essa “pulsão expansiva” das grandes potências aproxima o sistema de uma situação “unipolar”, com a monopolização do poder por uma única potência, ele entra em crise, fragmenta-se e desemboca em algum tipo de “grande guerra” em que se disputa a definição das próprias regras que deverão comandar a nova “ordenação hierárquica” do sistema que deverá se impor depois da guerra, e da consagração dos seus Estados vitoriosos. Algo assim aconteceu com o Império Britânico, na entrada do século XX, e parece estar acontecendo de novo, neste início do século XXI, com o império militar global dos Estados Unidos.

Sobre o imperialismo e a internacionalização do capital

Pelo que vimos até aqui, pode-se deduzir e afirmar que o “imperialismo” foi uma característica permanente e universal de todos os grandes poderes vitoriosos, através da história. Pode ter sido em alguns momentos mais intenso do que em outros, mas em última instância, foi uma força e uma tendência que nasceu em última instância, da própria “pulsão expansiva” de todo e qualquer poder territorial, dos grandes impérios do passado, como das grandes potências do “sistema interestatal europeu”.

Mas não há dúvida de que a expansão imperialista dos Estados europeus adquiriu uma natureza distinta e mais poderosa, sempre e quando movida pela “aliança” ou combinação de que já falamos, entre a “compulsão expansiva” dos Estados e de suas economias nacionais e capitalistas. A partir daí, o poder abriu portas para a acumulação do capital, e o capital se transformou numa arma a serviço do poder, e os dois juntos se transformaram numa verdadeira “arma explosiva” posta a serviço da supremacia europeia sobre o resto do mundo. Pelo menos até o momento em que o “resto do mundo” aprendeu e reproduziu o modelo europeu e universalizou o sistema interestatal capitalista, com quase todas as suas características originárias.

Neste ponto vale relembrar a lição de Fernand Braudel, quando ele ensina que o “o capitalismo só triunfa quando se identifica com o Estado, quando é o Estado”, porque seu objetivo são os lucros extraordinários que se conquistam através de posições monopólicas, e essas posições monopólicas se conquistam através do poder. Para Braudel, o “capitalismo é o antimercado”,[xxi] porque o mercado é o lugar das trocas e dos “ganhos normais”, enquanto o capitalismo é – por excelência – uma obra dos “grandes predadores” e de seus “ganhos anormais”. A acumulação do poder cria situações monopólicas, e a acumulação do capital “financia” a luta por novas fatias de poder.

Deve-se atentar, neste ponto, para mais um paradoxo aparente que se manifesta na própria “internacionalização” das economias nacionais e de suas grandes corporações privadas, que fortalecem seus próprios Estados e economias nacionais, na medida em que se internacionalizam. Na verdade, a expansão competitiva dos “Estados-economias nacionais” europeus criou impérios coloniais e internacionalizou a economia capitalista, mas nem os impérios, nem o capital internacional eliminaram os Estados e as economias nacionais.

Pelo contrário, o que viu e pode afirmar é que o movimento de internacionalização das grandes potências e de seus capitais nacionais contribui para o desenvolvimento do capitalismo em escala global, mas ao mesmo tempo fortaleceu cada vez mais seus próprios Estados e economias de origem, reproduzindo e ampliando as assimetrias e desigualdades do sistema interestatal.

Sobre a dinâmica assimétrica do desenvolvimento capitalista

Os centros econômicos mais dinâmicos do sistema de “Estados-economias nacionais” capitalistas geram uma espécie de “rastro econômico” que se alarga a partir de sua própria economia nacional, e pode beneficiar mais ou menos o desenvolvimento de outras economias nacionais, dependendo das circunstâncias.[xxii] O sistema, entretanto, pode ter múltiplos centros econômicos, e inúmeras periferias e dependências, que podem variar através do tempo sem determinar necessariamente a trajetória seguida pelo desenvolvimento econômico de cada país em particular.

Até porque existem vários tipos possíveis de liderança econômica que podem produzir o mesmo “efeito rastro” dentro de suas “zonas de influência”, dando origem a vários “centros” e “periferias”, e a vários tipos de “dependência”, com dinamismos e trajetórias muito diferentes entre si. Não há dúvida que a busca constante dos “ganhos monopólicos” pelos Estados e seus capitais privados estreita o caminhos dos seus concorrentes e reproduz as suas desigualdades, mas mesmo com grande dificuldade, essas desigualdades podem ser modificadas, dependendo da estratégia de poder internacional de cada Estado nacional.

Ou seja: “[…] em todos os níveis e espaços do sistema, se reproduzem as mesmas regras e tendências do seu núcleo europeu originário, ainda que seja de forma atenuada pelo tempo e pelas condições materiais, geopolíticas e estratégicas de cada Estado. Mas em qualquer caso, não há como uma economia nacional se expandir simplesmente através do “jogo das trocas”, nem há como uma economia capitalista se desenvolver de forma ampliada e acelerada, sem que esteja associada a um Estado com um projeto de acumulação do poder e de transformação ou modificação da ordem internacional estabelecida”.[xxiii]

Por isso também, quando se analisa o desenvolvimento capitalista das economias nacionais de sucesso, constata-se a existência de um denominador comum entre todos elas: pertenceram a Estados que enfrentaram grandes desafios coletivos e/ou tiveram que disputar o poder com inimigos externos extremamente competitivos. Em todos os casos, esses desafios ou ameaças operaram como “bússolas estratégicas” orientando seus investimentos públicos e privados na direção da inovação e do controle monopólico da ponta tecnológica.

Em muitos destes casos, esses desafios contribuíram para uma grande mobilização nacional em torno a objetivos que foram aceitos por vários atores que aceitam submeter seus interesses particulares às diretrizes de uma estratégia conjunta e de longo prazo comandada por um “bloco de poder” hegemônico, que se mantém a despeito das mudanças de governo.

Max Weber sintetiza este ponto de vista, de forma brilhante e concisa quando diz que, “em última instância, os processos de desenvolvimento econômico são lutas de dominação” e, portanto, são processos que envolvem uma luta permanente de poder, e pelo poder.[xxiv]

Sobre as “explosões expansivas”

Cada unidade do “sistema interestatal capitalista” pode ascender e descender individualmente, do ponto de vista do seu poder, riqueza e prestígio internacional, e o mesmo pode acontecer com a supremacia mundial das grandes potências. No entanto, o sistema interestatal – como um todo – nunca parou de crescer e expandir seus espaços e fronteiras, geográficas, econômicas, geopolíticas, culturais ou civilizatórias, há cerca de mil anos.

Assim mesmo, é possível identificar, nessa história milenar, a existência de grandes “explosões expansivas” dentro do sistema, que vão muito além dos “ciclos hegemônicos” de que falam algumas teorias internacionais. Primeiro, observa-se um aumento da “pressão competitiva” dentro do sistema; e depois, uma grande “onda expansiva”, com o alargamento das fronteiras internas e externas do próprio sistema, além da multiplicação de suas unidades de poder internas.

O aumento prévio da “pressão competitiva” é provocado, em geral, pelo “imperialismo” de suas grandes potências, e pelo aumento do número e intensidade dos conflitos, entre as demais unidades do sistema. Essa pressão competitiva, por sua vez, acaba encontrando um “escape” ou “saída” na forma de uma “fuga para frente” de todo o sistema que amplia suas fronteiras e redefine suas hierarquias internas de poder e riqueza.

A primeira vez que isto ocorreu foi no “longo século XIII”, entre 1150 e 1350. O aumento da “pressão competitiva” na Europa foi provocado pelas invasões mongóis, pelo expansionismo das Cruzadas e pela intensificação das guerras “internas” na Península Ibérica, no norte da França e na Itália. E a “explosão expansiva” que seguiu transformou-se numa espécie de big bang desse “universo” que começa então a expandir-se de forma ininterrupta.

A segunda vez aconteceu entre 1450 e 1650. O aumento da “pressão competitiva” foi provocado pelo expansionismo do Império Otomano e do Império Habsburgo, e pelas guerras da Espanha, com a França, com os Países Baixos e com a Inglaterra. Foi quando nasceram os primeiros Estados europeus, com suas economias nacionais e uma capacidade bélica muito superior à das unidades soberanas do período anterior.

A terceira vez foi entre 1790 e 1914. O aumento da “pressão competitiva” foi provocado pelo expansionismo francês e inglês, dentro e fora da Europa, pelo nascimento dos Estados americanos e pelo surgimento, depois de 1860, de três potências políticas e econômicas – Estados Unidos, Alemanha e Japão – que cresceram muito rapidamente e revolucionaram a economia capitalista e o “núcleo central” das grandes potências.

Por fim, desde a década de 1970, está em curso uma quarta “explosão expansiva” do sistema mundial. Nossa hipótese é que – desta vez – o aumento da pressão dentro do sistema mundial está sendo provocado pela estratégia expansionista e imperial dos Estados Unidos, depois dos anos 1970, pela multiplicação dos Estados soberanos do sistema, que já são cerca de 200, e finalmente, pelo crescimento vertiginoso do poder e da riqueza dos Estados asiáticos, e da China, em particular.[xxv]

Neste momento da história, a inclusão da civilização chinesa dentro “sistema interestatal”, o retorno da Rússia à condição de superpotência energética, o vertiginoso crescimento da Índia e a desintegração acelerada da ordem internacional imposta pelos vitoriosos, depois da Segunda Guerra Mundial, permitem prever que essa nova “fuga para frente” – que está em pleno curso – será longa e pode redesenhar radicalmente as bases de sustentação do próprio sistema de poder territorial criado pelos europeus.

Sobre a “governança mundial”

Sempre existiram projetos e utopias cosmopolitas propondo algum tipo de “governança global” para o conjunto do sistema interestatal, mas, na prática, todas as formas conhecidas de “governo supranacional” experimentadas até hoje foram uma expressão e imposição do poder e dos valores das potências vitoriosas em cada momento da história. Desde os séculos XVII e XVIII, esses valores e regras de governança do sistema mundial foram definidos e impostos por um grupo muito pequeno de países europeus – que Edward Carr chamava de “círculo dos criadores da moralidade internacional”[xxvi] – basicamente, França, Inglaterra, e Estados Unidos, em ordem cronológica.

No século XIX, um número cada vez maior de Estados europeus seguiu o caminho da Revolução Francesa, de separação dos Estados em relação à fé e às instituições religiosas. Mesmo assim, quase todas as grandes potências europeias mantiveram sua convicção a respeito da superioridade dos valores e da “civilização cristã europeia” com relação aos demais povos, culturas e civilizações mundiais. Uma convicção que reaparece, mesmo que de forma enviesada, na crença iluminista na superioridade da “razão” e da “ciência” moderna dos europeus. Uma convicção que explica, aliás, o grande paradoxo que existe no pensamento de Immanuel Kant, que supunha que a “paz perpétua” entre os povos só poderia ser alcançada através da guerra, e de uma guerra que lograsse impor os valores europeus universalmente.

Muitos consideraram que havia chegado a hora da “paz perpétua” proposta por Kant, exatamente depois do fim da Guerra Fria e da arrasadora vitória dos Estados Unidos e seus aliados na Guerra do Golfo de 1991/92, que teria sido também uma vitória dos valores preconizados pelas três grandes potências ocidentais “criadoras da moralidade internacional”. Com este objetivo, foram realizadas várias conferências na década de 1990, como a Convenção dos Direitos Humanos promovida pela UNESCO e realizada em 1993, e também The Declaration Towards Global Ethics, formulada pelo Parlamento da Religiões do Mundo, realizada em 1993 e assinada por mais de 200 líderes de mais de 40 diferentes tradições e comunidades espirituais.

Tudo indicava ser um momento de grande convergência ética e ideológica entre os povos, após uma vitória militar arrasadora dos Estados Unidos. Mas muito pouco tempo depois o mundo entrou num novo período de “guerras sem fim”, declaradamente, da “comunidade internacional” contra o “terrorismo global”, mas na prática, de fato, uma guerra das “potências ocidentais” contra seu velho inimigo milenar, o “mundo islâmico”.

E depois de vinte anos de “guerra ao terrorismo”, ainda aconteceu algo mais surpreendente do “ponto de vista kantiano”: os próprios Estados Unidos se voltaram contra o sistema de regras, instituições e valores que eles haviam construído e tutelado depois da Segunda Guerra Mundial, e que haviam reafirmado depois de sua vitória na Guerra Fria. Um fenômeno surpreendente que só consegue ser explicado quando se abandonam as teorias clássicas do poder e das relações internacionais, e se compreende a natureza infinitamente dinâmica e expansiva das “grandes potências”, e do próprio “sistema interestatal”, como estivemos vendo, do nosso ponto de vista teórico do “poder global”.

Sobre a “paz”

Uma vez definidas as premissas e hipóteses fundamentais em que se fundamenta nossa visão do “poder global”, é inevitável concluir que dentro do “universo em expansão” que se formou na Europa, a partir do “longo século XIII”, e que só se globalizou plenamente no final do século XX, nunca houve nem haverá “paz perpétua”, pela simples razão de que esse “universo” se hierarquiza e ordena através da sua própria expansão e, portanto, através de sucessivas crises e guerras periódicas.

A utopia da “paz perpétua” e o projeto de lográ-la através de uma federação ou de algum tipo de poder global que conseguisse impor seus valores, critérios e seu próprio arbítrio, a todos os povos e países da Europa e do mundo, foram propostos pela primeira vez pelo diplomata francês Abbé de Saint Pierre, em 1712, sendo retomados posteriormente pelo filósofo alemão Immanuel Kant, em 1794.

A mesma ideia e projeto reaparecem em vários filósofos e teóricos internacionais do século XX, como é o caso de Edward Carr, Raymond Aron e todos os defensores da “teoria da estabilidade hegemônica” formulada pela econômica política norte-americana da segunda metade do século XX. No entanto, a experiência internacional não parece corroborar o otimismo eurocêntrico desses pensadores, porque a maioria das grandes guerras travadas nos últimos cinco séculos de hegemonia mundial europeia foi iniciada pelos próprios Estados europeus – em particular, pelos países que lideram esse sistema internacional.

No entanto, existe uma razão mais profunda e permanente que explica o insucesso de todas essas utopias e projetos, como percebeu o holandês Hugo Grotius,[xxvii] pai do Direito internacional, logo na primeira hora do sistema interestatal, no início do século XVII: o simples fato de que dentro de um sistema com múltiplos Estados, existirão sempre múltiplas “inocências”, ou múltiplos valores, critérios e argumentos diante de cada conflito, e de cada disputa entre estes mesmos Estados. Ou seja, olhando o mesmo problema de um outro ângulo, dentro desse sistema internacional, toda “paz” que for conquistada através de uma guerra será sempre “injusta” do ponto de vista dos derrotados, e todas as guerras serão sempre “justas” do ponto de vista de quem as inicia.

Deve-se concluir, portanto, que a ideia e o projeto de uma “paz perpétua” é uma verdadeira impossibilidade lógica dentro deste nosso sistema interestatal, um verdadeiro “círculo quadrado”. Simplesmente porque não existe nem existirá jamais algum critério de arbitragem internacional que seja “neutro” ou “objetivo”, porque todos os critérios possíveis estarão sempre comprometidos com os valores e objetivos de alguma das partes envolvidas nos conflitos entre os Estados nacionais, em particular quando sejam conflitos que envolvam as grandes potências do sistema.

Neste sentido, concluindo, só seria possível conceber uma paz verdadeiramente universal e duradoura se todos os povos, os impérios e Estados nacionais aceitassem um acordo como o que foi proposto pelos persas aos bizantinos, em algum momento do século VI: que os dois impérios abrissem mão de suas respectivas reivindicações de dominar o mundo, e abrissem mão do seu desejo de impor uns aos outros seus valores, culturas ou religiões.[xxviii]

Esta é a verdadeira razão por que a “paz” se transformou na única e autêntica utopia universal que restou no século XXI: de toda a espécie humana, de todos os povos, culturas, de todas as suas religiões e civilizações.

*José Luís Fiori é professor emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O poder global e a nova geopolítica das nações (Boitempo) [https://amzn.to/3RgUPN3]

Referência

José Luís Fiori. Uma teoria do poder global. Petrópolis, Editora Vozes, 2024, 670 págs. [https://amzn.to/3YBLfHb]

Notas


[i] O primeiro tratado de paz internacional de que se tem registro, assinado entre os exércitos egípcios e hititas, foi o Tratado de Kadesh, assinado em 1274 a.C. depois da batalha do mesmo nome, travada às grandes margens do rio Kadesh, localizado atualmente no Líbano.

[ii]The rise of Islam in the Arabian Peninsula and the subsequent rapid Arab conquest of the entire region in the seventh century was clearly one of the most decisive events in the world history. The Islamic religion and the Arabic language with wich it is indissolubly linked served as a powerful unifying cultural force from the Atlantic coast to the Himalayas” (Findlay, R.; O’Rourke, K. Power and Plenty. Trade, War, and the World Economy in the Second Millenium. Princeton: Princeton University Press, 2007, p. 15).

[iii] Abu-Lughot (1989, p. 46).

[iv] Elias, N. O processo civilizador. vol. 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. p. 94.

[v] Fiori (2021, p. 27).

[vi] Weber, M. Economia y Sociedad. Mexico: Fundo de Cultura Econômica, 1977. Vol. I, Parte 1.

[vii] Clausewitz, C. Von. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 1979.

[viii] Braudel, F. História e Ciências Sociais. Lisboa: Editora Presença, 1972, cap 1.

[ix] Ginzburg, C. Mitos, Emblemas e Sinais. Morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

[x] Fiori, J.L, “Por uma economia política do tempo conjuntural”, TD n 44, IEI/UFRJ, fevereiro de 1984, texto incluído nesta obra com o título de “Conjuntura, ciclos, e longas durações”

[xi] Braudel (1972, p. 10).

[xii]En realidad, una tautología no puede ser una hipótesis pues no se halla en estado de problema, su verdad se conoce de antemano […] Una tautología es verdadera em cualquier mundo posible que podamos imaginar y no implica ningún compromiso acerca de cómo es la realidad en la que estamos inmersos” (Klimovsky, G. Las desventuras del conocimiento científico. Una introducción a la epistemología. Buenos Aires: AZ Editora, 2011, p. 167).

[xiii] Tilly, C. Coerção, Capital e Estados Europeus, 1990-1992. São Paulo: Edusp, São Paulo, 1996, p. 123.

[xiv] Tilly, 1996, p. 33.

[xv] “Para William Petty, os tributos foram criados porque existia um “excedente de produção” disponível, quando na verdade os tributos foram criados porque existia um soberano com poder de proclamá-los e impô-los a uma determinada população, independentemente da produção e da produtividade do trabalho no momento da proclamação do imposto Ou seja, do ponto de vista lógico, foi só depois da proclamação dos tributos que a população foi obrigada a separar uma parte de sua produção para entregá-la ao soberano, e foi assim que se criou o “primeiro excedente’” (Fiori, J. L. O poder global e a nova geopolítica das nações. São Paulo: Editora Boitempo, 2007, p. 20).

[xvi] “A precedência lógica do poder sobre a produção e a distribuição da riqueza é óbvia no período que vai do século XI ao XVII. Mas ela se mantém, mesmo depois da formação do modo de produção capitalista e da consolidação do processo de concentração e centralização privada do capital Crescem a autonomia dos mercados e o papel da competição intercapitalista, mas aumenta cada vez mais o papel do poder político na expansão vitoriosa e internacionalizante dos capitais nacionais, na administração das grandes crises financeiras, na ponta da inovação tecnológica, e na contínua e silenciosa função do crédito e do gasto público indispensáveis à expansão agregada das economias nacionais” (Fiori, 2007, p. 16).

[xvii] Braudel, F. A Dinâmica do Capitalismo, Rocco, Rio de Janeiro, 1987, p. 82.

[xviii] Fiori, J. L. Formação expansão e limites do poder global. In: Fiori, J. L. (Org.). O Poder Americano. Petrópolis: Editora Vozes, 2004, p. 22.

[xix] Elias, N. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p. 94.

[xx] Elias, N. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. p. 94.

[xxi] Braudel, F. O jogo das trocas. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 403; e A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, cap. 2.

[xxii] Fiori (2007, p. 33-34).

[xxiii] Fiori, J. L. Conjeturas e história. In: Fiori, J. L. História, estratégia e desenvolvimento. Petrópolis: Editora Vozes, 2014, p. 28.

[xxiv] Weber, M. Escritos Políticos. Vol. I. México: Folio Ediciones, 1982, p. 18.

[xxv] Fiori, J. L. “O sistema interestatal capitalista nas primeiras décadas do século XXI. In: Fiori, J. L.; Medeiros C.; Serrano, F. O mito do colapso do poder americano. São Paulo: Editora Record, 2008, p. 22-23.

[xxvi] Carr, E “The Twenty Years´ Crisis, 1919-1939”, Perennial, New York, 2001, p. 80.

[xxvii] Grotius, H. O direito da guerra e da paz. Ijuí: Unijuí, 2005, p. 40.

[xxviii] Conta a história que “o emissário que Khurso – o imperador persa – enviou até os bizantinos apresentou seu apelo de intervenção junto com uma fórmula sem precedentes de uma paz duradoura entre os dois impérios. A paz poderia ser mantida se os dois impérios simplesmente abrissem mão de suas respectivas reivindicações de dominar o mundo, ou seja, do seu universalismo” (Cline, E. H.; Graham, M. W. Impérios Antigos: da Mesopotâmia à Origem do Islã. São Paulo: Madras Editora, 2012, p. 392).

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