Fascismo – história e teoria

Aliado Jay Phillips, Indignação, 2016
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Por DEMIAN BEZERRA DE MELO*

Prefácio do livro recém-editado de David Renton

O fascismo segundo o enfoque dialético

No futuro essa última década da história brasileira será vista como período de crise política profunda, e um dos seus sintomas importantes será a impregnação do léxico no debate público de termos que assinalam a profundidade desta, como é a própria noção de crise, mas também golpe de Estado, militarização, fanatismo político, populismo etc. Além destas palavras é possível verificar a regularidade do uso da palavra fascismo, e não é exagero assinalar que essa inflação é por outro lado um fenômeno global.

A ascensão de figuras como Donald Trump nos Estados Unidos, o crescimento de partidos com raízes no fascismo do período entre guerras, como o Reagrupamento Nacional de Marine Le Pen, ou a presença constante de neonazistas ou discursos de normalização do nazismo entre políticos do Alternativa para a Alemanha trouxeram o assunto fascismo ao debate público nos últimos anos. No Sul Global, fenômenos como o bolsonarismo brasileiro, ou o regime de Modi na Índia, o governo de Javier Milei na Argentina etc., têm levado inúmeros analistas a traçarem paralelos com os movimentos e processos políticos liderados por Mussolini e Hitler há um século na Europa.

Como em inúmeras ocasiões desde o fim da Segunda Guerra Mundial (quando o fascismo histórico foi derrotado militarmente), o uso do epíteto de fascismo tem sido impreciso, muitas vezes alarmista ou meramente um palavrão. Para os estudiosos do assunto esse uso sem critério incomoda, mas sabemos que o fascismo não é um assunto meramente acadêmico. Para a maior parte dos marxistas, por exemplo, trata-se de um problema político inscrito na sociabilidade capitalista.

E para qualquer pessoa interessada em viver num ambiente em que existam liberdades democráticas (não só os marxistas, evidentemente), o fascismo é um desafio político enorme, especialmente quando, embora usos imprecisos sejam constantes, a existência de algo que com seriedade pode ser considerado fascista desponta no horizonte político.

Nesse contexto é de enorme importância a publicação no Brasil do livro Fascismo – história e teoria, do historiador marxista David Renton. Em primeiro lugar por ser um livro de um sério estudioso do assunto, com intervenção relevante no debate acadêmico, mas também com uma posição política antifascista muito clara.[i] Em segundo, pela própria densidade do livro, que vai além de um simples resgate das reconhecidamente relevantes análises de marxistas contemporâneos do fascismo histórico, como Clara Zektin (1857-1933), Walter Benjamin (1892-1940), Antonio Gramsci (1891-1937), Leon Trotsky (1879-1940) e Daniel Guerin (1904-1988).

Com profundo conhecimento da historiografia, David Renton é capaz de apontar também a relevância desses autores à luz do desenvolvimento das pesquisas nas últimas décadas, além de também direcionar críticas a algumas influentes abordagens acadêmicas.

Os marxistas diante do fascismo

Nestas páginas não se encontra a redução do fascismo à genérica afirmação do dirigente comunista búlgaro Georgi Dimitrov (1882-1949), segundo a qual o fascismo “é a ditadura terrorista aberta dos elementos mais chauvinistas e mais imperialistas do capital financeiro”. Este livro ajuda a compreender como essa fórmula esquemática de resto apenas serviu como justificativa para a adoção de frentes amplas pela Internacional Comunista a partir do VII Congresso, em 1935, isso depois dessa mesma Internacional ter orientado os comunistas alemães a evitar qualquer plano de lutas com a socialdemocracia, classificada de “socialfascista”.

David Renton demonstra que a contribuição do marxismo neste assunto esteve ligada a alguns autores que conseguiram entender a natureza dessa forma particular de contrarrevolução em sua processualidade histórica, produzindo um instrumental analítico consistente e sem dúvida atual. Não deixa, todavia, de direcionar severas críticas a outros marxistas cujas interpretações relativamente pecaram ou por serem esquerdistas, ou inversamente mais à direita. Opostas em vários aspectos, ambas produziram além de análises erradas, embasaram posições políticas equivocadas que no final das contas facilitaram o trabalho dos fascistas.

Em defesa do marxismo como teoria capaz de fornecer o melhor instrumental para a explicação sobre o assunto, David Renton expõe aspectos importantes da teoria política marxista, buscando informar o leitor de que esta teoria vai muito além de um vulgar determinismo econômico.

Além de aspectos importantes para o entendimento da política no mundo capitalista, presente nos escritos de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), David Renton também passeia pela imaginação do romancista socialista Jack London (1876-1916), falecido antes do fascismo propriamente surgir, mas que prefigurou alguns de seus aspectos em seu romance O tacão de ferro.

É muito interessante que antes de entrar nas elaborações propriamente sobre o fascismo ele recupere a análise de Vladímir Lênin (1870-1924) sobre as Centúrias Negras, movimento paramilitar antissemita que emergiu na Rússia após a derrota da Revolução de 1905 e que praticou pogroms (massacres) de judeus, dando apoio ao regime czarista. Em artigos publicados naquele contexto, o futuro líder da Revolução Soviética assinalou a relação de conivência entre as estruturas de repressão do regime czarista, especialmente a polícia, e o movimento das Centúrias. Todavia, o futuro dirigente da revolução soviética também assinalou o grau de autonomia deste fenômeno russo, assim como a sua capacidade de conseguir apoio popular, prefigurando situação que será vista no fascismo tout court.

O objetivo de David Renton é demonstrar que os marxistas possuíam já um arsenal teórico capaz de produzir análises consistentes sobre o processo político, antes mesmo que o fascismo propriamente dito despontasse no horizonte do século XX. Vladímir Lênin, que morreu pouco depois do triunfo dos fascistas italianos, buscou mobilizar a Internacional Comunista para que elaborasse uma análise sobre aquele novo fenômeno. Imediatamente ele decepcionou-se com o relato feito pelo então representante dos comunistas italianos na Internacional, Amadeo Bordiga (1889-1970), que simplesmente considerava o fascismo indiferente na história da Itália e sua classe dominante liberal. Por isso delegou à revolucionária alemã Clara Zektin (1857-1933) a tarefa de elaborar um relatório sobre o assunto.[ii]

Clara Zetkin é autora pioneira de uma interpretação dialética do fascismo, distante do esquerdismo de Amadeo Bordiga e da posterior vulgata divulgada pela Internacional Comunista a partir do VI congresso de 1928, que reeditou aspectos do esquema míope de Bordiga e que culminou na ideia de que a socialdemocracia era uma espécie de “irmã gêmea do fascismo” (a mencionada teoria do “social-fascismo”).

David Renton discute como essa interpretação dialética se desenvolveu entre certa cepa de autores marxistas, mas aponta que o marxismo que predominou na Internacional Comunista e na Internacional Socialista (por caminhos diferentes) produziu leituras paupérrimas que acabariam por desarmar o movimento operário o qual, por isso mesmo, foi incapaz de resistir à consolidação da ditadura fascista na Itália, e mais tarde à ascensão do nazismo na Alemanha.

Seguindo a classificação clássica David Beetham,[iii] David Renton assinala a existência, portanto, de três tendências entre os marxistas daquela época: (i) uma teoria esquerdista, que hegemonizou a Internacional Comunista principalmente a partir de 1928 até 1935; (ii) uma teoria à direita, que acabaria predominando na socialdemocracia alemã, e na Internacional Socialista; (iii) e a teoria dialética, que é justamente aquela valorizada por David Renton.

A reconstrução do debate marxista sobre o fascismo é uma das grandes contribuições de Fascismo – história e teoria. Autores como o marxista húngaro Giulio Sas (1893-1943), o socialista reformista italiano Giovanni Zibordi (1870-1943), o trabalhista inglês John Strachey (1901-1963) são trazidos à luz por Renton, que encontra espaço para comentar, ainda que lateralmente, algumas elaborações de revolucionários anarquistas que combateram o fascismo na Itália, com Luigi Fabbri (1877-1935) e na Espanha, com o histórico dirigente da Confederación Nacional del Trabajo (CNT) Buenaventura Durruti(1896-1936), assinalando as semelhanças e (evidentemente) as diferenças que esses autores libertários tiveram com marxistas acerca desse inimigo comum.

Discute as teorias paupérrimas produzidas pelos burocratas soviéticos, que tornaram o uso do termo fascismo mero instrumento político, uma tendência que permaneceu após o fim da Segunda Guerra Mundial. Em contraponto, mesmo naquela parte do mundo onde o marxismo era apresentado como uma mera ideologia estatal, autores marxistas produziram importantes contribuições.

David Renton destaca as elaborações seminais do grande filósofo húngaro Georg Lukács (1885-1971), e sua influência em historiadores notáveis como Mihálvy Vajda (1935-2023), que fugiram dos esquemas economicistas predominantes nos manuais soviéticos, e buscaram explicações para o fascismo nas suas bases filosóficas e culturais.[iv]

Na mesma toada ele valoriza os trabalhos de autores que buscaram inspiração no frutífero diálogo do marxismo com a psicanálise freudiana, e que animaram trabalhos extremamente interessantes como A psicologia de massas do fascismo, de Wilhelm Reich (1897-1957) ou dos autores ligados à Escola de Frankfurt, como Erich Fromm (1900-1980), que discutiu a alegria perversa dos fascistas em infligir sofrimento aos seus inimigos.

Por fim, nessa nova edição o autor amplia o escopo dos autores marxistas que podem contribuir na compreensão do fascismo, incorporando as seminais reflexões do poeta, militante anticolonialista e teórico do movimento da negritude Aimé Césaire (1913-2008). O principal ponto da contribuição desse autor é a iluminação da raiz da violência fascista naquela usada pelo imperialismo europeu contra os povos coloniais, ponto que David Renton explora em outra seção do livro onde discute a linha de continuidade entre o massacre do imperialismo alemão contra o povo Herero na Namíbia como tendo constituído a convicção de nazistas sobre a adequação daquele método de genocídio.

Contribuição à historiografia: crítica ao consenso culturalista

Para a defesa da atualidade do enfoque marxista, especialmente da mencionada abordagem dialética, David Renton inicia o livro adentrando em diversos debates historiográficos importantes no campo de estudos sobre o fascismo, discutindo tópicos aprofundados por historiadores nas últimas décadas e algumas controvérsias. Por exemplo, sobre as razões do Holocausto de judeus na Segunda Guerra Mundial, os autores dividem-se entre o que grande historiador britânico Tim Mason classificou como intencionalistas versus funcionalistas: os primeiros, que entendem o evento como resultado do lugar do antissemitismo na ideologia nazista; os segundos, como uma reação não planejada aos acontecimentos (embora o antissemitismo não seja negado).

No entanto, o principal alvo de sua crítica é a uma das mais influentes correntes do campo de estudos sobre o fascismo nas últimas décadas, que direcionou suas pesquisas ao estudo das ideias e da ideologia fascista. Representada por autores como Roger Griffin, Roger Eatwell e Stanley Payne (que são de certo modo são tributários dos estudos pioneiros do alemão Ernst Nolte e do israelense Zeev Sternhell) é sem dúvida a vertente historiográfica mais influente na dominante literatura acadêmica de língua inglesa.[v] Embora esses autores não estejam em acordo em todos os pontos, como Renton assinala, alguns deles chegaram a proclamar a existência de um “consenso” em torno à definição do fascismo como uma ideologia política.

Essa vertente buscou estabelecer uma definição básica, mínima, do que seria o fascismo a partir de suas características discursivas. Na mais influente dessas tentativas, o historiador britânico Roger Griffin definiu o fascismo como “um gênero de ideologia política cujo núcleo mítico em suas várias permutações é uma forma palingenética do ultranacionalismo populista”, [vi] sendo o termo “forma palingenética” referente à sensação de declínio da nação cujos fascistas prometem regenerar.

Esse como outros tipos ideais (weberianos) elaborados por esses historiadores parte dos discursos produzidos pelos próprios fascistas, onde observamos a presença constante dessas visões míticas sobre o passado nacional (como no mito da romanidade, no fascismo italiano, ou no culto dos cavaleiros teutônicos como parte de uma suposta origem nacional germânica, no caso dos nazistas) que deve ser restaurado por uma nova elite política não contaminada pela corrupção intrínseca ao “sistema”.

Esse instrumento heurístico pode ter sua utilidade, ainda que seus resultados possam pecar por parcialidade. Por exemplo, nessa definição proposta por Griffin são excluídos os elementos contra os quais os fascistas lutam (o comunismo, o movimento operário, o estado de direito, os aspectos políticos do liberalismo, a democracia etc.), cabendo perguntar se uma tipologia que exclui as contradições tem alguma utilidade científica.[vii]

Em alguns autores dessa tendência, como o israelense Zeev Sternhell, o estudo do discurso fascista o leva a hipervalorizar uma referência presente nas formulações de alguns deles: as ideias provenientes do revisionismo do marxismo proposto por George Sorel (1847-1922), teórico francês que foi uma influência importante na corrente do movimento operário que ficou conhecida como sindicalismo revolucionário.[viii]

É fato que adeptos dessa corrente aderiram ao fascismo na Itália, França e Bélgica, combinando de forma particular suas concepções sindicalistas com visões ultranacionalistas.[ix] É possível afirmar que a grande contribuição de Sternhell é ligada a uma entre outras derivas ideológicas que forneceram elementos para o discurso fascista, e que, por sinal, é um elemento ausente no nazismo, que (não por acaso) é excluído pelo historiador israelense do seu conceito de fascismo.

No caso desse historiador a preferência pelo estudo das ideias chega ao paroxismo deste preferi estudar as ideias dos fascistas franceses que nunca chegaram ao poder por justamente não terem contaminado sua ideologia pelas exigências da prática política. Indo ao limite, Sternhell compra o discurso das fontes ao ponto de propor que o fascismo estava “além da direita e da esquerda”,[x] posição amplamente rejeitada na imensa maioria da produção historiográfica e na ciência política, onde a localização do fascismo na extrema direita é basicamente um consenso.

Mais prudentes nessa corrente historiográfica, Griffin, Eatwell e Payne buscaram comprovar seus conceitos testando-os nos casos dos regimes de Mussolini e Hitler. Mas seja como for, ao ficarem aprisionados no discurso das suas fontes, historiadores participantes dessa corrente tendem a desconsiderar a prática dos fascistas antes e depois de chegarem ao poder.

Diga-se de passagem que o que essa influente corrente historiográfica denomina ideologia política tem pouco a ver com a forma como os marxistas tratam a noção de ideologia, seja como um discurso necessário que inverte a realidade, seja como um conjunto de ideias produzidas pela vida material.[xi] Trata-se tão somente de uma noção descritiva e classificatória.

A propósito, se é verdade que David Renton foi um dos pioneiros na crítica a essa corrente historiográfica, pela mesma época o historiador (não marxista) Robert O. Paxton publicou um artigo em direção parecida,[xii] e em alguns anos publicou um livro onde desenvolveu extensamente sua explicação do fascismo a partir de seu desenvolvimento histórico.[xiii] Usando principalmente os dois casos mais emblemáticos, o italiano e o alemão, Paxton discute como o fascismo se desenvolveu desde que primeiro se organizou como movimento, foi posteriormente normalizado no sistema político até que alcançasse o poder com o apoio das elites políticas tradicionais, para em seguida implantar uma ditadura etc.

A explicação do historiador americano está em todo esse movimento histórico onde muitas ideias e convicções originais de fascistas foram abandonadas em certas fases de seu desenvolvimento, enquanto outras ideias foram incorporadas pelo caminho, numa crítica explicita ao método que estava predominando na historiografia.

David Renton dialoga fortemente nas considerações finais desta segunda edição do livro com essa leitura de Paxton, mas é possível dizer que desde a primeira edição de Fascismo – história e teoria de 1999 que Renton e Paxton, por caminhos distintos, enfatizaram a importância das práticas dos fascistas para além de suas ideias, representando assim uma espécie de “contratendência” nesse campo de estudos. [xiv]

Tendo já sido publicado no Brasil há muitos anos o principal livro de Paxton sobre o assunto, a publicação agora do livro de Renton coloca à disposição dos interessados brasileiros outro autor importante dessa controvérsia. E é certamente curioso que isso venha a ocorrer antes que os autores mais influentes na historiografia de língua inglesa tenham sido traduzidos!

Seja como for, nesta segunda edição de seu livro David Renton está mais disposto a incorporar certas contribuições que aquela mesma vertente da historiografia do consenso culturalista apensou a esse campo de estudos. Na síntese final, especificamente na parte dedicada à defesa do caráter reacionário do fascismo, as reflexões de Roger Griffin sobre a modernidade alternativa representada pelo fascismo são explicitamente incorporadas pelo autor, no que chega à conclusão deste fenômeno ser um modernismo reacionário. [xv]

Antimarxismo e marxismo no campo de estudos do fascismo

A essa altura, uma eventual leitora (ou leitor) dessas linhas pode indagar: afinal, o que houve com a influência marxista nesta historiografia do fascismo? Tendo apresentado algumas das melhores leituras entre os contemporâneos do fascismo, onde estão os marxistas nessa historiografia profissional?

Nesse campo acadêmico os marxistas são bastante minoritários, havendo o predomínio de historiadores inclinados a posições liberais (p.ex. Sternhell e Griffin) e conservadoras (p.ex. Nolte e Payne), e não seria exagerado assinalar um pronunciado antimarxismo. Existem explicações possíveis para isso, entre elas o ambiente acadêmico hostil para com perspectivas críticas, mas também o empenho que autores acadêmicos dedicaram à publicação de suas pesquisas, seu mérito interno etc. Fugiria ao propósito desse prefácio explorar isso até o fim, mas pelo lugar desse livro nessa historiografia gostaria de sugerir algumas notas.

Em algum ponto do processo de constituição profissional desse campo de estudos alguns historiadores buscaram identificar-se como anti-antifascistas, no sentido de que se colocaram como uma de suas tarefas desconstruir a memória que os opositores do fascismo construíram sobre ele. O objetivo seria a construção de uma leitura objetiva do fenômeno. “E os marxistas (vocês sabem) são todos ideológicos”, diz o adágio das aulas de teoria nas melhores universidades!

Vejamos dois casos de repercussão.

Na Itália, o grande historiador Renzo De Felice, autor de uma monumental biografia de Mussolini enfrentou algumas vezes um espécie de memória oficial sobre o fascismo, como quando nos anos 1970 publicou um volume dedicado ao período entre 1929 e 1935, quando o regime fascista e o próprio Duce gozou de grande apoio popular. O regime republicano fundado após a derrota do fascismo italiano e a abolição da monarquia em 1946 tinha boa parte de suas forças políticas interessadas numa espécie de esquecimento do que havia sido o vintênio, o período de vinte anos de regime fascista. Isso se combinava a imagem oficial de uma República construída por antifascistas, ideia compartilhada mesmo pelos liberal-democratas, e certamente pelos identificados com o marxismo, em especial o Partido Comunista.[xvi]

De outra parte, para a direita falar de apoio popular de Mussolini rememorava, por exemplo, os acordos entre Mussolini e o Papa Pio XI, que criaram o Vaticano, e o apoio da Igreja ao plebiscito realizado pelo regime em 1929. Para a democracia cristã, formação política que dominou a cena política até o início da década de 1990 esse assunto gerava desconforto. Mas também setores da esquerda incomodaram-se com a retratação do brutal regime fascista como uma ditadura baseada em amplo consenso popular. Por motivos distintos, setores mais pragmáticos da política de alianças do Partido Comunista d’Itália incomodaram-se com a ideia de que não apenas setores reduzidos das elites sustentaram Mussolini. [xvii]

Não obstante, hoje a questão do consenso sob o regime fascista é considerada uma contribuição de De Felice ao campo, embora ela mais recentemente tenha também sido explorada politicamente pela extrema direita para normalizar sua própria posição ideológica na cambaleante democracia italiana.[xviii]

O próprio Renzo De Felice, devotado historiador anti-antifascista deu uma contribuição até mais explicita nesse processo de normalização da extrema direita: no último volume da mencionada biografia de Mussolini, publicada postumamente em 1997, o líder fascista chega a ser glorificado pelo historiador italiano como um “autêntico patriota”, enquanto a oposição ao fascismo e particularmente a Resistência é desqualificada. Tudo isso escrito e publicado num contexto político em que o governo Silvio Berlusconi tinha como partido aliado em sua coalizão os herdeiros do fascismo histórico, os autodeclarados neofascistas da Alleanza Nationale de Gianfranco Fini!

Antes disso, na Alemanha Federal o historiador Ernst Nolte já havia provocado a ira de intelectuais progressistas (e qualquer pessoa de bom senso) ao tentar normalizar o Terceiro Reich e todos os seus crimes na identidade histórica dos alemães. O debate iniciado com um artigo de Nolte e a resposta de Jürgen Habermas – que envolveu alguns dos mais importantes historiadores alemães do nazismo – ficou conhecido como Historikerstreit, e trouxe à tona a questão dos usos públicos do passado.[xix] Na medida em que seus objetos de pesquisa tem implicações na política do presente, a pretensão de neutralidade de certos acadêmicos esbarra vez ou outra com suas próprias práticas, como denotam as intervenções públicas de Renzo De Felice e Ernst Nolte.[xx]

Antifascista por natureza, a figura do historiador marxista do fascismo passou a ser representado mais comumente como a de um militante que propriamente a de um estudioso. Para furar esse bloqueio ideológico é preciso combinar as convicções antifascistas com pesquisa séria, e nesse ponto David Renton valoriza o trabalho do historiador britânico Tim Mason, um dos maiores estudiosos da classe trabalhadora alemã no contexto do Terceiro Reich, e cuja influência é reconhecida entre os mais importantes especialistas (não marxistas) no nazismo, como Ian Kershaw, Adam Tooze e Richard Evans.

Em sentido contrário às caricaturas sobre (e de) marxistas, Tim Mason encontra razões para afirmar que durante o regime de Hitler muitas vezes os interesses dos capitalistas alemães (os mesmos que deram apoio ao nazismo) estava subordinado às decisões políticas dos nazistas. Numa palavra: ao inverso da noção mais vulgar do que seria o marxismo, na qual a esfera econômica determina “em última instância” a política e toda a superestrutura, na forma de funcionamento do mais radical regime fascista as razões econômicas subordinaram-se às decisões políticas.

Na síntese final do livro, onde define o fascismo como uma forma específica de um movimento de massas reacionário, David Renton ainda adentra algumas controvérsias importantes, que dividem tanto o campo acadêmico profissional, como os marxistas em particular. É o caso da caracterização do regime franquista espanhol, considerado pelo autor um caso de ditadura militar convencional, e não um regime fascista. Enquanto ainda hoje historiadores importantes como Julián Casanova continuam considerando o franquismo um exemplo de fascismo, David Renton argumenta no sentido contrário e por um caminho próprio conflui para uma posição que hoje é majoritária na historiografia.[xxi]

A atualidade do fascismo

Em sua primeira edição, em 1999, o autor estava preocupado com o crescimento eleitoral de partidos da extrema-direita europeia, como o Front National de Jean-Marie Le Pen na França, o Partido da Liberdade (FPÖ) de Jörg Haider na Áustria e os neofascistas da Alleanza Nationale na Itália,[xxii] Preocupava-se com possibilidade de servirem de base para regimes fascistas. Passados vinte anos, David Renton coloca sua avaliação em perspectiva para explicar o que se passou: no sentido contrário à sua intuição, os partidos mencionados foram “desradicalizados”, ”abandonando suas milícias e se transformando em partidos conservadores, embora de um tipo agressivo”. Segundo pensa o autor, as tendências realmente fascistas continuaram em situação de marginalidade política de lá para cá.

Certamente o contexto da ascensão de Donald Trump nos Estados Unidos impulsionaram as razões pelas quais o livro de David Renton recebeu essa nova edição.  Mas surpreendentemente a atual onda global de extrema direita da qual o trumpismo é um farol não é percebida pelo autor como predominantemente fascista.

Essa reflexão é aprofundada em outro livro de David Renton, ainda inédito em português, que ele considera um complemento a esse.[xxiii] Sobre a ascensão global da extrema-direita ele insiste em dois pontos: em primeiro lugar, a necessidade de distinguir entre uma extrema-direita fascista e outra que não é; em segundo, e mais estratégico, perceber o realinhamento do sistema político-partidário para à extrema direita na última década, que permitiu uma nova convergência autoritária resultado da aliança entre as direitas tradicionais e a extrema-direita em vários países do mundo.

Podemos entender que essa é uma hipótese pertinente na análise do trumpismo, por exemplo, que se constitui como uma extrema-direita que coloniza o grande partido da direita tradicional dos Estados Unidos. É o caso também da experiência do gabinete de Boris Johnson, também surgido no interior do partido tradicional da direita. E o mesmo pode ser aplicado ao caso de Viktor Orbán na Hungria, que vem de um partido tradicional da direita (o Fidez) e conhece uma radicalização à direita a partir de 2010, quando aproveita uma vitória expressiva para mudar a Constituição.

Essa parece ser uma chave realmente interessante para entender esses cenários, mas talvez não seja completamente aplicável em casos onde a extrema direita afirma-se liquidando com a direita tradicional (como é o caso do bolsonarismo brasileiro), ou quando as raízes do fascismo histórico são recriadas após o colapso da modernização pós-colonial, como é o caso do fascismo na Índia do BJP de Narendra Modi.

David Renton busca assegurar com Fascismo – história e teoria que o conceito seja manejado de modo adequado pelos marxistas em suas análises políticas. Pois o fascismo é um problema grave demais para a que a palavra seja vulgarmente utilizada diante de cada arbitrariedade policial, de quaisquer regimes ditatoriais, e no limite como um mero xingamento.

Enquanto regime de exceção, o fascismo conformou ditaduras com características específicas e que legaram também problemas específicos. Pensemos: quando um regime fascista é derrubado, recomenda-se banir o partido fascista e todas as suas estruturas de organização. Por outro lado, ao fim de uma ditadura militar, exceto em casos de derrubada revolucionária, as Forças Armadas continuam a operar como instituição de Estado em tempos de democracia liberal.

Enquanto as ditaduras militares tendem a ser regimes conservadores, que desmobilizam as sociedades, os regimes fascistas operaram com objetivos de mobilização política permanente das massas. Ambos são contrarrevolucionários e, portanto reacionários, baseados na efetivação de uma violência política justificada como capaz de impedir a mudança histórica, uma revolução em andamento ou ainda esboçada. Mas operam tal tarefa de modo distinto.

Para sua exata compreensão, a retórica revolucionária dos fascistas deve ser levada à sério, tratada como uma ideologia no sentido marxista, mesmo que os fascistas sejam tão somente “os revolucionários da contrarrevolução”, como bem definiu Eric Hobsbawm, pois a “grande diferença entre a direita fascista da direita não fascista era que o fascismo existiu mobilizando massas de baixo para cima”.[xxiv]

*Demian Bezerra de Melo é professor de História contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF).

Referência


David Renton. Fascismo: história e teoria. Rio de Janeiro. Usina editorial. 2024, 228 págs. [https://amzn.to/4fUt6LP]

Notas


[i] Além de sua atividade como escritor e acadêmico, David Renton atua como advogado trabalhista.

[ii] Cf. TABER, Mike; RIDDELL, John. Introduction. In. ZETKIN, Clara. Fighting Fascism – How To Struggle and How To Win. Chicago: Haymarket Books, 2017, p.8.

[iii] BEETHAM, David (org). Marxists in the Face of Fascism. Writings by Marxists on Fascism From the Inter-war Period. Manchester University Press, 1983, p.1-62.

[iv] Publicado em 1954, A destruição da razão de Lukács é sem dúvida a grande contribuição deste filósofo no entendimento do fenômeno do fascismo.

[v] Cf. GRIFFIN, Roger. The Primacy of Culture: The Current Growth (Or Manufacture) of Consensus within Fascist Studies. Journal of Contemporary History, v.37, n.1, p.21-43, jan.2002. GRIFFIN, Roger. Studying Fascism in a Posfascist Age. From New Consensus to New Wave? Fascism – Journal of Comparative Fascist Studies, n.1, 2012.

[vi] GRIFFIN, Roger. The Nature of Fascism. Londres: Routledge, 1991, p.48.

[vii] Nas tipologias elaboradas sucessivamente por Ernst Nolte e Stanley Payne há um lugar primordial para antimarxismo como característica definidora do fascismo, ao lado de outras negações. Cf. NOLTE, Ernst. Three faces of fascism. Action Française, Italian Fascism, National Socialism. Nova York: Mentor Books, 1969. PAYNE, Stanley. Fascism. Comparison and Definition. The University of Wisconsin Press, 1980.

[viii] Em geral os debates marxistas sobre o revisionismo destacam as polêmicas na socialdemocracia alemã a partir da intervenção de Eduard Bernstein (1850-1932). Contudo existe um revisionismo mais presente no mundo latino e que envolve o nome de Sorel, que ao contrário de Bernstein era cético em relação à política parlamentar, propondo uma revolução criada em torno ao mito de uma greve geral. Sobre isso ver o estudo de GALASTRI, Leandro. Gramsci, Marxismo e Revisionismo. Campinas: Autores Associados, 2015.

[ix] Na Alemanha a obra de Sorel exerceu influência em uma geração de jovens de esquerda que, ao contrário, foram vítimas do fascismo. Cf. VIEIRA, Rafael Barros. Walter Benjamin: O direito, a política e a ascensão e colapso da República de Weimar (1918/9-1933). Tese de doutorado em Direito. Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 2016.

[x] A publicação por Sternhell de Ni Droite ni Gauche – L’idéologie du fascisme en France, em 1983 gerou acalorado debate e reprovação ao autor. Cf. TRAVERSO, Enzo. Interpretar el fascismo. Notas sobre George L. Mosse, Zeev Sternhell y Emilio Gentile. Ayer, n.4(60), 2005. COSTA PINTO, Antonio. The Nature of Fascism Revisited. Nova York: Columbia University Press, 2012.

[xi] Cf. EAGLETON, Terry. Ideologia – Uma introdução. São Paulo: Boitempo/UNESP, 1997.

[xii] Cf. PAXTON, Robert O. The Five Stages of Fascism. The Journal of Modern History, v.70, n.1, mar.1998.

[xiii] PAXTON, Robert O. A anatomia do fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

[xiv] Fugiria ao escopo desta apresentação avançar mais nesse assunto, mas o próprio Griffin admite que o tal consenso não é observado entre estudiosos de fora do mundo de língua inglesa, mas mesmo neste ambiente poderíamos acrescentar o trabalho dos cientistas sociais estadunidenses Michael Mann e Daniel Woodley, ou o historiador Dylan Riley que seguem caminho bastante diverso.

[xv] Por outro lado, o assumidamente liberal Roger Griffin recentemente buscou incorporar aspectos da contribuição marxista em sua prolífica produção. Cf. GRIFFIN, Roger. Notes towards the definition of fascista culture: The prospects for synergy between marxista and liberal heuristics. Renaissance and Modern Studies, 42:1, 2009. GRIFFIN, Roger. Exploding the Continuum of History. A Non-Marxist’s Marxist Model of Fascism’s Revolutionary Dynamics. In. FELDMAN, Matthew (org.). A Fascist Century. Essays by Roger Griffin. 2010, p.46-68.

[xvi] NATOLI, Claudio. El fascismo y el antifascismo en la historiografia y em la esfera pública de la Italia republicana. Historia del presente, n.6, 2005, p.156-157.

[xvii] Cf. LEDEEN, Michael A. Renzo De Felice and the controversy over Italian Fascism. Journal of Contemporary History, n.11, 1976.

[xviii] CORNER, Paul. Italian Fascism: Whatever Happened to Dictatorship? The Journal of Modern History, v.74, n.2, jun.2002. Em outro lugar explorei como alguns marxistas italianos pensaram essa questão. MELO, Demian. Antonio Gramsci, Palmiro Togliatti e o consenso sob o fascismo. Outubro, v.26, 2016.

[xix] Cf. POGGIO, Píer Paolo. Nazismo y revisionismo histórico. Madrid: Akal, 2006.

[xx] Para uma consideração sobre o lugar desses debates em seus respectivos contextos políticos, cf. TRAVERSO, Enzo. O passado, modos de usar. História, memória e política. Porto: Unipop, 2012, especialmente p.157-160.

[xxi] Desde a intervenção do sociólogo weberiano Juan Linz na década de 1960, e do historiador Stanley Payne (criticado por Renton na primeira seção deste livro) a maior parte da historiografia tem deixado de considerar o franquismo uma variante de regime fascista. Um dos tópicos dessa posição é o fato do franquismo ter sido um regime desmobilizador, ao contrário da característica de mobilização permanente dos regimes de Mussolini e Hitler. Cf. LINZ, Juan. Na Authoritarian Regime: Spain. 1964. PAYNE, Stanley. A History of Fascism, 1914-1945, Nova York: Routledge, 1995, p.3-19. CAMPOS, Ismael Saz. Fascismo y franquismo. Universidade de València, 2004.

[xxii] Renton se refere ao Movimento Sociale Italiano (MSI), a organização neofascista que em 1994 se juntou a outros grupos para criar a Alleanza Nationale.

[xxiii] RENTON, David. The New Authoritarians – Convergence on the Right. Londres: Pluto Press, 2019.

[xxiv] HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos. O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.121.


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