Por EDILSON CREMA*
Uma retrospectiva por ocasião do centenário do Primeiro Manifesto do Surrealismo
“Não é o em si do inconsciente que aparece no mundo em ruína dos surrealistas. Se medíssemos seus símbolos segundo sua conexão com o inconsciente, eles se revelariam demasiado racionalistas”
(Theodor Adorno).
Julho de 1914. A eclosão da guerra provocou a dissolução de todos os movimentos artísticos que se desenvolviam na Europa. As elites e o próprio sistema econômico-social, que produziram a carnificina, ficaram desacreditados e sob forte contestação. O caos da vida cotidiana, os relatos de atrocidades e a divulgação das inumanas condições dos soldados nas trincheiras, que se matavam aos milhões sem saber o porquê, revoltaram os espíritos mais sensíveis e críticos da insanidade em curso. Do ponto de vista cultural, essa situação induziu o surgimento, em meio à catástrofe, de uma corrente artística internacionalista, contestatória, intencionalmente caótica e anarquista.
Como território neutro, a Suíça acolhia refugiados de toda a Europa. Em Zurique, artistas de várias nacionalidades se descobrem por acaso. O alemão Hugo Ball, que fugira do serviço militar, funda em fevereiro de 1916 um cabaret “artístico”, não apenas para “desfrutar da sua independência, mas também para prová-la”. A inauguração, conforme relato de Hugo Ball, contou com as apresentações de “Mme. Hennings e Mme. Leconte, cantando em francês e em dinamarquês, Mr. Tristan Tzara leu poesias romenas e uma orquestra de balalaica tocava canções populares e danças russas.”[i]
Integravam também o grupo, desde o início, o francês Arp, os alemães Huelsenbeck e Richter, o romeno Janko e vários outros expatriados. Como contraponto à guerra entre seus povos, eles decidem promover espetáculos internacionalistas de cabaré, apresentando números artísticos dos países que se confrontavam nas trincheiras, numa espécie de união pela arte, num grito contra todas as fronteiras e pelo convívio harmonioso entre os seres humanos.
Essas apresentações fizeram enorme sucesso, ganharam de imediato repercussão internacional e atraíram novos artistas e grande público para as novidades estéticas que surgiam quase diariamente no cabaré, que passou a ser chamado Cabaret Voltaire. De acordo com Huelsenbeck, um de seus principais membros, e que seguiremos nesse percurso inicial, até o nome do grupo foi escolhido de forma aleatória: “A palavra Dada foi descoberta acidentalmente por Hugo Ball e eu em um dicionário alemão-francês, enquanto procurávamos um nome para Madame le Roy, a cantora do nosso cabaré.”[ii]
Como se sabe, os significados da palavra “dada” são “cavalinho de madeira”, numa linguagem infantil, ou “tema favorito”, “mania”, “ideia fixa”. Embora esses significados tenham gerado inúmeras interpretações, aparentemente o que mais interessava para o grupo era a sonoridade da palavra. Pouco tempo depois do início das apresentações, foi lançada uma revista chamada Cabaret Voltaire para divulgar as ideias do movimento. Seu primeiro número, em junho de 1916, teve a participação de Apollinaire, Arp, Picasso, Marinetti, Modigliani e Kandinsky, indicando a força e a diversidade que a iniciativa adquirira.
Ninguém melhor do que o próprio Huelsenbeck para nos expor as influências e os objetivos do dadaísmo naquele momento crucial: “O grupo Cabaret Voltaire era composto por artistas no sentido de que todos tinham uma consciência aguda das novas possibilidades artísticas que acabavam de nascer. Hugo Ball e eu tínhamos sido extremamente ativos em ajudar a difusão do expressionismo na Alemanha; Ball era um amigo íntimo de Kandinsky, em colaboração com quem ele havia tentado fundar um teatro expressionista em Munique. Em Paris, Arp estivera em contato próximo com Picasso e Braque, os líderes do movimento cubista, e estava completamente convencido da necessidade de combater a concepção naturalista em todas as suas formas. Tristan Tzara, esse internacionalista romântico, a cujo zelo propagandístico devemos agradecer o enorme crescimento do dadaísmo, trouxe consigo da Romênia uma ilimitada facilidade literária. Naquele período, enquanto dançávamos, cantávamos e recitávamos noite após noite no Cabaret Voltaire, a arte abstrata era para nós o momento supremo de dignidade absoluta. O naturalismo era uma invasão psicológica dos motivos da burguesia, nossa inimiga mortal. (…) Dada deveria servir de convergência das energias abstratas e deveria ser uma impulsão vigorosa permanente para os grandes movimentos artísticos internacionais”.[iii]
Assim, o movimento dadaísta tentava amalgamar, sem preconceitos e sem qualquer programa, características de várias tendências estéticas de seu tempo. Como se fosse uma colagem de radicalismos de toda sorte. Huelsenbeck conta que eles incorporaram à sua maneira o conceito de simultaneidade do futurismo de Marinetti e, em suas apresentações, recitavam ao mesmo tempo poemas diferentes, bem como “assumiram sem suspeitar de sua filosofia” os princípios da L’arte dei rumori, de Russolo, executando música “bruitiste” freneticamente. E confessa que “os dadaístas do Cabaret Voltaire na verdade não tinham a menor ideia do que queriam – os restos de ‘arte moderna’ que em algum momento ou outro se agarraram às mentes desses indivíduos foram reunidos juntos e chamados de ‘Dada’.”[iv] O que resultava numa apresentação aparentemente caótica, bem de acordo com a vida naqueles tempos sombrios.
A partir do sucesso na Suíça, o movimento Dada se espalhou por toda a Europa e pelo mundo, levado por seus integrantes até mesmo para os países ainda em guerra. Berlim, Colônia, Hanôver, Bâle, Barcelona e Paris viram surgir seus grupos. Logo após a guerra, grandes exposições Dada foram realizadas e o grupo de Paris, comandado por Tzara, ganhou a participação de Breton, Paul Éluard e Aragon, que serão fundamentais para o futuro do movimento. E para sua superação.
Além disso, o desastroso balanço humano da guerra e o entusiasmo com a Revolução Russa empurraram alguns dadaístas para a radicalização política, tornando-o um movimento de forte contestação social. Sobretudo na Alemanha, onde o dadaísmo “perdeu seu caráter de arte pela arte, (…) em contraste direto com a arte abstrata (…) e adotou conscientemente uma posição política”, como afirma Huelsenbeck. Ele e Hausmann até escreveram um Manifesto do Conselho Central Revolucionário Dadaísta Alemão, cujas primeiras exigências eram: “A união revolucionária internacional de todos os homens e mulheres criativos e intelectuais com base no Comunismo radical (…) e a expropriação imediata da propriedade (socialização) e a alimentação comunitária de todos.”[v]
Outros grupos, menos radicais, compostos por maioria anarquista, assumem a tese de Bakunin de que a destruição é também construção. Porém, no caso, a destruição que eles buscavam era a da concepção tradicional de arte e da linguagem artística, não apenas para chocar a burguesia responsável pelo estado de coisas, mas, principalmente, para abrir caminho a uma completa emancipação da imaginação visual. Assim, suas obras podiam ser compostas com lixo, um mictório passava a representar uma fonte grega e até a Mona Lisa ganhou seu bigode.
O dadaísmo caminhava, pois, sobre o fio de uma contradição essencial: como expressar-se pela destruição completa de todos os meios de expressão convencionais, de todos os clichês artísticos, explodindo as pontes sobre as quais deveria passar um artista para expor suas ideias? É interessante observar que proposta análoga fora levada a cabo pelos simbolistas no final do século XIX, quando também tentavam levantar barreiras entre as obras e o público leitor.
Em sua maioria filhos da Semana Sangrenta que consumou o massacre da Comuna de Paris, anarquistas radicais adeptos das teses de Mikhail Bakunin, os jovens simbolistas não apenas saudavam os ataques a bomba em Paris entre 1892 e 1894, como chegavam a publicar a composição química da dinamite. Os versos do poeta Tailhade sobre a explosão de bombas expõem cruamente o acirramento da luta política naquele período: “Anarquia! Ó portadora de tochas! Expulse a noite! Esmague o verme!” Ou, então, a estetização da violência ao comentar as mortes de inocentes provocadas pelos atentados: “Que importa algumas vagas individualidades que desaparecem, se o gesto é belo!” [vi]
Uma observação sutil do surgimento do simbolismo e sua aproximação com o anarquismo foi apresentada, de forma surpreendente, pelo insuspeito e divertido relatório de um cultivado comissário de polícia que esteve à frente de investigações à época: “O simbolismo aproveita da desordem criada nos espíritos pela venalidade dos poderes públicos (…) que faz com que se sinta a necessidade de mudar de ar. Muita gente não espera nada mais do que uma mudança geral! (…) É por isso que se assiste ao conluio de estetas e de companheiros anarquistas. Uns e outros se revezam em reuniões públicas para expor seu programa à assembleia que retém desses discursos apenas um ponto: que se trata de demolir alguma coisa. (…) Vemos nas assembleias, através da nuvem de fumaça de cigarros, se suceder no palanque Rachilde e Sébastien Faure, Paule Minck e Paul Adam, Séverine e Roinard, Ibels e o companheiro Martinet. Fulmina-se ao mesmo tempo a Academia e o Patronato. Protesta-se contra as fuziladas dos manifestantes de Fourmies no primeiro de maio e contra a interdição de Lohengrin na Ópera. E a assembleia se dispersa aos gritos alternados de ‘Viva o verso livre’ e ‘Viva a anarquia’.”[vii]
Todavia, malgrado as manifestações bombásticas, os poetas e os literatos formavam apenas o braço propagandístico do anarquismo daquele período, armados somente com pena e muita tinta, e aparentemente nunca passaram à ação direta. As bombas que eles lançavam sobre a burguesia consumidora de literatura eram textos extremamente complexos e obscuros, e repletos de imagens eruditas, para menosprezar e humilhar intelectualmente esse público leitor que sustentava o regime e as suas atrocidades. Essa atitude é bem representada pela opinião de Wyzewa: “O valor estético de uma obra está sempre na razão inversa do número de espíritos que podem compreendê-la.”[viii] O projeto estético estava, pois, intimamente ligado também a um projeto político.
Assim, ressalvadas as diferenças históricas e estéticas, vemos que há em comum entre os jovens simbolistas e os dadaístas, além da simpatia pelo anarquismo, uma hostilidade em relação ao público burguês que era bombardeado com obras que carregavam o desejo explícito de não serem compreendidas. Porém, após a guerra, com as novas condições sociais e políticas, o dadaísmo iniciava seu declínio, principalmente devido ao esgotamento de seu próprio projeto. Mas não apenas.
Desde o início do movimento dadaísta, havia enormes desavenças internas, animadas por divergências políticas e por vaidades, que também corroíam o movimento e abriam caminho para uma outra concepção estética que germinava em suas entranhas. Huelsenbeck havia retornado a Berlim onde fundara um grupo dadaísta muito mais politizado. A principal divergência, todavia, ocorreu depois de Tzara chegar a Paris, em 1920, e se unir a André Breton, Aragon e Éluard. Muito papel já foi coberto de tinta na tentativa de compreender esse período e a ruptura definitiva do grupo. Mas um dado essencial nesse processo, e que tem sido menosprezado, é a diferente formação intelectual do grupo francês, fortemente influenciado pela psicanálise e pela ação política.
É bem verdade que as descobertas de Freud vinham se infiltrando na produção artística e cultural havia vários anos, muitas vezes sutilmente. Na pintura, por exemplo, as primeiras manifestações, ainda que não intencionais, foram executadas por Chirico e Chagall. Cada um à sua maneira apelou para figuras ilógicas, fantásticas e passionais que poderiam ser interpretadas como imagens oníricas colhidas diretamente do inconsciente. Ambos haviam se nutrido na técnica cubista, mas sem aderirem completamente ao estilo. Chagall se encarregou de nos mostrar sua distância dos estilos anteriores: “Tento preencher a tela com formas vibrantes e repletas de paixão que devem criar uma dimensão suplementar a qual não podem alcançar nem a pura geometria das linhas cubistas nem a touche de cor impressionista.”.[ix]
Não seria demais dizer que o que Chagal e Chirico buscavam era, pela primeira vez, e talvez sem o perceber, fazer a pintura penetrar de forma consciente no reino do inconsciente, representar as imagens oníricas sem o filtro da razão.[x] E, para tanto, eles não poderiam ser totalmente cubistas, abandonando os elementos essenciais do motivo, as formas naturais, pois elas constituem a linguagem onírica.
Essa mesma espécie de “sur-réalisme”, termo cunhado por Apollinaire em 1917 para definir uma de suas próprias peças, foi utilizada por André Breton e Philippe Soupault como base do método de criação poética que eles desenvolviam em 1919. André Breton tivera formação em medicina, estudara a psicanálise e chegara mesmo a exercitá-la num centro de neuropsiquiatria, em 1916. Esse contato com pacientes afetados neurologicamente foi decisivo para sua formação estética, pois percebeu que a técnica psicanalítica poderia ser também uma fonte de criação.
Ou melhor, André Breton intuiu que as imagens simbólicas liberadas pelos sonhos seriam uma fonte estética significativa. Porém, essas imagens só seriam puras de sentido e revelariam as profundezas da alma se fossem obtidas por um processo automático de associação livre, passando por sobre a censura do consciente, sem o crivo da razão. Assim, Breton teve a ideia de escrever poemas com uma escrita espontânea e automática, lançando no papel as frases que lhe ocorressem aleatoriamente, sem se preocupar com gramática, ortografia ou estilo, como se o processo de autoanálise fosse possível. E, com o intuito de tornar esse processo mais confiável, solicitou que seu amigo Soupault fizesse exatamente a mesma coisa para que comparassem os resultados.
Curiosa essa tentativa de “comprovação” experimental, como um cientista obedecendo as regras e o rigor do método científico. Na verdade, foi o próprio Freud quem lançara essa ideia no texto Os Sonhos, escrito em 1900 e publicado em 1901, ao sugerir um método para uma possível autoanálise de sonhos: “Na autoaplicação desse procedimento [associação involuntária, espontânea], a melhor ajuda é escrever imediatamente as próprias ocorrências, em princípio incompreensíveis.”[xi]
As experimentações literário-científicas de Breton e Soupault foram publicadas em 1919 na revista Littérature por eles fundada, e, como se sabe, a esse método de escrita deram o nome de surrealismo, “em homenagem a Guillaume Apollinaire”. Vale a pena observar o título que os autores escolheram para essa experimentação literária: Les Champs Magnétiques,[xii] evidenciando que os conceitos da Física povoavam o imaginário da época e serviam até de inspiração para os artistas. Embora o Primeiro Manifesto do Surrealismo, de André Breton, só tenha sido publicado em outubro de 1924,[xiii] Les Champs Magnétiques é considerado por muitos como a certidão de nascimento do movimento.
Todavia, há divergências sobre isso. Para Walter Benjamin, por exemplo, a Saison en Enfer, de Rimbaud, de 1873, “é de fato o texto original do movimento”. E considera, ainda, que a Vague de Rêves, de Louis Aragon, publicada em 1924, poucos meses antes do Manifesto, “mostrou em que substância imperceptível e remota se incrustou o núcleo dialético que mais tarde amadureceu no surrealismo. (…) Para sermos mais rigorosos, podemos selecionar da obra completa de Dostoievsky (…) ‘A confissão de Stavrogin’, dos Demônios, publicado somente em 1915. Esse capítulo (…) contém uma justificação do Mal que exprime certos motivos do surrealismo com mais força do que jamais conseguiram os seus propugnadores atuais. Pois Stavrogin é um surrealista avant la lettre.”[xiv]
J-François Fourny tem a mesma apreciação de Walter Benjamin a respeito da importância da obra de Louis Aragon, mas lembra que Picabia também já realizava esses experimentos em 1915. Assim, apesar de a técnica de escrita automática de André Breton ter sido publicada em 1919, Louis Aragon é visto por alguns como o precursor do movimento.[xv]
A relação entre o dadaísmo e o surrealismo é ainda motivo de muita discussão. Por exemplo, Sanouillet afirma que o surrealismo sempre esteve contido, em germe, no movimento Dada, e que Les Champs Magnétiques está longe de ser puramente surrealista. Ao contrário, representa apenas o canto do cisne do Simbolismo. E esse autor vai mais longe: “O surrealismo não é a recuperação do Dada, nem um movimento paralelo ao Dada (…) É simplesmente uma de suas múltiplas encarnações, a mais brilhante, sem qualquer dúvida. (…) O surrealismo foi a forma francesa do Dada.”[xvi]
Numa linha oposta de interpretação encontram-se, por exemplo, Arnauld e Prigioni que asseguram que o surrealismo foi um fenômeno inteiramente novo e irredutível ao Dada: “Esse Dada, que teria contido o Surrealismo em germe, mesmo em plena maturidade e em todos os seus aspectos, assim que o examinamos em suas manifestações fora de Paris, fora da presença e participação de André Breton, não percebemos nele o menor sintoma de Surrealismo.”[xvii] Além disso, acrescentam os autores, Dada era um movimento destruidor e niilista, a negação universal, enquanto o Surrealismo iria reintroduzir vigorosamente algumas positividades como a da arte, a do amor ou a da revolução social. E, poderíamos acrescentar, seria fundado nas experiências científicas da psicanálise. Isso tudo tornaria impossível reduzi-lo completamente ao Dada.
Vemos, pois, que esse foi um processo complexo, cuja resolução talvez esteja entre as duas interpretações expostas acima. Segundo depoimento de seus contemporâneos, André Breton estava consciente de que se vivia um momento histórico de crescimento do obscurantismo que exigia um esforço coletivo de intelectuais para elaborar uma resposta mais construtiva do que o niilismo dadaísta. Ou seja, um projeto modernista.
Nas palavras do poeta Hugnet, que acompanhou de dentro todo esse processo de transformação estética e política, sendo o primeiro estudioso do dadaísmo, além de integrante do surrealismo: “Para Dada o adjetivo ‘moderno’ era pejorativo. Dada havia sempre lutado contra o espírito moderno. Quanto a Breton, sua intenção era clara. Em meio à maré montante da obscuridade, ele queria criar a luz. Queria investigar as manobras do Dada. Dada estava no final de sua evolução. Naufragara como um navio em perigo. Uma reorientação era necessária.”[xviii]
É certo que André Breton buscou os pressupostos teóricos para essa reorientação na psicanálise, como enfatiza Read. Mas não só, como veremos. Na verdade, o que interessava diretamente ao surrealismo não eram as interpretações freudianas sobre os sonhos e sua complexa teoria, mas principalmente a técnica da associação livre pela fala que conseguia adentrar o universo inconsciente riquíssimo em imagens e símbolos. Para André Breton, a possibilidade de acessar, mesmo acordado, esse universo desconhecido constituía a fonte de criação artística prioritária.
Ele mesmo nos explica as altas pretensões do surrealismo: “Como naquela época eu ainda estava muito ocupado com a leitura de Freud, e familiarizado com seus métodos de exame que eu tivera a ocasião de praticar um pouco em doentes durante a guerra, resolvi obter de mim o que se tenta obter deles, ou seja, um monólogo de fluxo o mais rápido possível, no qual o espírito crítico do sujeito não faça qualquer julgamento, que não se constranja, em seguida, de qualquer reticência, e que seja tão exatamente quanto possível o pensamento falado. Pareceu-me, e ainda me parece, (…) que a velocidade do pensamento não é superior à da fala, e que ela não desafia necessariamente a língua, nem mesmo a caneta que desliza. Foi com essas disposições que eu e Philippe Soupault, a quem eu havia revelado essas primeiras conclusões, nos empreendemos a enegrecer o papel, com um louvável desprezo pelo que poderia advir literariamente.”[xix] (Lembremos de passagem que Maria Pappenheim, quinze anos antes, num surrealismo avant la lettre, se valeu da mesma técnica de criação artística para escrever o libreto da ópera Erwartung, de Schoenberg.[xx])
Por fim, além da explicitação muito didática citada acima, e visto que não poucas discussões ocorriam sobre o que seria o surrealismo, André Breton, com sua peculiar ironia, o definiu claramente no Manifesto, “de uma vez por todas”, na forma de verbete de dicionário: “SURRÉALISME, s. m. Automatismo psíquico puro por meio do qual propõe-se exprimir seja verbalmente, seja por escrito, seja de todas as outras maneiras, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento na ausência de todo controle exercido pela razão, para além de qualquer preocupação estética ou moral.
ENCYCL. Philos. O Surrealismo repousa na crença em uma realidade superior de certas formas de associações até então negligenciadas, na onipotência dos sonhos, no jogo desinteressado do pensamento. Ele tende a arruinar definitivamente todos os outros mecanismos psíquicos e a se substituir a eles na resolução dos principais problemas da vida.”[xxi]
Era, no fundo, uma busca pela liberdade absoluta do escritor. Era, de fato, uma proposta revolucionária, pois, como disse Walter Benjamin, combatia todos os critérios da literatura burguesa, e “explodia por dentro” o domínio dessa literatura: “Desde Mikhail Bakunin, não havia mais na Europa um conceito radical de liberdade. Os surrealistas dispõem desse conceito. Foram os primeiros a liquidar o fossilizado ideal de liberdade dos moralistas e dos humanistas (…).” Porém, Walter Benjamin se pergunta em seguida: “Mas conseguem eles [os surrealistas] fundir essa experiência com a outra revolucionária, que somos obrigados a reconhecer, porque ela foi também nossa: a experiência construtiva, ditatorial, da revolução? Em suma: associar revolta à revolução?”[xxii]
Como se sabe, Walter Benjamin escreveu esse ensaio no calor da hora, em 1929, um ano após a publicação do livro La Révolution et les intellectuels, de Pierre Naville, que foi fundamental para a evolução posterior do surrealismo. Nesse livro bem conhecido, escrito entre 1925 e 1926, após a sangrenta intervenção da França em apoio à Espanha no Marrocos, Pierre Naville discute exatamente a questão da ação política e conclama seus camaradas a conciliarem a força da sua determinação libertária com o rigor exigido pela revolução. Ou seja, passar de uma atuação, digamos, anarquista a um engajamento político sujeito a uma disciplina marxista e revolucionária. Essa proposta, evidentemente, provocou enormes discussões no seio do grupo. E muitas rupturas.
Se o método psicanalítico animara os primeiros passos “intuitivos” do movimento, as reflexões de Pierre Naville e, principalmente, a situação sociopolítica do período provocaram uma virada de rota surpreendente. O próprio André Breton, numa conferência em 1934, distingue dois momentos do surrealismo: “Avalio que há razão para distinguir na evolução do movimento surrealista dois períodos de duração sensivelmente igual: desde suas origens (1919, ano da publicação de Champs Magnétiques) até hoje [1934]: uma época puramente intuitiva e uma época racional. A primeira pode ser caracterizada sumariamente pela crença que se expressa nela na onipotência do pensamento, tido como capaz de se emancipar e se libertar por seus próprios meios. Essa crença traduz um sentimento dominante que eu vejo hoje como muito lamentável, que é o sentimento da primazia do pensamento sobre a matéria. (…) No entanto, nenhuma determinação social ou política coerente se manifestou nela até 1925, ou seja (é importante frisar isso) até a eclosão da guerra no Marrocos que, revivendo em nós a hostilidade particular em relação ao destino dos homens provocado pelos conflitos armados, nos coloca subitamente diante da necessidade de um protesto público. Este protesto, que, sob o título de Revolução Primeiro e Sempre, congregou, em outubro de 1925, aos nomes dos surrealistas propriamente ditos, os nomes de cerca de trinta intelectuais, foi talvez ideologicamente bastante confuso; no entanto, marca a ruptura com todo um modo de pensar; não obstante, criou um precedente característico que decidiria toda a conduta subsequente do movimento.”[xxiii]
Se essa profunda politização do surrealismo ocorreu pelo fato de a guerra no Marrocos ter “revivido” em seus membros uma “hostilidade” em relação aos “conflitos armados” foi porque as raízes do movimento estavam fincadas no solo histórico da Primeira Guerra, e seu horizonte era a expectativa da nova guerra que se armava. André Breton reconheceu essa determinação histórica numa conferência para estudantes da Universidade de Yale, em 1942: “De uma guerra para outra, pode-se dizer que é a busca apaixonada pela liberdade que tem sido o motivo constante da ação surrealista. (…) Insisto no fato de que o surrealismo só pode ser compreendido historicamente em relação à guerra, quero dizer – de 1919 a 1939 – em relação, ao mesmo tempo, à guerra da qual ele emana e à guerra para a qual ele se estende.”[xxiv]
Desde a origem do movimento, pairava a convicção de que uma nova catástrofe se aproximava. O “deslizamento em direção ao abismo”, nos termos de André Breton, era o sentimento predominante à época. Ainda na conferência de Yale, o autor relembra que, com quatorze anos de antecedência, previu exatamente quando a Europa cairia novamente na armadilha que as “máquinas de guerra” estavam montando. Como comprovação, Breton cita esta sua frase que se encontra nas Lettres aux Voyantes, de 1925, que foi adicionada na reedição de 1929 do Manifesto do Surrealismo: “Há pessoas que fingem que a guerra lhes ensinou alguma coisa; são todas menos favorecidas do que eu, que sei o que o ano de 1939 me reserva.’”[xxv]
Dessa perspectiva, valeria para o surrealismo o que Theodor Adorno disse sobre os romances de Franz Kafka, a saber, que estamos diante de uma “resposta antecipada à uma constituição de um mundo onde toda atitude contemplativa tornou-se um sarcasmo ultrajante, pois a ameaça permanente da catástrofe não permite mais a ninguém ser um espectador neutro.” Por isso, escreve Adorno, Kafka “choca o leitor para demolir seu conforto contemplativo”, evidenciando que “a realidade todo poderosa só pode ser mudada concretamente, e não transfigurada na imagem”.[xxvi] Foi o que os surrealistas compreenderam quando formularam seu “protesto público”, sob o título Revolução Primeiro e Sempre.
Em artigo de 1925 na Revolução Surrealista, comentando a biografia de Lênin escrita por Leon Trotsky, André Breton refuta as críticas correntes de que os surrealistas tinham “um julgamento bastante desfavorável sobre a Revolução Russa e sobre os homens que a dirigiram”. Porém, de alguma maneira, confessa que acabara de descobrir a verdadeira Revolução e seus líderes.[xxvii] Em janeiro de 1927, o poeta filia-se ao partido comunista, com o qual manterá uma relação curta e extremamente tensa em virtude, não apenas do preconceito dos comunistas franceses com as teses surrealistas,[xxviii] mas sobretudo da política stalinista de “socialismo em um só país”, do abandono das teses de Lênin e das perseguições aos opositores.
Um momento decisivo para a revista Revolução Surrealista foi a expulsão de Leon Trotsky da URSS, em janeiro de 1929, pois Desnos, Naville, Mésententes e outros abandonam a revista, que verá seu último número aparecer em dezembro.[xxix] Todavia, esse triste desenlace da derradeira edição trouxe em si um renascimento: a publicação do Segundo Manifesto do Surrealismo. E, ao mesmo tempo, a necessidade de renovar o movimento lançando, em julho de 1930, um novo periódico intitulado O Surrealismo a serviço da Revolução, com a participação Breton, Aragon, Salvador Dali, Louis Buñuel, Éluard, Ernst, Tzara e vários outros intelectuais e artistas.[xxx]
Eis, portanto, que uma grande contradição se colocou para os surrealistas nessa radical mudança de rota: a dicotomia entre o trabalho artístico “intuitivo” e o rigor da ação política. Mais precisamente, como confessa Breton em sua conferência de 1934, tratava-se da difícil tarefa de alinhar o método surrealista com o “materialismo dialético”: “Na realidade, surgem-nos dois problemas: um é o problema do conhecimento que, com efeito, no começo do século XX, coloca na ordem do dia as relações do consciente com o inconsciente. Foi assim que esse problema se apresentou eletivamente para nós: ocorreu-nos ser os primeiros a aplicar em sua resolução um método particular que nunca deixou de nos parecer o mais bem adaptado e que consideramos perfectível. Não temos nenhuma razão para renunciarmos a ele. O outro problema que se coloca para nós é o da ação social a realizar, ação que, a nosso ver, possui seu método próprio no materialismo dialético, ação da qual não podemos nos desinteressar, tanto mais porque consideramos a libertação do homem como condição sine qua non da libertação do espírito, e que esta libertação do homem só pode ser conquistada com a Revolução proletária.”[xxxi] Estava, então, muito claro para os surrealistas o complexo problema de fundo que atravessaria o século XX: como conciliar a psicanálise com o marxismo?
No seu ensaio de 1929 sobre o surrealismo, Walte Benjamin comenta o livro de Pierre Naville, que colocara na ordem do dia a “Organização do pessimismo” contra o “otimismo”, que é o “tesouro de imagens desses poetas da social-democracia”. Apenas imagens, totalmente abstratas. Benjamin afirma: “Naville lança um ultimatum: (…) onde estão os pressupostos da revolução? Na transformação das opiniões ou na transformação das relações externas? (…) Os surrealistas se aproximam cada vez mais de uma resposta comunista a essa pergunta. O que significa: pessimismo integral. Sem exceção. Desconfiança acerca do destino da literatura, desconfiança acerca do destino da liberdade, desconfiança acerca do destino da humanidade europeia e, principalmente, desconfiança, desconfiança e desconfiança com relação a qualquer forma de entendimento mútuo: entre as classes, entre os povos, entre os indivíduos.” [xxxii]
É por assim dizer essa negatividade essencial do surrealismo que permite elucidar a conclusão do ensaio de Walter Benjamin: “No momento, os surrealistas são os únicos que conseguiram compreender as palavras de ordem que o Manifesto Comunista nos transmite hoje.”[xxxiii]
Essa negatividade radical André Breton “pressentiu”, desde o início de sua trajetória intelectual, em Hegel. Num primeiro momento, tratava-se de aproximar Hegel e Freud. Vale a pena observar este registro de Elizabeth Roudinesco: “‘Freud é hegeliano em mim’, disse Breton um dia. A seu ver, portanto, a comunicação [do surrealismo com a psicanálise] parece possível. Para realizá-la, basta que se acrescente à doutrina freudiana uma espécie de filosofia hegeliana que faria com que o imaginário e a realidade se encontrassem. O escritor mantém com o personagem de Hegel uma relação privilegiada. (…)André Breton ‘pressentira’ Hegel nas aulas de filosofia. Impregnou-se compulsivamente de seus textos, à maneira de uma histérica. ‘Qualquer especialista’, declara André Breton em 1952, ‘me admoestaria em matéria de exegese a propósito dele, mas nem por isso é menos verdadeiro que, desde que conheci Hegel, ou melhor, desde que o pressenti através dos sarcasmos com que o perseguia, por volta de 1912, meu professor de filosofia, um positivista, André Cresson, impregnei-me de suas visões e, para mim, seu método cobriu de indigência todos os demais. Onde a dialética hegeliana não funciona, para mim não há pensamento, não há esperança de verdade.’” [xxxiv]
Com efeito, no Segundo Manifesto, publicado em dezembro de 1929, André Breton deixa claro que a dialética hegeliana é o pressuposto teórico que servirá de ponte para o surrealismo tentar fundir psicanálise e marxismo. É ela que permite a superação do “caráter factício das velhas antinomias destinadas hipocritamente a prevenir toda agitação insólita do homem”.[xxxv] É ela, acrescenta André Breton, que permite vislumbrar “certo ponto do espírito a partir do qual a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo, deixam de ser percebidos como contraditórios.”
Esse “pensamento definitivamente maleável à negação, e à negação e da negação”, do qual emana o marxismo, não poderia limitar-se aos domínios da economia: “Como podemos admitir que o método dialético só possa ser validamente aplicado à solução de problemas sociais? Toda a ambição do surrealismo é fornecer-lhe possibilidades de aplicação que não estão de forma alguma competindo no domínio consciente e mais imediato.”[xxxvi]
Embora o Segundo Manifesto recorra também à Filosofia do Direito de Hegel, é sobretudo no “ato voluntário” visto na Fenomenologia do Espírito que André Breton fixa outra âncora do surrealismo. Contra a “hipocrisia” dos que julgam que “de toda forma o homem será derrotado pelo regime”, o voluntarismo hegeliano de Breton apela à ação: “não podemos deixar de nos colocar da forma mais ardente a questão do regime social sob o qual vivemos, refiro-me à aceitação ou à não aceitação deste regime.”[xxxvii] O que esse Segundo Manifesto está anunciando, como observa Roudinesco, é a forte guinada do movimento: “O mergulho de André Breton num hegelianismo ativo é contemporâneo de uma mudança política no interior do movimento surrealista. (…) Assim, o hegelianismo de Breton torna-se arma por excelência de uma transformação da revolta surrealista em revolução social.”[xxxviii]
Esse peculiar “hegelianismo ativo”, que André Breton mobilizava para colocar o “surrealismo a serviço da revolução”, teria sido um salto mortal se não tivesse sido amortecido por uma extensa rede cuja trama estava sendo urdida no solo cultural francês. E André Breton foi um dos primeiros a começar a urdi-la. Nesse sentido, o Segundo Manifesto acabou por antecipar, de alguma maneira, a perspectiva da filosofia da ação de Alexandre Kojève, cujos cursos sobre a Fenomenologia do Espírito, entre 1933-1936, fomentaram um vigoroso renascimento de Hegel na França dos anos 1930.[xxxix]
Na ótica de Alexandre Kojève, como se sabe, o hegelianismo torna-se paradoxalmente um ativismo filosófico radical. E, longe de ser um idealismo, é lido como puro realismo: “Afirma-se com frequência que o sistema de Hegel é ‘idealista’. Ora, de fato, o idealismo absoluto hegeliano não tem nada a ver com o que se chama comumente ‘idealismo’. Se empregarmos os termos no seu sentido usual, é preciso dizer que o sistema de Hegel é ‘realista’. (…) Dizer que a filosofia deve ser ‘realista’ é dizer em última análise que ela deve levar em conta a História. (…) Não há verdadeiramente ‘realismo’ filosófico senão lá onde a filosofia leva em conta a ação, isto é, a história, isto é, o tempo.”[xl]
Na base desse Hegel de Kojève está o vínculo imanente entre liberdade e negatividade: “Para Hegel, o homem não é apenas o que ele é, mas o que ele pode ser, negando o que ele é”. É assim por meio da negatividade que “a ideia de liberdade penetra na filosofia”.[xli] Negatividade, liberdade, história, ação, tempo: está pavimentado o caminho para o Hegel de André Breton levar o surrealismo rumo à revolução social. O passo seguinte será a aproximação de Trotsky.
Ao longo dos anos 1930, os surrealistas de fato tentaram radicalizar sua proposta de liberdade integral do artista a serviço da revolução. Após o escândalo dos processos de Moscou, André Breton faz duras críticas à política stalinista e procura se aproximar de Leon Trotsky, por intermédio de Pierre Naville, que rompera com o grupo e fundara o movimento trotskista na França. André Breton se reúne com Trotsky no México, em 1938, e escrevem o famoso Manifesto de fundação da Federação Internacional de Arte Revolucionária Independente (FIARI).
Conforme sublinha Michael Löwy, durante as discussões, “Trotsky, embora respeitasse a coragem e a lucidez do poeta – um dos raros intelectuais franceses de esquerda a se opor ao stalinismo – tinha algumas dificuldades para entender o surrealismo”, ao qual contrapunha o realismo de Zola. Com relação ao tema caro aos surrealistas, a liberdade do artista, foi Trotsky quem escreveu as passagens mais radicais desse Manifesto, propondo que, numa sociedade revolucionária, os artistas deveriam ter “liberdade ilimitada”, um “regime anarquista”. E mais: ele recusou uma passagem proposta por André Breton que limitaria tal liberdade se ela atentasse contra a revolução proletária.[xlii]
Duas análises retrospectivas do surrealismo realizadas nos anos 1950 merecem destaque, a de Arnold Hauser e a de Theodor Adorno. Ao procedimento artístico puramente intuitivo dos surrealistas, ao qual Trotsky havia contraposto o realismo de Zola, Hauser opõe o processo proustiano desenvolvido poucos anos antes: “Assim, afinal, [os surrealistas] refugiam-se ainda na racionalização do irracional e na metódica reprodução do espontâneo, com a diferença única que o seu método é incomparavelmente mais pedante, dogmático e rígido do que o modo de criação em que o irracional e o intuitivo são controlados pelo juízo estético, o gosto e a autocrítica, e que faz da reflexão, e não da indiscriminação, o seu princípio diretivo. Mais fecundo do que a receita dos surrealistas era o processo de Proust, que semelhantemente se colocava numa espécie de estado de sonambulismo e se abandonava ao fluxo de recordações com a passividade de um médium em hipnotismo, mas que simultaneamente se conservava um pensador disciplinado e um artista criador, consciencioso no mais alto grau. O próprio Freud parece ter discernido a artimanha perpetrada pelo surrealismo. Parece que teria dito a Salvador Dali, que o visitara em Londres, pouco antes da sua morte: ‘O que me interessa na sua arte não é o inconsciente, é o consciente.’”[xliii]
Em seu importante “estudo retrospectivo” sobre o surrealismo, Theodor Adorno, embora reconhecendo a “riqueza abundante do surrealismo” e a “força que emanava de suas ideias”, segue a linha de Freud com relação ao alcance do método surrealista: “As criações dos surrealistas não são senão pálidos análogos do sonho, na medida em que elas invalidam a lógica habitual e as regras do jogo da existência empírica, respeitando, no entanto, as coisas isoladas, explodidas, e mesmo aproximando todo seu conteúdo, e muito particularmente seu conteúdo humano, da forma das coisas. (…) Entretanto, os próprios surrealistas acabaram por perceber que não se associa da mesma maneira na situação analítica e na sua poesia. Aliás, a liberdade das associações psicanalíticas não tem nada de livre. (…) Não é o em si do inconsciente que aparece no mundo em ruína dos surrealistas. Se medíssemos seus símbolos segundo sua conexão com o inconsciente, eles se revelariam demasiado racionalistas. (…) Aliás, foi assim que Freud reagiu com relação a Dalí. (…) Se quisermos então acolher o surrealismo num conceito, não é à psicologia que devemos retornar, mas à sua abordagem artística. Indiscutivelmente, são as montagens que constituem o seu esquema. Podemos facilmente mostrar que a própria pintura verdadeiramente surrealista opera com seus motifs, e que a justaposição descontínua de imagens na poesia surrealista tem a natureza de uma montagem. (…) As imagens dialéticas do surrealismo são aquelas de uma dialética da liberdade do sujeito num estado de não liberdade do objeto.”[xliv]
Veremos que o exame de duas telas específicas do controvertido Salvador Dali confirma a que ponto essas interpretações de Theodor Adorno, bem como as de Hauser, expuseram o nervo sensível do método surrealista.
Pintura surrealista?
Logo após a publicação do Primeiro Manifesto, uma dúvida se instalou entre os membros do movimento: seria possível aplicar o automatismo psíquico às artes plásticas? Seria possível uma pintura surrealista? O próprio Manifesto de André Breton suscita a questão. Vimos que, na sua definição de surrealismo, o “automatismo psíquico puro” deveria ser aplicado tanto na expressão escrita quanto a todas as outras formas de expressão. E o final do Manifesto sugere que “os meios surrealistas precisariam ser alargados”, e que “os papeis colados de Picasso e Braque” são válidos para se obter “a rapidez desejada de certas associações”. No entanto, André Breton arremata de forma surpreendente: “Apresso-me em acrescentar que as futuras técnicas surrealistas não me interessam.”[xlv]
Essa reticência com relação às artes plásticas era partilhada por outros integrantes do grupo. Já no primeiro número da Révolution Surréaliste, em dezembro de 1924, Max Morise afirma que o longo procedimento de elaboração de um quadro “deixa grandes chances ao arbitrário, ao gosto e tende a desviar o ditado do pensamento.”[xlvi] Ele analisa a pintura de Chirico e afirma que o esforço consciente do pintor para interpretar e representar as estranhas imagens oníricas presentes em sua memória necessariamente transforma sua obra numa mera descrição de um sonho. E Morise conclui: “As imagens são surrealistas, mas suas expressões, não. (…) Hoje não podemos imaginar o que seria uma pintura surrealista.”[xlvii] Quatro meses mais tarde, no terceiro número da revista, Pierre Naville declara: “Ninguém ignora que não há pintura surrealista.”[xlviii]
Devemos lembrar que o Manifesto de 1924 foi publicado como uma espécie de introdução teórica ao conjunto de trinta e duas “historietas” poéticas de Breton, denominado Poisson Soluble.[xlix] Sua preocupação primeira era, portanto, a escrita surrealista. Porém, a grande repercussão do texto e as profundas discussões no seio do grupo obrigaram Breton a aprofundar sua análise das artes plásticas num contexto surrealista.
Assim, em julho de 1925, na edição do quarto número, ele assume a direção da Révolution Surréaliste e começa a publicar uma série de artigos sintomaticamente intitulados: Le surréalisme et la peinture. Por que essa separação? Por que não denominou seus artigos de, simplesmente, Pintura Surrealista? Era, todavia, o início de um longo percurso ao longo do qual André Breton foi alargando a definição de surrealismo para abarcar as artes plásticas.
O pilar central do método surrealista, o “automatismo psíquico”, era restritivo demais e impediria, de fato, a sua aplicação nas artes plásticas. Mas o processo, digamos, de atenuação dessa condição ocorreu nos bastidores e depreendemos essa evolução principalmente nos comentários sobre os pintores que André Breton vai tentando associar ao surrealismo. Num primeiro momento, logo no artigo que iniciou a série Le Surréalisme et la Peinture, dedicado a “reivindicar veementemente Picasso como um dos nossos”, ele refere-se apenas “à mente totalmente abstraída de tudo e apaixonada pela sua própria vida”, e não mais identifica surrealismo e “automatismo psíquico puro”, como na definição do Primeiro Manifesto.[l]
Contudo, mais tarde, o poeta diz que Miró tem “o desejo de apenas se abandonar para pintar”, numa espécie de “puro automatismo”, de tal forma que ele “pode se passar pelo mais ‘surrealista’ de todos nós”.[li] Também analisando a tela Le labyrinthe, de Masson, Breton afirma: “André Masson logo no início de sua jornada encontrou o automatismo. A mão do pintor voa verdadeiramente com ele: já não é aquela que traça as formas dos objetos, mas sim aquela que, apaixonada pelo seu próprio movimento, e só por ele, descreve as figuras involuntárias nas quais a experiência mostra que essas formas são chamadas a se reincorporar.”[lii] André Breton havia finalmente acolhido, sem reservas, as artes plásticas no universo do surrealismo. O que para o poeta significava que esse voo errático da mão apaixonada seria guiado pelo inconsciente do artista, num estado entre o sono e a vigília.
Vale a pena observar que, em 1938, na redação do item 7 do Manifesto de fundação da Federação Internacional de Arte Revolucionária Independente, foi usada a expressão “mundo interior”, identificada ao inconsciente, provavelmente por sugestão de André Breton, e não de Trotsky. Basta lembrar que logo no primeiro artigo da série Le Surréalisme et la Peinture, em 1925, o poeta afirma que o “mundo exterior é de natureza suspeita” e que as artes plásticas deverão se referir a um “modelo puramente interior”.[liii] André Breton menciona pouco o termo inconsciente, privilegiando esses conceitos de “modelo exterior” e “modelo interior”. Segundo ele, os pintores surrealistas se libertaram da prisão da “percepção externa”, que dominou a pintura por muito tempo, e conseguem se guiar por um “referencial interior”, a imaginação.[liv]
Essa nomenclatura é reveladora do importante papel do expressionismo na formação da maioria dos dadaístas e dos surrealistas. Como se sabe, em sua obra Do Espiritual na Arte, de 1912, Kandinsky se fundamenta na ideia de que um certo “conhecimento interior” deve guiar a mão do artista expressionista.[lv] É nesse campo do ‘mundo interior” que tanto o expressionismo quanto o surrealismo, cada um à sua maneira, pretendem se nutrir. Ademais, conforme vimos no depoimento de Huelsenbeck, muitos dadaístas traziam forte herança expressionista. Porém, curiosamente, Kandinsky e o expressionismo não são citados explicitamente nos Manifestos de André Breton, malgrado a evidente similitude das fontes de inspiração dos dois movimentos.
Por outro lado, o cubismo de Picasso e Braque, que também influenciou fortemente os dadaístas (telas dos dois pintores decoravam as paredes do Cabaret Voltaire e até fantasias cubistas eram usadas), é referência constante de Breton no Primeiro Manifesto e em suas publicações posteriores, que, aliás, tentam associar-lhe características surrealistas. Em verdade, como veremos a seguir, foram todas as correntes cubistas que se infiltraram sub-repticiamente na produção pictural do surrealismo.
Lembremos rapidamente um momento decisivo entre os cubistas para que possamos compreender algumas obras-chave do surrealismo.
Pintura em quatro dimensões?
A Teoria da Relatividade e a Geometria não-euclidiana desempenharam papel crucial na evolução do cubismo. Pela simples razão de que elas alteraram completamente a noção intuitiva de espaço. A geometria é a gramática das artes plásticas, nas palavras de Apollinaire.
Abandonando os fundadores Picasso e Braque, formou-se o autodenominado Grupo de Puteaux, cujo centro de atração era a paixão de todos os integrantes pelas teorias de Einstein, pela matemática e, principalmente, pela geometria. A partir de 1911, o casal Duchamp recebia o grupo em sua casa no bairro parisiense de Puteaux, entre os quais Léger, Picabia, Gleizes, Kupka, Metzinger, Peret, Salmon, Apollinaire, Juan Gris e, sobretudo, o matemático Maurice Princet. Nas discussões sobre geometria com seus camaradas, Princet se baseava, essencialmente, numa obra que um tenente-coronel da artilharia francesa, Esprit Jouffret, publicara em 1903 para divulgar os trabalhos de Henry Poincaré, cujo título é muito sugestivo: Tratado elementar de geometria a quatro dimensões e introdução à geometria a n dimensões.
É interessante notar a semelhança de algumas obras cubistas posteriores com as figuras ilustrativas desse livro, como os octaedros fundamentais e os hiper poliedros e suas projeções num plano.[lvi] Enfim, o objetivo do grupo era aprofundar a abstração da pintura tanto quanto a abstração do mundo físico fora desvendada pela ciência e pela geometria. Ou seja, superar o que eles chamavam de cubismo primitivo de Picasso e Braque, que julgavam exageradamente dependente da natureza, ou pior, de uma concepção senso-comum da natureza que desprezava as novas descobertas da ciência. Em suma, o grupo buscava uma arte tão abstrata quanto era, de fato, a nova descrição científica da natureza.
Ninguém melhor do que Apollinaire para nos descrever esse processo artístico-científico, pois ele viveu cada momento dessa reaproximação da arte com a ciência, não era apenas espectador, mas ator ativo e decisivo do ambiente artístico e intelectual daquela conturbada quadra histórica. Além disso, Apollinaire escreveu no calor da hora, entre 1911 e 1912, à maneira de um repórter e intelectual altamente crítico que nos relata como as transformações se processavam: “Até o momento, as três dimensões da geometria euclidiana satisfaziam as inquietudes que o sentimento do infinito deposita na alma dos grandes artistas. Os novos pintores, não mais do que os mais velhos, não se propuseram a ser geômetras. Mas pode-se dizer que a geometria está para as artes plásticas o que a gramática está para a arte do escritor. Ora, hoje, os cientistas não se limitam mais às três dimensões da geometria euclidiana. Os pintores foram conduzidos muito naturalmente e, por assim dizer, por intuição, a preocuparem-se com as novas medidas possíveis da extensão, que na linguagem dos ateliês modernos designava-se todas juntas e brevemente pelo termo quarta dimensão. Tal como ela se oferece ao espírito, do ponto de vista plástico, a quarta dimensão seria engendrada pelas três medidas conhecidas: ela representa a imensidão do espaço eternizando-se em todas as direções num determinado momento. Ela é o próprio espaço, a dimensão do infinito; é ela que doa plasticidade aos objetos. (…) Acrescentemos que essa imaginação, a quarta dimensão, foi somente a manifestação das aspirações, das inquietudes, de um grande número de jovens artistas observando as esculturas egípcias, negras e oceânicas, meditando sobre obras científicas, aguardando uma arte sublime (…).”[lvii]
Vemos que os artistas tinham consciência de que, para além das dimensões espaciais, o tempo deveria ser uma nova dimensão da pintura, que o “momento preciso” de alguma forma necessitava ser incorporado à obra. Além disso, a “arte sublime” viria também do estudo das “obras científicas”. Esse interesse pela real composição física do espaço se manterá mesmo após a superação do momento cubista. Tomemos, por exemplo, uma das obras surrealistas mais populares, quase sinônimo de surrealismo para o grande público, A Persistência da Memória, de Salvador Dali, de 1931.
A caricatura do pintor dormindo, grotesco com a língua para fora e sonhando com as imagens extravagantes representadas na tela; a paisagem acima, que remete a lembranças de sua infância em Cadaquès; a oliveira centenária já seca; as formigas que ele detestava devorando o relógio de bolso sobre a mesa; e os relógios (o tempo) derretendo, tudo isso justificaria, com razão, as inúmeras interpretações psicanalíticas dessas imagens aparentemente produzidas por sonhos. E mais: as diferentes indicações da hora nos relógios sugerem que o tempo do sonho é diferente do tempo da vigília, bem de acordo com Freud.
Além disso, o quadro foi pintado logo após Dali ter publicado o artigo O Asno podre, no primeiro número da revista Le Surréalisme au service de la Révolution, em 1930, propondo o método paranoico-crítico de pintura: “Creio que está próximo o momento em que, por um processo de caráter paranoico e ativo do pensamento, será possível (simultaneamente ao automatismo e outros estados passivos) sistematizar a confusão e contribuir para o descrédito total do mundo da realidade. Os novos simulacros que o pensamento paranoico pode trazer repentinamente à luz não apenas terão sua origem no inconsciente, mas também a força do poder paranoico será colocada a serviço dele.”[lviii] Esse pensamento paranoico seria, assim, um método espontâneo e “irracional” de conhecimento, uma interpretação crítica de “associações delirantes.” Tudo exposto na tela teria, de uma forma ou de outra, brotado do inconsciente. E “desacreditado” e “arruinando” a realidade.
Todavia, como se sabe, foi o próprio Dali quem se encarregou, mais tarde, de explicar a origem consciente das imagens coladas na tela. Segundo seus depoimentos, após um jantar com queijo camembert, ele passou a “refletir” sobre os problemas colocados por aquele queijo que, apesar da aparência exterior rígida, escorria como um fluído ao ser cortado. Ao chegar no ateliê, havia no cavalete um quadro inacabado apenas com uma paisagem de Port Lligat ao entardecer e uma oliveira seca, faltando alguma ideia. Veio-lhe, então, a genial iluminação de completar a tela com a colagem de alguns relógios “moles” como o camembert derretendo, pois aquelas imagens do quadro remetiam à ideia de tempo, à destrutibilidade de tudo. Assim, uma das telas símbolo do surrealismo foi fruto de reflexões muito conscientes, não há nela quase nada de inconsciente, de automatismo psíquico ou paranoico.
Porém, o que nos interessa mais de perto, acompanhando Freud, é exatamente o que há de consciente nessa obra, é compreender quais foram as “reflexões” de Dali que poderiam tê-lo conduzido a essas imagens. Não há dúvida de que, por detrás dessa colagem de imagens de aparência onírica, podemos inferir alguns resultados da Teoria da Relatividade, como muito já se falou. À tridimensionalidade espacial da mesa, foi acrescentada a variável tempo, a quarta dimensão, representada pelo relógio colado às variáveis espaciais, acompanhando seus movimentos e formando a unidade indissolúvel do conjunto espaço-tempo. Ou seja, a passagem do tempo intimamente ligada ao espaço.
Recordemos o texto de Apollinaire citado acima, escrito duas décadas antes, e que Dali certamente conhecia: “a quarta dimensão é o próprio espaço, é ela que doa plasticidade aos objetos”. Não seriam seus relógios surreais uma tentativa de representar essa plasticidade fornecida pela quarta dimensão? Foi Dali quem confessou mais tarde em suas Confissões Inconfessáveis a pretensão de que seus relógios flexíveis representassem ainda mais fielmente a relação espaço-tempo do que as mais sofisticadas definições matemáticas.
Além disso, e também muito interessante, vemos que os três relógios estão em locais diferentes, indicando horas diferentes. Ora, um dos resultados mais importantes da Teoria da Relatividade, como o próprio nome indica, é a não simultaneidade dos relógios que se situam em posições diferentes. Esse resultado é consequência direta da finitude da velocidade da luz. Por exemplo, num cinema, o filme termina primeiro para o espectador próximo à tela. A última cena só chegará ao espectador sentado no final da sala após o intervalo de tempo que a luz demora para chegar até ele.
Então, para que todos os relógios estejam sincronizados, suas leituras devem ser corrigidas pelas suas posições na sala. E não é apenas isso. Sabemos que, de fato, o caminhar tempo não é absoluto. Relógios em movimento e com velocidades diferentes indicarão intervalos de tempo diferentes. Portanto, pode haver uma contração do tempo ou dilatação do espaço medidos por observadores diferentes. Queria Dali representar todos esses resultados “exóticos” da Teoria da Relatividade com seus relógios maleáveis? Conhecia ele esses resultados em 1931?
A partir de 1921, enquanto realizava seus estudos em Madrid, Dali e seus companheiros Garcia Lorca e Luiz Buñuel residiram na famosa Residência de Estudantes, cujo objetivo principal era criar um ambiente intelectual que estimulasse uma ampla formação artística e científica dos estudantes. Naquele período, a Residência recebeu conferências de Albert Einstein, Paul Valéry, Marie Curie, Igor Stravinsky, John M. Keynes, Alexander Calder, Walter Gropius, Henri Bergson, Le Corbusier e muitos outros. Conta-se que Einstein teria recebido 3.000 pesetas pela conferência, o equivalente a um ano do salário dos professores.[lix]
Os exóticos resultados da Teoria da Relatividade, a curiosa desintegração radioativa descoberta por Marie Curie e as discussões entre Henri Bergson[lx] e Albert Einstein sobre o tempo na Teoria da Relatividade consumiam as calorosas discussões. Assim, podemos considerar que Dali conhecia os resultados principais da teoria de Einstein que identificamos em sua tela. Além, é claro, dos conceitos psicanalíticos básicos.
Segundo depoimento de José Moreno Villa, pintor e colega que também morava na Residência, Dalí estava constantemente lendo seu livro inseparável, A Interpretação dos Sonhos.[lxi] Portanto, não seria demais supor que ele tentasse representar na Persistência da Memória uma colagem de todos esses resultados “exóticos”, empregando imagens aparentemente oníricas e não menos exóticas. Aliás, num outro contexto, Dali disse que “a Física deve formar a nova geometria do pensamento”.[lxii]
Como é conhecido, as referências às ciências acompanharão toda a obra de Dali. A principal razão é que o desenvolvimento da Mecânica Quântica, da Física Nuclear e da Biologia produziu resultados tão distantes do senso comum, tão desconcertantes, que propiciavam imagens que ultrapassavam de longe as imagens oníricas mais extravagantes. Dualidade onda-partícula, Princípio da Incerteza, quantização da energia e de quase tudo, raios cósmicos, neutrinos “gelatinosos”, bombas nucleares, antipartículas, antimatéria, molécula de DNA… Em 1958, foi Dali quem nos revelou, no famoso Manifesto Anti-Matéria, qual era a sua nova fonte de inspiração imagética: “No período surrealista, quis criar a iconografia do mundo interior e do mundo maravilhoso do meu pai Freud … Hoje, o mundo exterior e o da física transcenderam o mundo da psicologia. Meu pai hoje é o dr. Heisenberg.”[lxiii]
Ademais, as explosões das bombas atômicas lhe provocaram forte impacto, conforme relatou a André Parinaud: “A explosão atômica de 6 de agosto de 1945 me abalou sismicamente. A partir desse momento, o átomo foi meu tema preferido de meditação. Muitas das paisagens pintadas naquele período expressam o grande medo provocado em mim pelo anúncio dessa explosão.”[lxiv] Mestre na arte do sensacionalismo e em provocar escândalos[lxv], os títulos das obras de Dali sempre foram extravagantes: Idilio atómico y uránico melancólico (1945); Equilibrio intraatómico de una pluma de cisne (1947); La desmaterialización de la nariz de Nerón (1947); Leda atómica (1947-1949); Corpus hipercubicus o Crucifixión (1954); Santa Cercada por Três Mésons Pi (1956); GALACIDALACIDESOXIRIBUBUCLEICACID (Hommage to Crick and Watson); entre tantos outros.
Dentre essas obras, há uma que demonstra o quanto Dali acompanhava as pesquisas científicas: A Desintegração da Persistência da Memória, de 1954. Isso mesmo, o pintor “desintegra” sua obra mais famosa. Ou melhor, ele atualiza os “conhecimentos” científicos que ela representava.
Aos resultados das teorias dos “pais” Freud e Einstein são acrescentadas algumas ideias do “pai Heisenberg”, além de mensagens pacifistas. Ao mundo contínuo da tela anterior, que é previsto pelas equações da Teoria da Relatividade, foi juntado o mundo “quantizado” da Mecânica Quântica. Os objetos sólidos estão agora compostos por unidades separadas, dispostas como são de fato os átomos no interior dos sólidos, sem se “tocarem” mecanicamente, mantendo rígida a estrutura por meio de forças que atuam à distância. Além disso, curiosamente, uma onda invadiu a natureza submergindo quase todos os objetos e “partículas” que a compõem. Seria uma referência à dualidade quântica onda-partícula? Como se sabe, quanticamente, fótons, elétrons, prótons, átomos, em suma todos os objetos sofrem de uma espécie de esquizofrenia, uma dualidade no seu comportamento. Dependendo da situação, ora se comportam como partículas, ora como ondas, numa dualidade intrínseca.
Por outro lado, percebemos também nesse quadro de 1954 que os relógios mantêm a forma flexível da tela original, indicando a persistência da noção relativística de tempo. Se assim for, ao menos na pintura teria havido a “unificação”, tão sonhada pelos cientistas, da Teoria da Relatividade com a Mecânica Quântica, essas duas teorias em princípio conflitantes quanto à descrição contínua ou quantizada da natureza.[lxvi]
Vemos ainda nas colagens de A Desintegração da Persistência da Memória que o pintor continua sonhando e que seu relógio foi danificado, ou melhor, seu “tempo próprio” foi perturbado, talvez pelo “abalo sísmico” que a explosão da bomba atômica provocou em Dali. Outra indicação desse “abalo” é a substituição das formigas destruidoras pelos inúmeros projéteis de fuzis, ainda mais destruidores, que invadiram a paisagem sacrificando o peixe, possivelmente representando o extermínio dos seres vivos.
E mais: curiosamente, a moldura do relógio central é formada por esses projéteis, além de outros que o circundam, como que a aprisioná-lo, indicando que o nosso tempo está dominado pelas armas. Todavia, é importante observar que o pintor se metamorfoseou, não num “inseto gigante e asqueroso”, mas num ser igualmente monstruoso que se assemelha ao peixe a seu lado, pois também está submerso e até as colorações laterais das caldas são idênticas. Quem sabe, uma referência à desumanização provocada pelas guerras. Ou, como Theodor Adorno dizia das “parábolas de Kafka”, o sujeito confessando sua própria impotência diante da “potência absoluta do mundo das coisas”, isto é, “epopeias negativas” que “testemunham um estado em que o indivíduo se liquida a si mesmo.” [lxvii]
Aonde nos levou esse rápido exame de duas telas específicas de Dali? Em primeiro lugar, à comprovação de que realmente, na iconografia do pintor, a Física e o “mundo exterior” devastado pela guerra superaram o “mundo da psicologia” na produção de imagens extravagantes. O que nos leva ao principal: do ponto de vista artístico, as ciências, e a Física em particular, apenas serviram de “tema de reflexão” e de fonte inesgotável de imagens “surreais” e sensacionalistas que falam de perto ao propósito de Dali.
Se essas imagens parecem irreais e oníricas, é simplesmente porque o novo mundo relativístico-quântico também parece sê-lo, quando, é claro, comparado ao mundo de nossa vida cotidiana governado por Galileu, Newton e Maxwell. Dessa forma, as pinturas “surrealistas” de Dali são a própria negação da ideia original do movimento. Nelas, não há nada de “automatismo psíquico” nem de inconsciente. Frutos de muito trabalho racional e de “estudos” científicos, suas obras buscam representar a sociedade e a natureza tal qual foi desvendada pela Física Moderna, pelos “pais” Einstein e Heisenberg, segundo, é claro, a interpretação do pintor.
Nesse sentido, poderiam ser consideradas um realismo dos novos tempos, pois tentam representar a realidade concreta escondida de nossos enganadores sentidos, isto é, o mundo que está aqui ao nosso lado, mas longe do alcance de nossos olhos ingênuos.
Finalmente, cabe ressaltar que essa relação, digamos, de exterioridade da física com o surrealismo de Dali está muito distante do nexo intrínseco, que procuramos explicitar em capítulos anteriores, que as ciências, e o método científico em particular, teceram com algumas importantes correntes da música, da literatura e da pintura ao longo do século 19. Como disse Émile Zola no seu Romance experimental: “O retorno à natureza, a evolução naturalista que carrega o século, empurra pouco a pouco todas as manifestações da inteligência humana na mesma via científica.”[lxviii]
No caso específico da pintura, mostramos por exemplo que no “impressionismo científico” de Seurat e Signac a ciência nunca foi tomada como “objeto” exposto nas telas, diferentemente das pinturas de Dali. Porém, a estrutura profunda e a execução das obras “pontilhistas” eram fundadas no conhecimento científico sobre as cores.[lxix] Vimos também que a pesquisa das cores e de execução empreendida pelos impressionistas partiu de uma representação contínua da natureza e sua evolução foi dar numa representação “quantizada” da mesma, numa antecipação notável da evolução da própria descrição científica do mundo. Tudo se passou como se o Zeitgeist tivesse suscitado questões comuns a disciplinas assim tão diversas como a Física e a pintura. É importante enfatizar que essa “quantização” no “pontilhismo” tinha função puramente estética, era a essência da técnica de divisão, não pretendia simular um mundo atomizado, como foi a tentativa de Dali em A Desintegração da Persistência da Memória.
Esquematizando. A análise de alguns aspectos da pintura daliniana mostrou que, pelo menos no pintor mais popularmente associado ao surrealismo, sua obra está muito distante da definição original de Breton baseada numa “execução artística livre da ação da razão”. Esse caso particular, contudo, expõe a contradição que afeta todo o movimento surrealista, desde o seu início: o descompasso entre intenção e resultado da obra. Pretendendo ser revolucionário com uma suposta origem inconsciente das imagens e numa tentativa de expressão artística por um automatismo psíquico sem um filtro racional, o que o surrealismo acabou por revolucionar foi a própria linguagem artística.
Como bem notou Theodor Adorno, a radicalidade do surrealismo foi a destruição da linguagem artística tradicional, via colagem de imagens aparentemente oníricas, mas que, em verdade, foram obtidas com grandes esforços intelectuais. Muito pouco, ou quase nada, há de inconsciente nas suas obras. Conforme disse Freud, há muito mais de inconsciente nos pintores antigos do que nos surrealistas. No entanto, foi essa grande ilusão do projeto original surrealista que, paradoxalmente, revolucionou a arte do século XX.
*Edilson Crema é professor titular do Departamento de Física Nuclear da Universidade de São Paulo (USP).
Notas
[i] Hugo Ball, “Lorsque je fondis le Cabaret Voltaire …” (facsimile from Cabaret Voltaire), Zurich, maio de 1916.
[ii] Richard Huelsenbeck, En Avant Dada: A History of Dadaism, p. 24, Paul Steegemann, Verlag, Hannover, 1920. (Traduzido para o inglês por Ralph Manheim)
[iii] Idem, ibidem, p. 24.
[iv] Idem, ibidem, p. 26
[v] Idem, ibidem, p. 41
[vi] Laurent Tailhade, in John Rewald, Le post-impressionnisme, vol. I, p. 154, Albin Michel, Paris, 1961
[vii] Ernest Raynaud, in Pierre Aubery, L’Anarchisme des littérateurs au temps du symbolisme, Le Mouvement Social, Nº 69, pp. 21-22, Éditions l’Atelier, Paris, 1969
[viii] Teodor de Wyzewa, cit. in John Rewald, Le post-impressionnisme, vol. I, p. 151, op. cit.
[ix] Marc Chagall, in Herbert Read, Histoire de la Peinture moderne, p. 161, Éditions Aimery-Somogy, Paris, 1960.
[x] Esta foi, aliás, a opinião inicial de Breton sobre Chirico, embora mais tarde venha a criticá-lo acidamente.
[xi] Sigmund Freud, Os Sonhos, Obras Completas de Sigmund Freud, I, p. 723, Biblioteca Nueva, Madrid, 1973.
Todavia, em 1937, já no final de sua vida, Freud justifica nos seguintes termos sua recusa em participar, a convite de Breton, da publicação de uma antologia intitulada Trajetória do Sonho: “Uma antologia de sonhos, sem as associações que a eles se vêm acrescentar, e sem o conhecimento das circunstâncias em que o sonho teve lugar, tal antologia, para mim, não quer dizer nada, e mal posso imaginar o que ela possa querer dizer aos outros”. (Sigmund Freud, cit. in Elizabeth Roudinesco, História da Psicanálise na França, vol. 2, p. 48, Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1988)
[xii] André Breton et Phillippe Soupault, Les Champs Magnétiques, Littérature, nº 8, 9 e 10, Paris, 1919.
[xiii] No entanto, cabe precisar que um outro Manifesto do Surrealismo foi publicado duas semanas antes do de Breton, na revista Surréalisme, com a participação de Yvan Goll, Picabia, Tzara, Reverdy, Delaunay e outros.
[xiv] Walter Benjamin, O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia, in Obras Escolhidas, p. 22, Brasiliense, 1987.
[xv] Cf. J-François Fourny, De Dada au Surréalisme, Revue D’Histoire Littéraire de la France, 5, p. 865, 1986.
[xvi] Michel Sanouillet, Dada à Paris, Pauvert, Paris, 1965.
[xvii] Noël Arnaud et Pierre Prigioni, Dada et Surréalisme in Le Surréalisme, p. 354, Paris, Mouton, 1965.
[xviii] Georges Hugnet, cit. in Herbert Read, Histoire de la Peinture moderne, op. cit., p. 164.
[xix] André Breton, Manifeste du Surréalisme- Manuscrit, pp. 9-10, 1924, Bibliothèque National de France, Département de Manuscrits (NAF29034). Entretanto, a descoberta, em 1982, e a publicação dos fac-símiles dos manuscritos originais de Les Champs Magnétiques, em 1998, mostram que houve, sim, uma preocupação com o estilo e a escrita, pois foram encontradas surpreendentes rasuras, redações diversas, acréscimos e deslocamentos. (André Breton et Phillippe Soupault, Les Champs Magnétiques, Le manuscrit original fac-similé et transcription, Lachenal et Ritter, Paris, 1998.)
[xx] Capítulo anterior deste livro discutiu como a evolução da música ao longo do século 19 foi desaguar nas transformações radicais na virada do século.
[xxi] André Breton, Manifeste du Surréalisme- Manuscrit, op. cit., p. 11
[xxii] Walter Benjamin, O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia, op. cit., p. 32
[xxiii] André Breton, Qu’est-ce que le surréalisme ? pp. 231-232, Bruxelles, 1934
[xxiv] André Breton, The Situation of Surrealism Between the Two Wars, Yale French Studies, No. 2, p. 74, 1948.
[xxv] Idem, ibidem, pp. 74-75
[xxvi] Theodor Adorno, Notes sur littérature, pp. 42-43, Flammarion, Paris, 1984.
[xxvii] André Breton, Léon Trotsky : Lénine, La Révolution Surréaliste, nº 5, p. 29, Gallimard, Paris, 1925.
[xxviii] Breton revela que, durante um interrogatório de admissão no partido, “Michel Marty gritou para um de nós: ‘Se você é marxista, você não precisa ser surrealista’. (…) Que miséria!” (André Breton, Second Manifeste Surréaliste, La Révolution Surréaliste, nº 12, p. 6, Décembre 1929)
[xxix] Ver a respeito Marie-Claire Bancquart, 1924-1929: Une Année Mentale, La Révolution Surréaliste, nº 12, pp. VII-X, Gallimard, Paris, 1929.
[xxx] Le Surréalisme au service de la Révolution, José Corti, Paris, 1930.
[xxxi] André Breton, Qu’est-ce que le surréalisme ? op. cit., p. 246 (grifos do autor).
[xxxii] Walter Benjamin, O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia, op. cit., pp. 33-34
[xxxiii] Idem, ibidem, p. 35
[xxxiv] Elizabeth Roudinesco, História da Psicanálise na França, vol. 2, op. cit. p. 47. A esse respeito, ver também O surrealismo como movimento revolucionário, de Michael Löwy, que ressalta a “insistência” de Breton na “importância decisiva” de Hegel para o surrealismo, in A Terra é Redonda, 02 de novembro de 2024.
[xxxv] André Breton, Second Manifeste du Surréalisme, La Révolution Surréaliste, nº 12, p. 1, Décembre 1929.
[xxxvi] Idem, ibidem, p. 5
[xxxvii] Idem, ibidem, p. 5
[xxxviii] Elizabeth Roudinesco, História da Psicanálise na França, vol. 2, op. cit., p. 47
[xxxix] É esse renascimento do hegelianismo na cultura francesa dos anos 1930, e o impacto da leitura sistemática da Fenomenologia do Espírito nos cursos ministrados por Kojève, que Theodor Adorno ignorou completamente quando escreveu em seu ensaio de 1956 sobre o surrealismo: “É pouco provável que algum dos surrealistas tenha conhecido a Fenomenologia do Espírito de Hegel.” (Theodor Adorno, Le surréalisme: Une Étude Rétrospective, Notes sur littérature, op. cit., p. 68). Adorno desconheceria o Segundo Manifesto? Ademais, convém lembrar que Breton foi um dos frequentadores desses cursos de Kojève, aliás reunidos e publicados em 1947 por Raymond Queneau, cujo vínculo com o surrealismo é conhecido.
[xl] Alexandre Kojève, Introduction à la Lecture de Hegel, pp. 427-433, Gallimard, Paris, 1947.
[xli] Idem, ibidem, p. 63
[xlii] Cf. Michael Löwy, Leon Trotsky e a arte revolucionária, in A Terra é Redonda, 09 de agosto de 2020.
[xliii] Arnold Hauser, A História Social de Literatura e da Arte, p. 1125, Mestre Jou, São Paulo, 1972.
Vale lembrar aqui o que Benjamin afirmara sobre Proust, em outro ensaio de 1929: “Toda intepretação sintética de Proust deve partir necessariamente do sonho. (…) Proust não se cansava de esvaziar com um só gesto o manequim, o Eu, para evocar sempre de novo o terceiro elemento: a imagem, que saciava sua curiosidade, ou sua nostalgia. Proust ficava no leito acabrunhado pela nostalgia, nostalgia de um mundo deformado pela semelhança, no qual irrompe à luz do dia o verdadeiro rosto da existência: o surrealista. Pertence a esse mundo tudo o que acontece a Proust… (…) A la recherche du temps perdu é a tentativa interminável de galvanizar toda uma vida humana com o máximo de consciência. O procedimento de Proust não é a reflexão, e sim a consciência. (Walter Benjamin, A imagem de Proust, in Obras Escolhidas, pp. 39-46, Brasiliense, 1987.)
[xliv] Theodor Adorno, Notes sur la Littérature, pp. 66-68, Flammarion, Paris, 1984
[xlv] André Breton, Manifeste du Surréalisme- Manuscrit, op. cit., pp. 14-16
[xlvi] Max Morise, Les yeux enchantés, La Révolution surréaliste, n° 1, p. 26, Paris, 1924.
[xlvii] Idem, ibidem, pp. 26-27
[xlviii] Pierre Naville, Beaux-Arts, La Révolution surréaliste, n° 3, p. 17, Paris, 1925.
[xlix] André Breton, Manifeste du Surréalisme, Poisson Soluble, Éditions du Sagittaire, Paris, 1924.
[l] André Breton, Le surréalisme et la peinture, La Révolution Surréaliste, nº 4, pp. 26-30, Gallimard, Paris, 1925.
[li] André Breton, Le surréalisme et la peinture, p. 61, Paris, Gallimard, 1965.
[lii] Idem, ibidem, pp. 91-92
[liii] André Breton, Le surréalisme et la peinture, La Révolution Surréaliste, nº 4, op. cit., pp. 27-28.
[liv] André Breton, Le surréalisme et la peinture, pp. 75-76, Paris, Gallimard, 1965.
[lv] Kandinsky, Du Spirituel dans L’Art, pp. 24-25, Éditions de Beaune, Paris, 1963
O surgimento e o desenvolvimento do expressionismo são discutidos em capítulo anterior deste livro.
[lvi] Esprit Jouffret, Traité Élémentaire de Géométrie a Quatre Dimensions et Introduction à la Géométrie à n Dimensions, p. 192, Gauthier-Villars, Paris, 1903
[lvii] Guilhaume Apollinaire, Les Peintres Cubistes, pp. 20-22, Éditeurs Eugène Figuière et Cie, Paris, 1913
[lviii] Salvador Dali, L’Âne pourri, Le Surréalisme au service de la Révolution, p. 9, José Corti, Paris, 1930.
É interessante lembrar que, logo após a publicação desse artigo, Dali foi procurado por Lacan, que preparava sua tese sobre a paranoia. As discussões entre eles foram importantes para o trabalho de Lacan, cuja publicação foi saudada pelo pintor como um “aval científico” a seu método “paranoico-crítico”. (Cf. Elizabeth Roudinesco, História da Psicanálise na França, vol. 2, op. cit., pp. 127-128). Já com Freud, a conversa era outra. Lembremos do último comentário de Freud sobre o surrealismo, numa carta a Stefan Zweig, de 20 de julho de 1938, logo após ter recebido Dali, que acabara de fazer o seu retrato: “É que até então, ao que parece, eu me sentia tentado a considerar os surrealistas, que aparentemente me escolheram como santo padroeiro, como totalmente loucos (digamos, noventa e cinco por cento, como o álcool absoluto). O jovem espanhol, com seus ingênuos olhos de fanático e sua inegável maestria técnica, incitou-me a reconsiderar minha opinião. Seria de fato muito interessante estudar analiticamente a gênese de um quadro desse gênero. Do ponto de vista crítico, entretanto, sempre se poderia dizer que a noção de arte se recusa a qualquer extensão quando a relação quantitativa entre o material inconsciente e a elaboração pré-consciente não se mantém dentro de limites determinados. Trata-se, de qualquer modo, de sérios problemas psicológicos.” (S. Freud, cit. in E. Roudinesco, op. cit., pp. 48-49).
[lix] https://www.residencia.csic.es
[lx] Cf. Henry Bergson, Durée et simultanéité, Presse Universitaire de France, Paris, 1998.
[lxi] Centro Carme Ruiz de Estudios Dalinianos, Fundación Gala-Salvador Dalí, Figueres, España
[lxii] Idem, ibidem.
[lxiii] Salvador Dali, cit. in Salvador Dalí y la ciencia, más allá de una simple curiosidad, Centro Carme Ruiz de Estudios Dalinianos, Fundación Gala-Salvador Dalí, Figueres, España
[lxiv] Salvador Dali, in The Unspeakable Confessions of Salvador Dalí, p. 216, William Morrow and Co., New York, 1976
[lxv] Inclusive o abominável escândalo de sua adesão ao franquismo, que o levou a ser expulso definitivamente do movimento surrealista em 1939. Até o final de sua vida, Dali se humilhou para se encontrar com Franco e para receber benesses do regime. (Cf., por exemplo, Josep Massot, O dia em que Dalí se vestiu de almirante para receber Franco, El País, 27 de junho de 2020). Na conferência em Yale, em 1942, Breton, referindo-se a Dali como Avida Dollars, afirma: “(…) Avida Dollars, dourando com academismo obsequioso o retrato do embaixador espanhol, isto é, do representante de Franco, aquele monstro a quem o autor do retrato deve precisamente a opressão de seu país, para não mencionar a morte do melhor amigo de sua juventude, o grande poeta Garcia Lorca”. (Breton, The Situation of Surrealism Between The Two Wars, Yale French Studies, No. 2, p. 74, 1948)
[lxvi] As relações complexas entre a Teoria da Relatividade e a Mecânica Quântica são analisadas num capítulo deste livro. Um outro capítulo tenta desentranhar o nexo interno subjacente à coincidência temporal entre o surgimento dos conceitos fundamentais do atomismo e os da psicanálise. Embora o atomismo tenha sido formulado por Demócrito e Leucipo no século 4 A.C., sabe-se que o início da compreensão do funcionamento dos átomos se deu apenas em 1900, com a tese de Planck, embrião da Mecânica Quântica. Por outro lado, como tampouco se ignora, a compreensão do fenômeno histérico, descrito e nomeado por Hipócrates no século 4 A.C., só foi alcançada a partir dos anos 1880 com Charcot, e concluída posteriormente por Freud, também em 1900, na Interpretação dos Sonhos. Seria apenas temporal essa coincidência? Não, longe disso. Essas duas revoluções ocorreram justamente num período de transformações radicais na música, na pintura e na literatura, como se o espírito do tempo estivesse a exigir saltos criativos inovadores, como se todas essas revoluções se estimulassem reciprocamente. Ademais, naquele ambiente, por assim dizer, de fervor revolucionário, a Psicanálise e a Mecânica Quântica se viram ambas forçadas a lidar com contrários, comportamentos antagônicos de seus objetos de estudo, cujas naturezas fugidias obrigavam os estudiosos a aguçarem suas sensibilidades para compreender informações truncadas e indiretas, cujas interpretações exigiam saltos teóricos até então incompatíveis com o espírito científico tradicional. Como compatibilizar e incluir numa teoria científica o eu e o não-eu, o ser com o seu oposto, a onda e a partícula, o consciente e o inconsciente? Como tratar, rigorosamente, a incerteza inerente à natureza e aos homens? Esses desafios comuns enfrentados por essas duas teorias todavia tão díspares, e que definiram a feição científica e cultural do século 20, são expostos neste livro.
[lxvii] Theodor Adorno, Notes sur littérature, pp. 42-43, Flammarion, Paris, 1984.
[lxviii] Émile Zola, Le roman expérimental, p.1, G. Charpentier, Paris, 1881
[lxix] Cf. em especial Paul Signac, D’Eugène Delacroix au néo-impressionnisme, Éditions de la Revue Blanche, Paris, 1899
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA