Por NESTOR BORGES *
Comunicação apresentada para a pesquisa UNESCO em São Paulo, 1951
Só nos resta, como pensava Tobias Barreto, uma segunda abolição.
Exmo. Sr. dr. Alfred Métraus, Prof. Roger Bastide, Prof. Florestan Fernandes, Sr. Jorge Teixeira, minhas senhoras e meus senhores. (…)[i]
Antes de iniciar minhas modestas considerações sobre o assunto para o qual fui inscrito, quero prestar ao Prof. Roger Bastide minhas sinceras homenagens pelo título de “Doutor Honoris Causa”, que merecidamente lhe foi conferido pela douta Universidade de São Paulo, certo de que interpreto os sentimentos dessa grande multidão anônima que aqui tenho a honra de representar.[ii]
Ao lado desse diploma, o Prof. Roger Bastide, por direito de conquista, poderá também ostentar o título de brasileiro honorário, diante de sua valiosa contribuição aos estudos sobre o nosso meio social.
Nas páginas admiráveis de seus estudos sobre a poesia afro-brasileira, a personalidade de Roger Bastide me era familiar e, quando aqui estive, pela primeira vez, aprendi a conhecê-lo melhor através da impossibilidade filosófica com que apreciou, nas minhas palavras desordenadas, a atitude que mais convinha às observações sociológicas.
Vi então, nesse gesto, as mãos seguras que traçaram as magníficas interpretações que sintetizam as angústias de nosso meio social nas palavras amarguradas de poetas como Caldas Barbosa, Gonçalves Dias, Luiz Gama, Cruz e Souza e Lino Guedes, esse grande amigo cuja perda ainda lamentamos e a quem presto o culto da minha veneração e respeito.
Assim, pelo muito que produziu e ainda produzirá em prol do aprimoramento de nossa cultura, o Prof. Roger Bastide merece os nossos melhores aplausos, razão pela qual peço ao auditório, para o mestre insigne, uma vigorosa salva de palmas (Palmas).
Inscrito para falar sobre um assunto cuja importância excede às fracas possibilidades de meu entendimento, peço a douta e culta plateia que aguarde o desenvolvimento das breves considerações que pretendo fazer em torno de um problema que vem preocupando a consciência universal, para depois então, em cordial debate, estabelecermos um sentido próprio às nossas conclusões.
Trata-se do problema racial e das questões que dele derivam, entre as quais se incluem os preconceitos das mais variadas espécies, problema que, por certo, encontrará na UNESCO, entidade sob cujo patrocínio aqui nos reunimos, os meios adequados para a sua solução.
O Brasil, de acordo com os fatos que presidiram a sua formação histórica, poderá cooperar na solução desse magno problema com elementos que representam os próprios fundamentos da sua existência, porque, desde os tempos coloniais, foi com base nos elementos de origem africana, reduzidos à escravidão, que se processou toda a evolução econômica, social e política de nosso povo.
Evolução econômica porque o escravo representava um valor intrínseco que se reproduzia; evolução social porque o escravo também contribuía para o aumento das populações, notadamente quando os seus descendentes apresentavam características da raça branca; evolução política porque o aumento das populações favorecia não só a posse de um grande território como também a defesa desse mesmo território contra constantes invasões estrangeiras.
Para se ter uma ideia desse valor sob o ponto de vista econômico e político, basta citar o reconhecimento de nossa independência pela Inglaterra, que chegou também a cobrar esse reconhecimento a Portugal sob a condição de ser abolido o tráfico africano.
A atitude da própria sociedade brasileira que, apesar da sua formação étnica, moral e espiritual, procurou impedir por todos os meios no seu alcance a abolição do tráfico e da escravatura, provocando com isso a queda do próprio regime, demonstra, claramente que a propriedade servil era a base econômica que mantinha a organização social e política do país.
Diante desses fatos e das consequências que deles decorreram é que me permito examinar a questão do preconceito de raça ou de cor, cuja solução, aqui entre nós, está nos próprios fatos dos quais tais consequências se originaram.
Essa situação não passou desapercebida ao grande Luiz Gama que, reconhecendo em cada liberto um escravo em potencial, organizou, aqui em São Paulo, uma caixa com o objetivo de angariar fundos não só para a libertação do escravo, como também para a sua manutenção no período de adaptação no seio da população livre.
De igual modo doutrinava Tobias Barreto, citado por Roger Bastide no rodapé de sua obra sobre a poesia afro-brasileira.[iii] Fugindo ao problema racial, admitia o grande filósofo que o negro e o mulato seriam em geral d’uma condição econômica muito baixa e precisariam de uma segunda libertação.
Na interpretação dos magníficos exemplos que nos legou Luiz Gama, e na interpretação das magníficas lições de Tobias Barreto, é que devemos buscar os elementos necessários à solução de um problema que, além de seu aspecto nitidamente nacional, é de natureza quase que exclusivamente econômico.
Sem excluir a responsabilidade moral da sociedade brasileira, em face de sua própria formação espiritual, o problema que aqui analisamos no seu aspecto econômico é de inteira responsabilidade do Estado.
Proporcionando à sociedade um meio de enriquecimento ilícito e deixando no abandono os elementos que contribuíram para esse enriquecimento, o Estado é duplamente responsável pelo nosso desequilíbrio social e político.
Essa responsabilidade ainda mais se agrava ao atentarmos que o Estado, além de se beneficiar com a manutenção da propriedade servil, procurou, após a abolição, a melhor forma de recuperação para a sociedade que dela também se beneficiou, situação que em nada condiz com os princípios de igualdade jurídica inseridos em nossa Constituição.
De fato, as providências adotadas a fim de prover a lavoura de novos braços, providências que nunca terminam, gastando-se com isso quantias fabulosas, deviam ter ditado os homens responsáveis pelos destinos do país, providências idênticas no sentido de amparar a grossa massa de trabalhadores libertos, proporcionando-lhes também os meios necessários para a sua recuperação.
Nada disso se fez até hoje, decorridos 63 anos, em uma época em que a estabilidade econômica é a base de todo o progresso social, só nos resta, como pensava Tobias Barreto, uma segunda abolição.[iv]
Se a primeira nos deu o título de cidadão com os direitos civis e políticos que dele decorrem, cabe à segunda promover a nossa emancipação econômica que, bem analisado, pertence a quase todo o Brasil.
Desse modo, definimos de forma bem clara e precisa a nossa ideologia política, ou melhor, a nossa doutrina política, toda ela baseada nos princípios que nortearam a campanha abolicionista, movimento que realizou o milagre de reunir sob a mesma bandeira a maioria da nação brasileira.
A UNESCO, se o assunto for de sua competência, pedimos que recomende aos países que dela participam, notadamente aos países americanos, duas pequenas proposições: (i) que esses países façam constar de suas respectivas constituições os elementos que contribuíram para a sua formação étnica; (ii) que os elementos menos favorecidos na formação histórica desses países sejam contemplados com providências de ordem econômica que possibilitem a sua recuperação ou a sua valorização social.
É o que me cumpria dizer. Tem a palavra o distinto auditório. (Palmas).
*Nestor Borges militou no movimento negro, apresentou comunicação na Convenção Nacional do Negro Brasileiro (1945), colaborou com a Revista Senzala, foi membro da Associação Palmares e participou da Pesquisa Unesco em São Paulo (1951), coordenada por Roger Bastide e Florestan Fernandes.
Referências
BASTIDE, Roger (1944). A poesia afro-brasileira. São Paulo: Livraria Martins Editora. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/grupoicaro/files/2016/05/Poesia-afro.pdf
BORGES, Nestor (1951). Situação econômica do negro brasileiro: razões e consequências. In. DÉCIMA PRIMEIRA MESA REDONDA da pesquisa sobre o preconceito racial no Brasil, realizada na FFCL da USP. Mimeo, 17 nov. 1951, p. 12-15. Documento disponível no arquivo: PDF 02.04.4531 (Observação em Massa – Situação Grupal). Coleção Especial do Fundo Florestan Fernandes (BCo/UFSCar).
CAMPOS, Antônia (2014). Interfaces entre sociologia e processo social: a Integração do negro na sociedade de classes e a pesquisa Unesco em São Paulo. Dissertação (Mestrado em Sociologia) — Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Disponível em: https://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/928554
CONVENÇÃO Nacional do Negro Brasileiro (1946), Senzala: revista mensal para o negro, n. 1, p. 10. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=845094&pesq&pagfis=10
ENCERRADA ONTEM a semana da abolição (1952), Diário da Noite, 14 de maio de 1952, p. 2. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=093351&pasta=ano%20195&pesq=&pagfis=24346
FERNANDES, Florestan (2017). Significado do protesto negro. São Paulo: Expressão Popular; Fundação Perseu Abramo.
FERNANDES, Florestan (2008). A integração do negro na sociedade de classes: o legado da “raça branca”, volume 1. São Paulo: Globo.
FORMATURA (1954), O Novo Horizonte, julho-agosto de 1954, p. 3. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=845108&pasta=ano%20195&pesq=&pagfis=87
MARQUES, Elenir (2019). Grupo Palmares em Porto Alegre na década de 1970: o papel de mulheres negras ativistas. Dissertação (Mestrado em Sociologia) — Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/201760#:~:text=O%20grupo%20Palmares%2C%20conhecido%20majoritariamente,menos%20cultural%20e%20mais%20pol%C3%ADtico
NEGRO NO SUL não quer mais Abolição como data da raça (1973), Jornal do Brasil, 13 de maio de 1973, p. 27. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_09&pasta=ano%20197&pesq=&pagfis=9384
QUEIROZ, Maria (1974). Homenagem a Roger Bastide, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 15, p. 5-7. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/69844
SEMANA DA ABOLIÇÃO (1952), Diário da Noite, 10 de maio de 1952, p. 2. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=093351&pasta=ano%20195&pesq=&pagfis=24289
SILVEIRA, Oliveira (2003). Vinte de novembro: história e conteúdo. In. GONÇALVES, Petronilha; SILVÉRIO, Valter (orgs.). Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, p. 21-42. Disponível em: https://etnicoracial.mec.gov.br/images/pdf/publicacoes/educacao_acoes_afirmativas.pdf
Notas
[i] Pesquisa, edição e notas de Diogo Valença de Azevedo Costa (UFRB) e Paulo Fernandes Silveira (FEUSP e GPDH-IEA). Esse texto reproduz a participação de Nestor Borges (1951) na 11ª mesa redonda da pesquisa sobre o preconceito racial no Brasil, documento que se encontra na Coleção Especial do Fundo Florestan Fernandes, na Biblioteca Comunitária da UFSCar.
[ii] Esta reunião da pesquisa UNESCO sobre o preconceito racial no Brasil ocorreu na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), da USP, em 17 de novembro de 1951, 10 dias depois de Roger Bastide receber o título de “Doutor Honoris Causa”, pela mesma faculdade da Universidade de São Paulo (QUEIROZ, 1974). Como em outras reuniões da pesquisa UNESCO realizada em São Paulo, esta reunião não foi presidida pelos coordenadores Roger Bastide e Florestan Fernandes, mas por Jorge Prado Teixeira (1925-1960), jovem intelectual negro, “Secretário da Comissão para o Estudo das Relações Raciais durante a pesquisa UNESCO em São Paulo” (CAMPOS, 2014, p. 328).
Uma parte dos militantes do movimento negro que participou da pesquisa UNESCO também militava no Partido Socialista (CAMPOS, 2014). Existem poucas informações na imprensa sobre Nestor Borges, sabemos que ele fez uma comunicação na Convenção Nacional do Negro Brasileiro e que foi um dos colaboradores da revista Senzala (CONVENÇÃO, 1946). Uma nota do jornal O Novo Horizonte, de 1954, indica que Borges participou da Associação Palmares (FORMATURA, 1954). Entre os dias 11 e 13 de maio de 1952, junto a outras entidades do movimento negro, a Palmares promoveu um ciclo de conferências sobre a abolição, do qual participaram Roger Bastide e Florestan Fernandes (SEMANA DA ABOLIÇÃO, 1952; ENCERRADA ONTEM, 1952).
[iii] No livro A poesia afro-brasileira, Bastide afirma: “Tobias Barreto, já prevendo uma situação social posterior, fez todo o possível para mudar o problema racial em problema social. Depois da inevitável liberação do trabalho servil, o Brasil terá um só povo, e vimos que o poeta teve a visão dessa unidade nacional; mas o negro e o mundo serão em geral duma condição econômica muito baixa e precisarão, pois, de uma segunda liberação” (1944, p. 50, nota 3).
[iv] A tese da Segunda Abolição, sugerida por Tobias Barreto, foi desenvolvida em termos sociológicos por Roger Bastide e Nestor Borges. Em 1964, em A integração do negro na sociedade de classes, Florestan Fernandes realça o potencial político dessa tese.
Nos anos 1970 e 1980, A integração do negro na sociedade de classes foi um livro importante para o movimento negro. Duas militantes do Grupo Palmares, Anita Abad e Helena Machado, destacam a influência desse livro na formação do grupo (MARQUES, 2019).
Uma reportagem do Jornal do Brasil, de 1973, apresentou para todo o país a principal demanda do grupo: “Negro no Sul não quer mais Abolição como data da raça” (NEGRO NO SUL, 1973, p. 27). Numa análise da história dessa demanda, que envolveu uma série de manifestações do Movimento Negro Unificado (MNU), Oliveira Silveira (2003), um dos fundadores do Palmares, relata as lutas que levariam o 20 de novembro a se tornar, com Dilma Rousseff, dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra (2011), e com Lula, feriado nacional (2023), 50 anos após a demanda ser divulgada pelo Jornal do Brasil.
Num artigo publicado, originalmente, em 1988, Florestan liga a tese da Segunda Abolição à luta do movimento negro socialista pelo reconhecimento do 20 de novembro: “Do próprio negro dependia uma ‘Segunda Abolição’, que o convertesse em um cidadão investido dos requisitos econômicos, sociais, culturais e morais para assumir os papéis históricos que ainda se reduziam a uma ficção legal. (…) O significado da data, que brota da consciência negra e da compulsão libertária coletiva dos negros mais firmes e decididos nas pugnas raciais igualitárias, atravessa e afirma Palmares e Zumbi. O 13 de Maio se contrapõe ao 20 de Novembro. (…) A liberdade não é uma dádiva, mas uma conquista” (2017, p. 53-54).
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