A crise da Inteligência, artificial

Imagem: Lucas Andrade
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Por LUÍS FERNANDO VITAGLIANO*

As big techs querem que acreditemos que possuem fundamentalmente motivação ideológica, porque assim ficamos ignorantes nas questões técnicas que sustentam o capital digital

1.

As estratégias de inteligência artificial vieram para mexer com os brios das big techs e tamanha é a revolução que a incorporação da inteligência artificial está forçando essas empresas a mudar suas estratégias de atuação sob o risco de ficarem obsoletas. O impacto é tal que essas empresas estão comprando brigas pesadas até mesmo com as instituições de Estado para ganhar tempo e poder ajustar seus pesados custos e processos no treinamento das suas inteligências artificiais.

Nas recentes crises entre as big techs e o poder público (seja o brasileiro ou os outros) tão importante quanto os resultados práticos que significam, é preciso entender que governos e parte dos intelectuais que analisam os acontecimentos se equivocam porque movem pelas ideologias, enquanto os CEOs das empresas e os entendidos dos negócios de microchips se movem pelo capital. Nessa dissonância de propósitos as empresas têm muito a esconder e querem que continuemos a acreditar que sua motivação é fundamentalmente ideológica, porque assim permanecemos ignorantes nas questões técnicas que sustentam o capital digital.

Despistar o essencial ajuda a fazer com que nos ceguemos para os dados, que são absorvidos por suas empresas, seguindo o fluxo de alimentação da inteligência artificial de modo voluntário e gratuito, o que alimenta o capital digital à custa de conflitos para o cotidiano social. Fazer com que não percebamos onde está sua mina de ouro e persuadir a população de que a liberdade de expressão que eles pregam é de fato desejável é a maior habilidade técnica desses performáticos CEOs das big techs.

No contexto brasileiro, primeiro veio a crise com o “X”, a rede social comprada por Elon Musk que se recusou a cumprir a ordem do STF. A origem desta crise foi a decisão corporativa de manter perfis falsos na ativa depois de determinação judicial para retira-las. Lembremos que o caminho para o aumento do engajamento robótico iniciou com a decisão (anterior) da “X” em acabar com as checagens de perfis. Com isso o volume de dados da rede aumentou e só então veio o receio de que o crescimento do trafego artificial pudessem ter peso nas eleições brasileiras.

Para aqueles que se atentaram aos fatos, a questão foi muito menos política e mais tecnológica no que diz respeito aos ataques do dono da rede social “X” (antigo Twitter). No final ficou para a disputa a capacidade que o conglomerado bilionário do empresário tinha em desrespeitar decisões judiciais. O STF determinou que perfis falsos e postagens duvidosas fossem retirados da plataforma. A “X” se recusou a cumprir a ordem judicial e seu dono, Elon Musk, resolveu usar a plataforma para questionar os poderes judiciais atacando pessoalmente o Ministro Alexandre de Moraes.

O resultado todos nós conhecemos: os outros negócios vinculados ao “X” foram também punidos pelo descumprimento da ordem. Até chegar na Starlink. Aí, encontrou-se o calcanhar de Aquiles. Mais uma vez, a política era secundária em relação a estratégia: Starlink é a principal redes de internet da Amazônia. Provavelmente ela tem mais dados a respeito da floresta e seus moradores que o governo. Além do resultado financeiro que isso projeta paralisar as atividades da empresa significava ficar sem esses dados que eles têm sobre a região e abrir espaço aos concorrentes. Resultado: Elon Musk recuou.

2.

Retirar a checagem de perfil ou de procedimento de postagem era (e é) o cerne da questão que foi transformada em celeuma entre os órgãos públicos do Brasil e o próprio Elon Musk, que agora se tornara conselheiro do governo dos EUA. Agora, por seus próprios motivos, a Meta segue o mesmo caminho. O argumento para isso é sempre defendido como uma cruzada das big techs em favor a liberdade de expressão e manifestação na internet. Mas, talvez isso seja apenas uma pista falsa para jogar com a plateia e conquistar apoio social ao mesmo tempo em que esconde as vantagens de estimular a ampliação do trafego artificial: o treinamento da Inteligência Artificial dessas plataformas.

Então, o dono da Meta, outra figura carimbada adotada pelo Vale do Silício, o icônico criador do Facebook, Mark Zuckerberg anunciou que encerrara o sistema de checagem de fatos nas redes justificando que “tem sido muito tendenciosos politicamente e destruíram mais a confiança do que criaram”. A questão parece se relacionar diretamente com a primeira, em que as empresas de tecnologia, principalmente as redes sociais estão numa ofensiva para questionar os limites da fé pública na regulamentação jurídica.

A maior parte dos tomadores de decisão dentro dessas megacorporações sabe que essa é uma luta perdida, e que o máximo que vão conseguir algum tempo nos países da OCDE que os permite reorientar seus modelos negócios para concorrer com novas startups que já vão nascer no mundo de regulação. Isso faz com que seja uma luta contra o tempo para aproveitar ao máximo da janela de oportunidades em treinar as inteligências artificiais em ambiente de mata virgem e tornar-se mais eficiente que a concorrente.

Por isso, está claro que Elon Musk e Mark Zuckerberg, assim como Jeff Bezos e outros figurões das big techs sabem que não vão conseguir salvar seus negócios da imposição de limites e responsabilidades legais em ambientes mais restritivas nos EUA e na União Europeia no futuro. Em relação a China então: não há a menor chance de influírem na política digital daquele país com suas pirotecnias retóricas. Nesse contexto, é compreensível que eles arriscarem-se nos países periféricos onde a luta pode render outros frutos e o treinamento da inteligência artificial é uma aposta que pode mantê-los na vanguarda.

Por isso politizar a questão jurídica no Brasil é tão importante. Ainda estamos distantes de uma governança para a internet ou a Inteligência Artificial. Entrar em conflito com as Instituições de Estado permite a essas empresas reduzir a velocidade da tendência à regulação; inclusive seria uma derrota a essa empresas as propostas de tomá-las corresponsáveis pelos prejuízos às pessoas e instituições.

Mas, ainda é preciso observar que cada empresa convive com seus próprios dramas. Meta e X não têm a mesma estratégia, mesmo tomando decisões similares. No caso de Mark Zuckerberg, a motivação principal parece ser seu atraso tecnológico e os prejuízos financeiros que isso possa gerar; enquanto para Elon Musk aumentar o tráfego e treinar a inteligência artificial neste momento já está no mapeamento do controle da informação.

3.

Me explico: o Facebook passou por um desgaste enorme junto ao congresso dos EUA depois das eleições de 2016. Em 2018 o próprio CEO da empresa, o mesmo Zucherberg foi intimado pelo Congresso dos EUA para se justificar de como dados foram vazados para a Cambridge Analytics e outras empresas de manipulação digital e como isso influenciou nas eleições. Numa tentativa de resguardar a imagem da empresa, o Facebook criou as checagens, investiu em governança dos dados – atenção: por pura sobrevivência e não por ideologia.

Além disso, mudou se reposicionou, virou Meta e definiu como estratégia de longo prazo investir em realidade aumentada, jogos 3D, óculos virtuais etc; afastando-se das questões políticas. Mas o crescimento da tecnologia nessa direção não correspondeu e a opção pela realidade virtual se mostrou errada; o mundo das big techs caminhou para outro lugar, e a chamada quarta fase das TICs foi para a Inteligência Artificial e não para a internet das coisas como muitos esperavam ou para a realidade aumentada como alternativa; e a Meta teve outro revés.

Se esta hipótese estiver correta, as empresas de Mark Zuckerberg perderam muito tempo e dinheiro com a realidade virtual e não deu a devida atenção à inteligência artificial. Agora vão precisar correr atrás do prejuízo. Fazer as checagens e realizar um mínimo de controle de conteúdo é caro, custa tempo e atrapalha na alimentação da base de dados da inteligência artificial. Depois do fiasco de 2016, fez sentido o Facebook investir em checagem e confiabilidade para resgatar sua imagem, mas com os rumos recentes da inteligência artificial, a Meta abandonar a checagem é uma decisão financeira e tecnológica, não ideológica. Mark Zuckerberg não pode admitir isso, publicamente, então usa como muleta a retorica da liberdade de expressão.

Obviamente que todos sabemos qual é a política de checagem ideal para o Vale do Silício: guerra de todos contra todos e quem sair vivo tem razão. E se isso proporciona um prejuízo social sem precedentes o importante é esconder qualquer nexo causal com a balbúrdia. Por não haver comprovação cientifica de que a ganancia por dados das big techs provocam anomia social, as empresas não estão submetidas ainda a uma legislação restritiva.

Meta se antecipou ao problema (talvez pela sua crise de 2018) e criou filtros de checagem. A atual mudança de estratégia da Meta em abandona o sistema de checagem é um revés considerável para aqueles que defendem a regulação ao mesmo tempo em que a empresa entende que o enquadramento público pode demorar.

Particularmente acho difícil que o compromisso da Meta com os filtros tenham se pautado pela ética. Assim como o revés recente não parece estar ligado a ode a liberdade de expressão, mas há uma mudança de rumo nas decisões de investimentos da empresa muito atenta ao desenvolvimento da inteligência artificial. E digo mais: se eu tivesse dinheiro investido em papeis da Meta, correria para trocá-los; eu não apostaria no Facebook como uma ferramenta relevante em quatro ou cinco anos.

4.

Tudo isso não significa que o governo brasileiro não deva estar atento e consciente das implicações que essas decisões das big techs provocam. Num país onde a cultura da internet forma ignorantes virtuais virulentos em proporções maiores que a média, o efeito da retirada de checagens é imediato e deletério. Mas, também é preciso entender contra quem e em favor de que se organizam as disputas, para se permitir sair delas fortalecido.

A Meta está numa guerra com seus concorrentes embora “eleja” o governo como antagonista, aparentemente está perdendo espaço dentro da disputa empresarial por inovação. Sua atitude é menos de política e mais de desespero e o que interessa a eles não é uma visão positiva da opinião pública, mas correr atrás do prejuízo que é o treinamento das suas ferramentas de inteligência artificial.

Com as redes neurais da inteligência artificial empresas como a Meta, X, Amazon, Google, Apple etc, precisam de megadados para treinar seus robôs. Precisam de muito engajamento para calibrar suas ferramentas e mais do que dados em volume exponencial, também precisam de variedade, diversidade, contrastes e multiplicidade de tipos. Por esses critérios, o mercado brasileiro é um oásis de dados. Quer pais mais diverso, desigual multirracial e multipolar que o Brasil? Tem volume e diversidade. O mercado brasileiro de alimentação de inteligência artificial é ótimo para qualquer empresa, que ainda tem uma legislação totalmente permissiva extração de dados e engajamento dos algoritmos.

Pensar que há uma motivação ideológica para a Meta mudar sua política de checagem pode ser um erro se observada a evolução tecnológica do presente. O que importa não é a ideologia, é o dado. E o governo brasileiro e nossas instituições de Estado precisam considerar que os dados aqui produzidos pela interação dos usuários são o que importa a essas empresas.

Se o custo é de que uma pessoa morreu por pressão nas redes, se há disputas nas famílias que provocam violência, se há polarização entre vizinhos, golpe ou qualquer desconstrução social, tanto faz para os CEOs; desde que os nexos entre aumento do engajamento virtual e aumento dos conflitos sociais não sejam estabelecidos… e, principalmente: desde que os dados cheguem.

Assim, se há nexo entre o virtual e a anomia, tanto melhor que os conflitos aconteçam porque se retroalimentam: se o engajamento virtual aumenta o conflito social, o caminho oposto também ocorre e o aumento do conflito social provoca mais engajamento virtual.

*Luís Fernando Vitagliano é doutor em “Mudança social e participação política” pela EACH-USP. Autor, com Marcio Pochmann, do livro O atraso do futuro e o “homem cordial” (Hucitec).[https://amzn.to/3CRWcNw]


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