Por JOÃO GASPAR*
A questão venezuelana é realçada por uma miríade de interesses, em maior ou menor grau conflitantes entre si, de segmentos da grande classe capitalista mundial e das elites dirigentes nacionais
Abordar a “Questão venezuelana” é complexo, por um lado, devido à proximidade histórica dos eventos em relação ao estudo, pelo que sempre se tem a sensação de se estar desatualizado quanto aos “fatos”; e, por outro – ainda mais se se quer fazê-lo de forma crítica –, pela multiplicidade de expressões da empresa capitalista que atuam no cenário venezuelano, não raro concorrendo entre si, por esquemas ainda não muito claros. É necessário, porém, ainda que com tais dificuldades, prosseguir com tal pesquisa, para a ampliação do debate público brasileiro sobre a temática, para além das “análises” narrativo-padronizadinhas da grande mídia brasileira e daquelas ideológico-panfletárias de canais ditos alternativos e independentes, que vêm mais a obstaculizar as discussões pelo encantamento que lançam sobre a intelectualidade nacional do que a fomentá-las, verdadeiramente.
Neste brevíssimo ensaio, assim, intento explorar materialmente a atuação do Brasil frente à presente temática, levando em conta tanto os interesses como os mecanismos político-econômicos os quais vêm a informar e constranger a ação dos diversos atores “estatais” considerados, aqui, como os envolvidos na “Questão Venezuelana”, quais sejam, EUA/ UE (centro ocidental do capitalismo), Estado Venezuelano (elite PSUVista) e Brasil, no viso de avaliar como se vem portando nossa Política Externa. Agradeço, nesse sentido, àqueles que direta ou indiretamente ajudaram-me na construção do texto, em especial aos caros servidores do Itamaraty que se dispuseram a debater comigo alguns pontos da PEB atual.
Pois bem. Por “Questão venezuelana” refiro-me à problemática, realçada no após-eleições venezuelanas de 2024, que se coloca hodiernamente aos formuladores de nossa política externa no que tange ao trato do drama venezuelano, o qual remonta à ascensão ao poder de Hugo Chávez, no início do presente século, quando do início da “onda rosa” latino-americana, e ao choque que significaram os câmbios por ele introduzidos naquele país frente aos interesses do centro capitalista ocidental, leia-se, dos EUA e da União Europeia, particularmente quanto ao regime de propriedade de firmas ligadas ao petróleo, bem como, e principalmente, aos desdobramentos vindouros da história venezuelana e das suas relações com as potências ocidentais.
A obstaculização, nesse sentido, da construção do dito “socialismo do século XXI” (caracterizada pela implementação de políticas nacional-desenvolvimentistas, redistributivas, revisionistas/educativas, anti-imperialistas e pan-americanistas), pela pressão euro-estadunidense sobre a economia e imagem venezuelano-bolivarianistas, de um lado, que impõe duras sanções àquela nação sob governo PSUVista e que agressivamente se esforça pela sua deslegitimação e queda, e, de outro, pela cristalização da revolução na figura errático-caricatural de Nicolás Maduro, após a morte de Chávez, ponto talvez de inflexão para a transformação da Venezuela em verdadeiro núcleo de instabilidade da periferia americana – antes no sentido de se mostrar qual um enguiço para a política regional que como um ator de fato contra-hegemônico, desestabilizador do poder imperial (que é como se apresenta oficialmente).
Nesse sentido, sem os carisma e sensibilidade política do seu padrinho político, Maduro acabou por conduzir o bolivarianismo em direção a um conservadorismo que, tendo aparelhado as instituições do Estado, de tudo fez (e segue fazendo) para assim as manter, instrumentalizando o autoritarismo, no plano interno, e o belicismo, no externo, num diversionismo por que intenta desesperadamente plasmar o apoio da população e de Estados periféricos e/ou não-alinhados [ao centro ocidental do Sistema Internacional] ao bloco PSUVista, como o comprovam a violência infligida à dissidência, vista em crescente nos último anos, e a recente mobilização dos instrumentos de democracia participativa e do discurso oficial venezuelanos em prol da anexação do território de Essequibo, tudo em prol da classe dirigente venezuela e dos seus interesses materiais, por capital e poder político.
Há, destarte, uma miríade de interesses, em maior ou menor grau conflitantes entre si, de segmentos da grande classe capitalista mundial e das elites dirigentes nacionais dos diversos atores envolvidos, a moldar o ambiente regional em que operam os tomadores de decisão brasileiros, em sua tradição burguesa-nacionalista, resgatada em Lula III, de busca por um melhor posicionamento na hierarquia do Sistema Internacional.
Nesse contexto, avalio que, levando muito em conta o que me disseram, sob condição de anonimato, diplomatas brasileiros com que conversei, o Brasil, não “passando pano” para incongruências entre prática e discurso, nem menos ainda para claras violações dos Direitos Humanos reconhecidos universalmente no âmbito das Nações Unidas – vide notas à imprensa do Itamaraty, expressando preocupação, desaprovação etc., tanto quanto às ações e omissões do Estado venezuelano, como quanto às sanções euro-estadunidenses contra o mesmo –, vem trabalhando incansavelmente com vistas à preservação de canais de diálogo interestatal, como se apercebe no não-revide, por parte do Ministério das Relações Exteriores, às críticas proferidas por órgãos e autoridades venezuelanas contra seus servidores em geral e alguns dos seus mais importantes nomes, como, por exemplo, Celso Amorim, Mauro Vieira e Eduardo Paes Saboia (como se a PEB não passasse pelo Presidente da República, ou seja, por Lula!), bem como no pacifismo[-quase-beirando-a-ingenuidade] de, oficialmente, ainda estar o país esperando a divulgação oficial das tão comentadas atas eleitorais, na medida em que corretamente entende nossa diplomacia que se mostram “contraproducentes” tanto o sentir-se ofendido com as agressões (e um revide, mais ainda, pelo que apenas expressamos nossa “surpresa”), como a direta rejeição do resultado anunciado pelo Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela, enquanto ações com alto potencial de travar nosso diálogo.
E isso, à luz do esforço deliberado da nossa diplomacia por apresentar o país à comunidade de nações como tendo independência, estabilidade, continuidade institucional, credibilidade e parcimônia suficientes para, por exemplo, possamos atuar como mediadores em eventuais contendas, para nos seja possível definir, em maior grau, agendas da política internacional no âmbito de instituições internacionais etc, enfim, para nos aproximemos dos centros de poder mundial, com vistas, ao fim e ao cabo, à atração de investimentos diretos (que, paradoxalmente, nossa elites veem positivamente, em seu projeto) e à conquista de maiores fatias de mercados estrangeiros (paradoxalmente preferidos pelas nossas elites àquele nacional, interno), conforme o vigente projeto classista de base primário-exportadora (ao qual serve nossa tradição jurídico-multilateralista de PE).
Outrossim, na medida em que entendo ser o pragmatismo característica central do modus operanti da PEB (em linha com o exposto anteriormente) – o qual se pode apreender, por exemplo, da aparente contradição entre, primeiro, haver o presente governo brasileiro recepcionado Nicolás Maduro, em 2023, em evento realizado em Brasília, enquanto chefe de Estado como qualquer outro, e, no ano seguinte, haver o mesmo governo rejeitado se convidasse a Venezuela para tomar assento junto aos BRICS+, em se levando em conta a atual conjuntura e o viso de tal agrupamento, qual seja, reforma de instrumentos políticos e inserção econômica globais –, faz-se clara, para mim, a falácia que constitui o discurso madurista, reproduzido por parcelas várias da esquerda brasileira.
E tal falácia pode-se apreender, por exemplo, quanto à ligação apontada pelo discurso oficial venezuelano que teria nosso MRE com o Partido Democrata dos EUA, enquanto mera construção ideológico-diversionista, que tem como objetivos a descredibilização da objetiva, legalista e soberana atuação brasileira (cujos interesses, ainda que informados pela burguesia componente da elite dirigente nacional, que gere o Estado Brasileiro em contato com os centros de poder mundiais, devido ao mecanismo de imperialismo, não são, porém, os mesmos materialmente, sobressaindo-se rusgas entre nossas elites e as do centro), bem como a legitimação do regime PSUVista enquanto suposto(a) baluarte anti-imperialista e força contra-hegemônica, o que, de fato, desde há muito deixou de minimamente ser.
Destarte, vejo que a Política Externa Brasileira atual equilibra-se bem entre o imperialismo gringo-europeu, de um lado – que a todo tempo intenta forçar uma ocidentalização da Venezuela, pela imposição de sanções condicionadas à atuação conforme os seus valores e à adoção de políticas econômicas em linha com tal bloco e a ele favoráveis, para possa assim lucrar maiormente –, e o diversionismo venezuelano, de outro – que rechaça mesmo os parcos consensos em matéria de instituições, direitos e Direito, logrados no âmbito de organizações internacionais, como as Nações Unidas e o Mercosul, deturpando-os junto de suas populações e doutros Estados, para o logro de ganhos econômico-políticos não muito claros, ainda –, ao não abandonar sua tradição de PE e ao não perder de vista seus “interesses nacionais” (informados por uma burguesia cujo discutível nacionalismo aqui, simplificadamente, entende-se existir por ser, por exemplo, visada uma melhor posição do Brasil na hierarquia relativa do SI, isso é, por ser o empoderamento da “nação” elemento importante do projeto dessa classe), por questões quaisquer de afinidade ideológico-vulgar/camaradagem política ou cooptação de fundo imperial, mantendo-se firme, ainda que sob fuzilamento por parte de forças diversas e em face de dificuldades criadas pelos próprios envolvidos, na busca por diálogo com as partes da Questão, diálogo este em que entendo, tal quais, parece-me, nossos dirigentes, restarem os remédios à crise que aos venezuelanos lhes aflige tamanha dor, e a nós, tamanho transtorno.
Fica para um futuro debate como interagem os interesses das massas e o projeto de classe ao qual serve essencialmente a diplomacia brasileira. A se pensar…
*João Gaspar é graduando em Relações Internacionais n Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
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