Dívida pública, fome global e neoliberalismo

Wols (Alfred Otto Wolfgang Schulze), [sem título], 1988
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Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE*

A crise da dívida pública tem potencial de agravamento das contradições sociais e de expansão da miséria e da fome

“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara” (José Saramago, Ensaio sobre a cegueira).

Conjuntamente a atual crise financeira estadunidense, manifesta na quebra do Silicon Valley Bank (SVB) e do Signature Bank , com propagação para Europa com a falência do secular “Credit Suisse”, se soma uma outra crise, sob diversos aspectos muito mais grave e de impacto humano muito superior, porém umbilicalmente interligada a crise financeira dos bancos do centro capitalista mundial, mas pouco tratada pela grande mídia corporativa: trata-se da crise da dívida pública de um grande número de países, com um novo ponto potencial de agravamento das contradições sociais e de expansão da miséria e da fome em dezenas de países da periferia do capitalismo.

Em fevereiro de 2023, a International Panel of Experts on Sustainable Food Systems (IPES-Food), divulgou o relatório “Breaking the cycle of unsustainable food systems, hunger, and debt” (https://ipes-food.org/reports/ ). O Relatório integra a lógica da crise de insegurança alimentar e fome com a crise pré-falimentar (default) de muitos Estados nacionais subdesenvolvidos, especificamente da África e Ásia, mas também da América Latina.

Segundo o IPES-Food, cerca de 60% dos países de baixa-renda e 30% dos de média renda se encontrariam ao longo dos anos de 2023 e 2024 em elevado risco de crise da dívida pública, com base em uma categoria desenvolvida no relatório de “dívida insustentável”, ou seja, a manutenção dos pagamentos dos serviços das dívidas que tornam as populações desses países cada vez mais pobres e sujeitos a fome. Como lembra o documento, os motivos do endividamento dessas nações podem ser diversos, mas inegavelmente o que mais pesa é a condição de subordinação aos interesses de “governos e credores poderosos globais”.

A base da população famélica mundial se expande ao longo das quatro décadas que circunscrevem o atual padrão de acumulação neoliberal. Pierre Salama e Jacques Valier já mostravam em texto do final dos anos 1990, que as políticas econômicas liberais de ajuste ortodoxo aplicadas em muitos países e que naquela altura já tinham a tônica do estabelecimento de pretensos “equilíbrios fiscais” e o pagamento das dívidas externas, teriam um elevado custo social, com crescente empobrecimento da população de muitos países.

O Relatório do IPES-Food, somente confirma os prognósticos de que o neoliberalismo e a financeirização não somente aumentaram os indicadores de pobreza e concentração de renda e riqueza, mas levaram milhões a situação de fome. Assim, “em novembro de 2022, cerca de 349 milhões de pessoas enfrentavam insegurança alimentar aguda, com 49 milhões à beira da fome e 45 países necessitados de ajuda alimentar externa”.

A questão chave abordada refere-se ao círculo vicioso de como as relações de endividamento público e a manutenção de uma lógica fiscal de dependência estabelecem a continua transferência de fundos públicos dessas nações subdesenvolvidas para os controladores das respectivas dívidas, implicando o aprofundamento da fome e a insustentabilidade da segurança alimentar dessas populações.

O documento explicita que a dívida pública global atinge seu mais alto nível dos últimos sessenta anos e que os países mais pobres comprometem uma parcela crescente do fundo público com os serviços da dívida, sendo que no ano de 2022 “esses custos aumentaram em 35%”. O “UN Global Crisis Response Group” vinculado a UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), alerta que o “continuo aperto monetário”, com a elevação dos juros global, irá “aumentar os riscos de uma crise sistêmica da dívida”.

Vale observar que esta não seria a primeira manifestação de uma crise sistêmica da dívida pública do Sul global, bem como suas características sempre são acompanhadas pelo agravamento da fome e da miséria. Ainda na década de 1980, a incapacidade de refinanciamento das chamadas economias emergentes se manifestou em diversas crises, sendo que na década de 1990 são particularmente agudas as crises localizadas: mexicana, russa, brasileira e que culmina na quebra da economia da Argentina em 2001. Em 2014 o quase “default” da Grécia e as dificuldades enfrentadas pelas economias do centro europeu (Portugal, Espanha, Irlanda) demonstraram que o padrão de financeirização das dívidas públicas têm limites e uma propagação generalizada não estava descartada.

No atual quadro, Libano, Sri Lanka, Suriname e Zambia já se encontram em “default”, sendo que outros 12 (doze) governos já apresentam sinais de possível “default”, considerando que economias de maior peso regional como o Paquistão e Gana apresentam sérios riscos, isso tudo em um quadro de propagação da pobreza e fome nestes países. O Relatório IPES-Food, ainda com base no “Grupo Global de Respostas às Crises” da ONU, observa que “69 países, onde residem 1,2 bilhão de pessoas, estão sujeitos a formas graves de instabilidade alimentar, energética e das suas finanças públicas”.

O quadro estabelecido revela os riscos que temos pela frente, não somente frente os limites postos pela continuidade das regras de concentração da riqueza que nos levou ao torpe número em que os “2.153 bilionários do mundo têm mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas (60% da população mundial)” (https://www.oxfam.org.br/), como, e principalmente, a perda de qualquer possibilidade civilizatória.

As condições daquilo que se denomina no relatório de “dívida insustentável” é semelhante ao padrão de espoliação social brasileiro. Basicamente o mecanismo das dívidas gira em torno de estímulos a tomada de empréstimo internacional ou mesmo lançando títulos da dívida, cuja condição de uso dos recursos não se referem a expansão da infraestrutura social ou novos investimentos, mas sim somente garantir o pagamento de serviços de dívidas anteriores, como a metáfora do cachorro que corre atrás do próprio rabo. A dívida se torna insustentável frente a lógica financeira global de um dólar apreciado e de elevadas taxas de juros necessárias a saciar o apetite nunca satisfeito dos grandes credores internacionais e nacionais.

Alguns dos pontos propostos no documento como possíveis encaminhamentos a serem adotados internacionalmente seriam: (i) estabelecer o alivio da dívida para um conjunto de países, inclusive com cancelamento das mesmas; (ii) estabelecer “reparações históricas” e garantir fluxo de recursos ao Sul Global (periferia do capitalismo) que possibilitasse equacionar a crise alimentar e as condições de desenvolvimento; (iii) constituir uma “autoridade autônoma soberana da dívida”, com o papel de assegurar que “nunca mais os países devessem decidir entre pagar as dívidas ou garantir que suas populações sejam alimentadas”.

Esses pontos são, mesmo que ainda muito tênues, bastante difíceis de serem alcançados frente ao atual “moinho satânico” neoliberal, que prefere garantir os interesses dos banqueiros, mesmo que falidos por ação especulativa, do que garantir o direito à alimentação de milhões de pessoas. A atual crise capitalista mundial expõe de forma bastante nítida a interação entre a financeirização do capitalismo, a desregulamentação do sistema, o fluxo de transferência de riquezas dos países periféricos para o capitalismo central, levando ao empobrecimento crescente de largas fatias da população mundial, com a própria interação entre o uso das finanças dos Estados e a manutenção de um circuito de expansão da fome. Esse conjunto de aspectos demonstrados no documento da IPES-Food, são partes de um capitalismo senil e anticivilizacional.

*José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Autor, entre outros livros, de Crítica da economia política da dívida pública e do sistema de crédito capitalista: uma abordagem marxista (CRV).

Referências

IPES-Food. Breaking the cycle of unsustainable food systems, hunger, and debt (2023). Acesso em: https://ipes-food.org/reports/.

Pierre Salama e Jacques Valier. Pobrezas e desigualdades no 3° mundo. São Paulo: Nobel, 1997.

José Raimundo Trindade. Crítica da economia política da dívida pública e do sistema de crédito capitalista: uma abordagem marxista. Curitiba: CRV, 2017.

José Saramago. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.


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