As relações China-América Latina

Imagem: Kenneth Surillo
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Por TIAGO NOGARA*

A comandante-em-chefe do Southcom, Laura Richardson, vem intensificando a frequência e agressividade de suas críticas aos projetos de cooperação envolvendo a China e a América Latina

1.

Nos últimos meses, a comandante-em-chefe do Southcom, Laura Richardson, vem intensificando a frequência e agressividade de suas críticas aos projetos de cooperação envolvendo a China e a América Latina. No Aspen Security Forum, em julho, Laura Richardson mencionou a crescente aproximação dos governos latino-americanos com a China, afirmando que “eles não veem o que os Estados Unidos estão trazendo para os países”, e que “tudo o que enxergam são os guindastes chineses, o desenvolvimento e os projetos da Iniciativa do Cinturão e Rota”. Ela sugeriu que o lançamento de um “Plano Marshall” para a região poderia ser uma resposta para conter a influência de iniciativas como a Iniciativa do Cinturão e Rota, também conhecida como a “Nova Rota da Seda”.

Ao comentar sobre os projetos de infraestrutura com participação chinesa, Laura Richardson afirmou que esses empreendimentos seriam supostamente planejados para “uso dual”, ou seja, “não apenas para uso civil, mas também para atividades militares”. Além disso, durante a cerimônia de abertura da South American Defense Conference (SOUTHDEC) em Santiago do Chile, em agosto, declarou existir uma contradição entre o que chamou de “Time Democracia” e os interesses de “governos autoritários e comunistas que tentam tomar o máximo que podem aqui no Hemisfério Ocidental – operando sem respeito às leis nacionais ou internacionais”.

Mais recentemente, a representante de Comércio dos Estados Unidos, Katherine Tai, afirmou que o Brasil deveria ter cuidado ao considerar eventual adesão à Nova Rota da Seda. Mantendo o mesmo tom crítico dos comentários de Laura Richardson, disse que “Soberania é fundamental, e essa é uma decisão do governo brasileiro. Mas eu encorajaria meus amigos no Brasil a olhar a proposta com as lentes da objetividade, com as lentes da gestão de risco”.

Essas declarações dão continuidade ao progressivo resgate pelos Estados Unidos das narrativas oriundas dos tempos da Guerra Fria, sob a alcunha da “Nova Guerra Fria”, que supostamente estaria contrapondo governos democráticos e autoritários mundo afora. Tal estratégia discursiva é adotada com grande ênfase especialmente na América Latina, revigorando princípios da antiga Doutrina Monroe, e em compasso com os esforços americanos mais amplos de contenção à China. E não casualmente, aumentam de volume e intensidade justamente diante do crescente aprofundamento dos laços de cooperação e amizade entre chineses e latino-americanos.

2.

Do ponto de vista global, é cada vez mais visível tal radicalização da postura americana frente à China ao longo dos últimos anos. Desde o lançamento pelo governo de Barack Obama da estratégia Pivô para a Ásia em 2012, sucessivos governantes americanos têm tomado medidas mais drásticas tais como a “guerra comercial” levada adiante durante o governo de Donald Trump, e as recentes configurações do Quad e do AUKUS com Joe Biden, intensificando o cerco diplomático e militar à China.

Na América Latina, se configurou com as constantes declarações de funcionários de alto escalão da burocracia americana questionando as intenções dos projetos de cooperação envolvendo a China, e com o impulsionamento de falaciosas narrativas tais como as dos supostos “imperialismo” ou “neocolonialismo” chineses na região, ou da repetitiva farsa da “armadilha da dívida”.

Tal arsenal de críticas envolveu desde ataques à presença de companhias chinesas nas imediações do canal do Panamá até a pesada ação diplomática americana para tentar bloquear a entrada da Huawei e instalação de tecnologia 5G nos sistemas de telecomunicações latino-americanos. Todas essas movimentações foram envoltas pelas acusações acerca de supostos interesses de cunho geopolítico existentes por detrás das iniciativas chinesas, em linha com o paradigma do que os acadêmicos servis a Washington têm chamado de “Nova Guerra Fria”.

Entretanto, a tragédia se repete como farsa, e os apelos americanos parecem estar surtindo cada vez menores efeitos nas decisões de governos e dos povos latino-americanos, que têm optado constantemente por aprofundar os vínculos cooperativos com a China. Os chineses já detêm a posição de maior parceria comercial da América do Sul e segunda maior da América Latina. Mais de 20 países latino-americanos e caribenhos já aderiram à Nova Rota da Seda, e recentemente a Colômbia vem demonstrando fortes intenções de seguir esse mesmo caminho. Além disso, têm sido crescentes os investimentos produtivos chineses na região, especialmente aqueles vinculados às energias renováveis e a obras de infraestrutura, contribuindo substancialmente para a potencialização das economias locais.

O que chama a atenção é que, na contramão da vazia retórica da “Nova Guerra Fria”, tal cooperação tem se mantido independentemente das orientações ideológicas dos governantes latino-americanos. Ainda que think tanks e meios de comunicação ianques insistam em instigar a narrativa do anticomunismo e exortar cautela diante dos vínculos com a China, mesmo governos latino-americanos de viés conservador e de direita têm feito questão de aprofundar as relações bilaterais de seus países com os chineses. Tais opções claramente não se dão por afinidades ideológicas, mas tampouco ocorrem somente por um pragmatismo restrito à dimensão econômica. Elas envolvem outra dimensão constantemente presente no modus operandi da diplomacia chinesa, que tem sido muito apreciada na América Latina, região tantas vezes afetada pela agressiva intervenção das grandes potências: o respeito mútuo e a não-intervenção nos assuntos domésticos de terceiros.

Nesse sentido, é no mínimo irônico que as acusações de supostos interesses predatórios e ocultos das iniciativas chinesas na América Latina partam justamente de Washington, que há tantas décadas insiste em tratar a região como seu jardim, não tolerando que os países tomem decisões soberanas que contrariem os interesses estadunidenses.

Atentando para a história da política hemisférica, ainda mais surpreendente é o fato de Laura Richardson falar na necessidade de um “Plano Marshall” para conter os esforços chineses na região. Afinal, a aplicação do Plano Marshall na Europa dos tempos da Guerra Fria esteve diretamente conectada justamente à intervenção nos assuntos domésticos dos países recipientes: a ajuda financeira era condicionada à exclusão dos partidos comunistas das coalizões governamentais.

3.

Curiosamente, durante a Guerra Fria, foi recorrente que governantes latino-americanos apelassem por maior cooperação e ajuda econômica dos Estados Unidos para a região. Na contramão de tais pedidos, a ênfase americana na América Latina residiu muito mais nas dimensões políticas e ideológicas, e especialmente na cooperação militar, tais como ilustraram a criação da Organização dos Estados Americanos (OEA) e do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR).

Enquanto a primeira serviu constantemente como plataforma para forjar a unidade dos governos “democráticos” contra a “ameaça comunista” – tal como ilustrou a exclusão de Cuba da organização em 1962 –, o segundo afiançava um pacto militar contra a ingerência de potências externas ao continente americano.

Presidente do Brasil entre 1956 e 1961, Juscelino Kubitschek não era comunista, e tampouco de esquerda. Mas preocupado com a escassez de ajuda econômica proveniente dos Estados Unidos, que apenas falavam em ideologia e reproduziam discursos macartistas, chegou a propor o que batizou de Operação Pan-Americana (OPA), para a qual demandava investimentos americanos para materializar o que seria praticamente um Plano Marshall para as Américas.

Alinhando-se com as premissas do capitalismo ianque, afirmava que tal demanda convergia com os esforços de luta “contra a ameaça materialista e antidemocrática do bloco soviético”, alegando vontade de “estar ao lado do Ocidente, mas sem desejar constituir o seu proletariado”. Em linhas curtas, basicamente indicava que, se os Estados Unidos realmente queriam evitar novas revoluções sociais na América Latina, deveriam atentar para a ajuda econômica como principal meio para combater as mazelas sociais do subdesenvolvimento e melhorar a qualidade de vida dos povos da região.

Mas, apesar da subserviência ideológica demonstrada, Juscelino Kubitschek não logrou obter a cooperação que tanto queria. Frente às constantes negativas para o fornecimento de ajuda econômica e crédito, o presidente chegou até mesmo a romper as relações do Brasil com o Fundo Monetário Internacional (FMI). O que, na verdade, Juscelino Kubitschek e o Brasil receberam, assim como o restante dos países latino-americanos, foi o patrocínio encoberto dos americanos à guerra ideológica e ao terrorismo de Estado.

O golpe militar de 1964, com nítido apoio dos Estados Unidos, resultaria na cassação do mandato de Juscelino Kubitschek, então senador. As parcas ajudas econômicas americanas estavam direcionadas nesse contexto às “fronteiras quentes” da Guerra Fria, tais como a Europa Ocidental e o Extremo Oriente, e não para a América Latina, onde o controle se daria emulando a velha política do Big Stick. Nem mesmo a ditadura militar argentina, de extrema direita e radicalmente anticomunista, foi poupada do pragmatismo utilitário de Washington: quando em confronto com a Inglaterra na Guerra das Malvinas, foi abandonada em razão da prioridade americana pelos vínculos com os britânicos, ignorando o TIAR e demonstrando que o pacto de defesa só era conveniente quando servil aos interesses dos Estados Unidos.

A tal cooperação econômica de alto nível também jamais chegou. Nos anos 1960 e 1970, o que realmente preponderou foi o patrocínio às ditaduras de segurança nacional latino-americanas, que com a prática de tortura e assassinatos de opositores em nada se assemelhavam aos ideais “democráticos” que supostamente norteavam as ações de Washington. Nos anos 1980 e 1990, a assistência econômica oriunda dos órgãos financeiros multilaterais foram condicionadas à adoção das medidas neoliberais do Consenso de Washington, com a abertura econômica desmedida levando ao progressivo desmonte dos parques industriais e das redes de proteção social dos países da região, e o consequente espraiamento do desemprego e da miséria.

Na primeira década dos anos 2000, as principais razões para a recuperação do crescimento econômico latino-americano residiram exatamente na crescente sinergia econômica com a China, que após a entrada na Organização Mundial do Comécio passou rapidamente a se tornar uma parceira comercial indispensável para os países da região. Gradualmente, essa cooperação transcendeu a dinâmica meramente comercial, tangenciando a construção de entendimentos mais densos a partir de instrumentos tais como o Fórum CELAC-China.

A recente adesão massiva de países latino-americanos e caribenhos à Nova Rota da Seda demonstra claramente essa crescente conexão, e os crescentes investimentos nas áreas de infraestrutura e energias renováveis aumentam ainda mais as expectativas acerca dos vínculos.

Consequentemente, o conjunto das declarações de Laura Richardson, Katherine Tai e outros funcionários de alto escalão americanos não encontrará ressonância entre os latino-americanos e caribenhos. Afinal, tais afirmações não possuem lastro na materialidade das relações entre China e América Latina, e tampouco coadunam com a verdadeira postura adotada pelos Estados Unidos na política hemisférica das últimas décadas.

Os laços entre chineses e latino-americanos avançam em comum acordo, sem ingerências em assuntos domésticos uns dos outros, e com acordos de cooperação que transcendem o âmbito comercial, perpassando também investimentos, ciência e tecnologia, e intercâmbios culturais e educacionais.

A China e a América Latina têm um passado comum de resistência às mazelas do colonialismo e das políticas predatórias das grandes potências, e um presente de fortalecimento de instrumentos de cooperação multilaterais alinhados com a perspectiva de uma ordem internacional multipolar.

Não serão as palavras desmedidas dos herdeiros dos flibusteiros de outrora que ceifarão tal sinergia, pois as narrativas da Nova Guerra Fria e a retomada da Doutrina Monroe indubitavelmente não cabem nas aspirações soberanas dos povos da América Latina.

*Tiago Nogara é pesquisador visitante na Universidade Sun Yat-sen, China.


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