Filme antigo

Imagem: Lara Mantoanelli
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por HERALDO CAMPOS*

Devastação, genocídio e desgoverno parecem remake de enredo de outra ditadura, mas com outros atores e cenários mais sofisticados

Parece um filme antigo. Esse filme que estamos vendo agora com a retirada ilegal e criminosa de madeira da Amazônia parece remake de enredo de outra ditadura, mas atualmente com outros atores e cenários mais sofisticados.

Em Ubatuba, município de forte vocação turística localizado no Litoral Norte do Estado de São Paulo, nos anos 80 do século passado, a extração de granito verde corria solta e a fiscalização do governo federal era pífia. Do imposto que deveria ser recolhido por causa da sua extração, para sua posterior comercialização, o antigo IUM (Imposto Único Sobre Minerais), quase nada ficava para o município que era o território que mais sofria pela prática predatória na retirada desse tipo de minério, geologicamente bem raro, e usado para o chamado “revestimento fino” na construção civil.

Grandes blocos (paralelepípedos com algumas toneladas) eram exportados para a Europa, Estados Unidos, e Japão e não eram difíceis de serem identificados, a olho nu, sobre as grandes carretas que trafegavam pelas estradas federais da região. Só não via quem não queria. Muita polêmica sobre possíveis tragédias ambientais foi gerada na época como essa declaração, por exemplo, do autor desse artigo, divulgada pelo jornal “O Estado de S. Paulo” em 26/09/1985: “Se as chuvas previstas para o mês de novembro podem ocasionar uma tragédia em Cubatão devido à destruição da cobertura da Serra do Mar naquela região, o mesmo deverá ocorrer em Ubatuba, com as clareiras abertas indiscriminadamente pela mineração nas encostas dessa serra no município”. [1]

Depois dessa fase, de destruição flagrante da Mata Atlântica, com interferência direta nos recursos hídricos da região, por causa do material (solos e rejeitos da mineração) que era arrastado para os corpos d’água pelas águas de precipitação, o movimento da sociedade e o aprimoramento da legislação ambiental, tanto na esfera federal como estadual, conseguiram brecar, anos depois, esse tipo de atividade em benefício do meio ambiente e da população que vive no seu entorno.

Nos dias de hoje, essa barbaridade das toras de madeiras ilegalmente extraídas da Amazônia indica que é mais ou menos por aí o caminho planejado e a “logística” desse governo de plantão. Só não vê quem não quer. A quantidade e o volume são de tal tamanho que é impossível encobrir com uma lona e passar despercebido pelas alfandegas dos portos e da vida. As imagens divulgadas pelas TVs são assustadoras. As pilhas de toras de madeira não são da dimensão de um saquinho de esmeraldas que, não por acaso, havia sido contrabandeado por gente conhecida daquele outro governo militar, que durou de 1964 a 1985.

Precisamos ficar atentos porque, analogamente à proliferação de novas cepas do coronavírus, que se espalham mundo afora e aumentam nossa agonia com a contaminação e a propagação da doença, outras “cepas” na administração publica federal vão sendo criadas. Os noticiários diários das TVs e das várias plataformas de divulgação da mídia revelam essa perversa realidade brasileira.

A “CPI do Genocídio”, que está em curso pelo Senado Federal tem revelado que estamos de mal a pior na área da saúde pública na condução do trágico problema da pandemia do coronavírus e se vier outra “onda de queimadas” na Amazônia, para agravar mais ainda esse quadro, não devemos nos surpreender com mais essa má aplicação dos recursos econômicos, pagos com nossos impostos. “No final das contas, sai muito mais caro ao poder público cuidar de uma população doente porque os ouvidos estão voltados aos grupos poderosos que só pensam no lucro fácil e imediatista. Ou seja, estão nos matando, pouco a pouco, e se essa postura não mudar rápido, pelo visto, vamos ter que tossir até estourar os pulmões.” [2]

“Por outro lado, espera-se que se torne uma realidade, também, a “CPI da Devastação”, que está em gestação na Câmara dos Deputados, pois se essa investigação correr em paralelo à “CPI do Genocídio” pode sedimentar as atrocidades de um processo destruidor em curso, sendo que a sua fase de execução foi iniciada desde o dia da posse em 01/01/2019.” [3]. A criação dessa segunda CPI, mais voltada para os crimes ambientais que vêm ocorrendo nessa triste parte do planeta em que está localizado o nosso país, se complementaria com a primeira, já em funcionamento.

Nesse momento toda atenção é pouca. Lembra-se que a água é um bem público e não deve ser considerada como uma “commodity” ou uma mercadoria. Porém, como esse precioso líquido está vinculado “carnalmente” à questão do desmatamento das florestas, pode ser a próxima bola da vez para deixar passar a “boiada nas águas”. “Além disso, ressalta-se que o seu uso não deve causar impacto de qualquer natureza como, por exemplo, a contaminação dos solos e das águas por elementos, compostos ou organismos que possam prejudicar a saúde do homem ou de animais.” [4]

Assim, do que compreendemos dessa nossa histórica política recente, o atual presidente vendeu bem o “peixe” durante a sua campanha eleitoral e chegou ao poder com seu discurso conservador para a classe dominante. “E, assim, não vamos nos iludir porque parece que ele vem cumprindo a palavra. Esse governo federal, militarizado, é um governo destruidor, demolidor, como poucos existiram na nossa frágil história democrática. O que esse governo prega, e tenta executar sem o menor pudor, parece que vem sendo materializado pelos 57 milhões de votos recebidos num projeto da obra do mal e em velocidade galopante.” [5]

Para concluir, a “CPI do Genocídio” pode ser a esperança que, ao seu final, pode levar esse governo à condenação e sua destituição do poder, pelas vias legais, porque não estamos aguentando mais essa situação que perdura mais de dois anos e matou mais de 448 mil brasileiros por causa do coronavírus. “A mentira e a manipulação colocam a vida das pessoas íntegras em risco” (Ailton Krenak).

*Heraldo Campos, geólogo, é pós-doutorado pelo Departamento de Hidráulica e Saneamento da Escola de Engenharia de São Carlos-USP.

Notas


[1] https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19850926-33918-nac-0072-999-72-not/busca/Heraldo+Campos

[2] https://www.brasil247.com/blog/a-queimada-e-nossa

[3] http://cacamedeirosfilho.blogspot.com/2021/05/agora-melou.html?view=magazine

[4] https://blogdogersonnogueira.com/2020/06/28/a-boiada-nas-aguas/

[5] https://dpp.cce.myftpupload.com/a-reforma-de-fachada

 

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
As origens da língua portuguesa
Por HENRIQUE SANTOS BRAGA & MARCELO MÓDOLO: Em tempos de fronteiras tão rígidas e identidades tão disputadas, lembrar que o português nasceu no vaivém entre margens – geográficas, históricas e linguísticas – é, no mínimo, um belo exercício de humildade intelectual
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES