Por FLAVIO AGUIAR*
Uma conversa com a pesquisadora Laura Rivas Gagliardi
Anatol Rosenfeld chegou ao Brasil, no porto de Santos, nos últimos dias do ano de 1936. Deixara a Alemanha nazista apressadamente por ser judeu, militante político e alvo de um inquérito policial, que o acusava de resistir à prisão e de fazer propaganda contra o III Reich. Tinha 26 anos e até o ano letivo de 1934 fora estudante universitário na então Königliche Friedrich-Wilhelms-Universität zu Berlin, hoje Humboldt-Universität zu Berlin, Universidade Humboldt em Berlim.
No Brasil, onde se tornou um intelectual brilhante no campo dos Estudos Teatrais, de Dramaturgia e de Teoria Literária, sempre se comentou que ele concluíra a redação de uma tese de doutorado, mas que fora impossibilitado de defendê-la. Dormitando durante quase um século e preservado em arquivos hoje digitalizados, esse texto de Anatol Rosenfeld reviu finalmente a luz do dia graças ao trabalho de Laura Rivas Gagliardi,[1] professora brasileira que trabalha na Universidade de Colônia, na Alemanha.
Pesquisando desde 2023, Laura Gagliardi levantou também documentos sobre o processo policial que visava Anatol Rosenfeld e sua militância antinazista, além de outros sobre sua vida, seus estudos e suas atividades em Berlim, bem como sobre sua fuga para o Brasil. Veja os detalhes na entrevista abaixo, concedida especialmente a site A Terra é Redonda, representado pelo escritor e jornalista Flávio Aguiar.
Ccomo você chegou ao Anatol Rosenfeld, ou como o Anatol Rosenfeld chegou até você?
Laura Gagliardi – Meu primeiro contato com a obra de Anatol Rosenfeld foi como estudante de Letras e, mais tarde, como pesquisadora da obra de Roberto Schwarz, mas o ponto de partida para meu trabalho atual sobre Anatol foi um convite para participar de um Congresso aqui na Alemanha sobre Cultura e Literatura Judaica no Mundo da Língua Portuguesa. Ao preparar minha fala para o Congresso, inspirei-me no artigo de Roberto Schwarz, publicado na revista Piauí, no. 85, em outubro de 2013, “Na montanha russa do século”. Graças a ele cheguei ao volume de crônicas Anatol Rosenfeld “on the road”, publicado em 2006 pela Editora Perspectiva.
Esse volume organizado por Nanci Fernandes tem uma introdução dela e de Jacó Guinzburg, além de um prefácio autobiográfico do próprio Anatol, com muitos dados sobre ele, citando documentos variados. Para mim foi uma surpresa, porque a vida do Anatol Rosenfeld sempre esteve envolvida por uma aura de mistério. Por curiosidade, comecei a verificar alguns dados do prefácio e descobri que o arquivo do Anatol Rosenfeld estava abrigado na Casa do Povo, em São Paulo, no bairro do Bom Retiro. Eu já morava na Alemanha, mas estava em São Paulo a passeio. Isto aconteceu em 2023.
Fui muito bem recebida na Casa do Povo e me colocaram à disposição todo o material que eles têm, uma preciosidade, mesmo considerando que esse material ainda carece, por falta de recursos, de tratamento arquivístico adequado e de catalogação definitiva. Na Casa do Povo, a descoberta decisiva foi a de que Anatol Rosenfeld, na verdade, tinha dois prenomes, Anatol Herbert. E que na Alemanha ele viveu sempre como Herbert, não como Anatol. Ele passou a ser Anatol no Brasil. Anatol não era um nome de guerra nem um pseudônimo, era um dos seus nomes de registro que, por alguma razão, ele não usara na Alemanha.
Eu tinha, assim, a chave para a pesquisa em Berlim: procurar o nome de Herbert Rosenfeld. Se alguém procurasse por “Anatol” na Alemanha, não encontraria nada, porque aqui ele era Herbert.
Onde nasceu Anatol? Como veio para Berlim? O que fazia ele em Berlim?
Laura Gagliardi – Essa pergunta é boa porque toca num ponto crucial da aura de mistério que cerca a vida do Anatol Rosenfeld. As fontes brasileiras, copiadas até agora na própria Alemanha, sempre disseram que ele nasceu em 1912, em Berlim. Talvez essa ideia tenha surgido a partir desse texto autobiográfico do Anatol Rosenfeld, que está na Casa do Povo, e foi reproduzido no volume on the road, onde ele afirma que é “oriundo” da Alemanha. Ele foi muito preciso na escolha da palavra porque afirma que ele “teria vindo” da Alemanha, não que fosse “natural” desse país. 1912 é a data em que sua família veio para Berlim.
Os documentos que encontrei aqui mostram que ele nasceu em 1910 numa cidade chamada Przemyśl, parte do Império Austro-Húngaro até 1918, mas que hoje fica na Polônia. No Arquivo Público da Polônia, em Varsóvia, que guarda livros de registros de nascimentos locais, inclusive os de Przemyśl, encontrei o registro de nascimento de Anatol Herbert Rosenfeld. Em 1912 a família se mudou para Berlim, portanto, quando ele tinha dois anos de idade. Entre 1914 e 1936, a família sempre morou no mesmo bairro de Berlim, Steglitz, onde Anatol frequentou escolas e fazia ginástica olímpica, praticando especialmente salto em distância.
De acordo com seu obituário, escrito por Arnold von Buggenhagen, Anatol teria estudado dois anos de Medicina, provavelmente em 1928 e 1929, antes de passar para o curso de filosofia na hoje Universidade Humboldt. Seu último semestre de matrícula é do ano letivo de 1934, ele foi jubilado no início de 1935 por não ter se matriculado mais. Além disso, segundo uma carta que encontrei de seu grande amigo Kurt Maier ao já mencionado Buggenhagen, Anatol Rosenfeld militava no movimento político Reichsbanner, um braço clandestino da social-democracia (SPD). E já publicava textos como escritor de ficção, especialmente num jornal na época muito famoso, que se chamava Vossische Zeitung, fundado por Friedrich Voss em 1721. O jornal encerrou suas atividades em 1934. Nele escreveram intelectuais como Lessing, ainda no século XVIII, Theodor Fontane, no XIX e Kurt Tucholsky e Walter Benjamin, no XX.
O que você encontrou, em matéria de textos de e sobre Anatol Rosenfeld?
Laura Gagliardi – Além dos textos publicados no Vossische Zeitung, aqui na Alemanha encontrei o processo movido contra Anatol Rosenfeld pela Polícia Criminal de Berlim. Ele foi acusado de furto numa estação ferroviária e de resistir à prisão, em agosto de 1936. A acusação de furto parece evidentemente forjada, o que fica explícito no fato de ela ter sido retirada, só restando a de ter resistido à prisão e a de ter feito propaganda contra o III Reich, um crime chamado de Gräuelpropaganda, “propaganda de horrores”, termo usado pelos nazistas para caracterizar o que consideravam como mentiras sobre o III Reich.
Essa última acusação já era de crime político, que feria os deveres de um estrangeiro, estatuto jurídico de Anatol Rosenfeld, segundo as leis do III Reich. O que é mais surpreendente nesse processo judicial, que foi preservado integralmente, é que a carta de defesa redigida pelo advogado de Anatol Rosenfeld em outubro de 1936 anexa um trabalho acadêmico que Anatol Rosenfeld apresentara à universidade em 1933, intitulado Lessing und der Sturm und Drang. O advogado decidiu anexar esse trabalho acadêmico de quase 100 páginas para comprovar que a acusação de furto era absurda, dado que Anatol Rosenfeld era um estudante universitário em preparação para o doutorado com uma vida acadêmica pela frente. Esse trabalho foi anexado pelo advogado com a avaliação assinada pelo professor, que lhe atribuiu o conceito de sehr gut, o mais alto da escala.
O que se pode dizer sobre esse texto que tem por tema o Sturm und Drang? É uma tese de doutorado, é um projeto de tese? Seria uma versão prévia da tese? Um rascunho?
Laura gagliardi – No Brasil, sempre se soube da existência dessa tese, mas só se sabia que ela tratava do romantismo alemão. Há fortes indícios de que esse trabalho acadêmico que encontrei seja a tese de doutorado. Primeiro, pela extensão. É muito improvável que um trabalho de final de curso fosse tão longo. Além disso, nessa época, as teses de doutoramento tinham mesmo esse tamanho. Segundo, porque o texto tem uma estrutura e um formato de tese de doutorado. Ele tem folha de rosto, sumário, introdução, desenvolvimento, conclusão e bibliografia.
Mais do que tudo, ele discute uma questão de forte repercussão teórica: os limites da oposição entre a Aufklärung, representada na figura de Lessing, e o movimento Sturm und Drang, considerado tradicionalmente como irracionalista, contrário ao suposto racionalismo Iluminista. Porém, o indício mais forte de todos está nessa carta que mencionei de Maier a Buggenhagen. Nela, Maier afirma que Anatol estava com a tese pronta, e cita, entre aspas, ou seja, com exatidão, seu título “Lessing und der Sturm und Drang”, acrescentando que Anatol Rosenfeld não chegou a entregá-la como tal.
Essa informação se confirma na argumentação do advogado de defesa de Anatol Rosenfeld, que diz que seu cliente teve de interromper o doutorado justamente em 1933 por ser judeu. Acredito que também deve ter contribuído para que Anatol Rosenfeld não a tenha entregado o fato de seu potencial orientador, Julius Petersen, que avaliara o texto em 1933 com o conceito máximo,ter sedeclarado simpatizante do nazismo e ter publicado, em 1934, uma obra seminal que associava a Teoria Literária alemã aos princípios nazistas: “A nostalgia do III Reich na poesia e na saga alemãs”.
O texto tem atualidade para quem o ler hoje? Você vê alguma relação entre ele e a atividade intelectual do Anatol Rosenfeld no Brasil?
Laura Gagliardi – Certamente a tese tem valor como documento histórico, mas também tem valor por si mesma. Ela mostra como a obra brasileira do Anatol tem um fundamento muito consistente na formação adquirida ainda na Alemanha. Graças a esse documento e aos textos ficcionais pode-se falar de uma obra alemã e de uma obra brasileira de Anatol Rosenfeld. O que o Anatol Rosenfeld desenvolveu no Brasil nasceu na Alemanha, algo que já se sabia, mas que agora tem fonte e forma concretas. Suas elaborações a respeito dos conceitos básicos de Teoria Literária, por exemplo, foram geradas quando da escrita da tese.
Além disso, seu tema, o debate sobre o Sturm und Drang e sua relação com a Aufklärung, em especial a partir do prisma do teatro – ou seja, a discussão sobre as três unidades aristotélicas, a noção de gênio e de forma literária, o efeito da obra teatral sobre o espectador – continua em aberto, sempre estimulado por novas contribuições. O texto de Anatol Rosenfeld constitui mais uma dessas contribuições e, de fato, toma uma posição original e própria pela hipótese ponderada que desenvolve, anunciando uma compreensão dialética entre forma literária e história.
Trata-se de um texto importante e atual, redigido com uma prosa transparente, objetiva, que cumpre o protocolo da academia alemã para obtenção do título de doutor, mas com um estilo sutil, por vezes irônico e muito agradável: uma prosa de escritor. Pensemos na situação de Anatol Rosenfeld: um judeu, que nascera fora da Alemanha, e que precisava demonstrar, com a tese, que dominava a cultura, a história e a língua alemãs.
Anatol Rosenfeld teve de sair apressadamente, isto é, fugiu da Alemanha em 1936. O que aconteceu?
Laura Gagliardi – Como já mencionei, o processo criminal data de agosto de 1936. Anatol Rosenfeld chegou a ser preso e algemado em público, embora tenha sido depois liberado. O advogado argumentou que ele resistira à prisão porque os agentes policiais não estavam fardados. De fato, ele resistiu à prisão gritando para as pessoas ao redor “estou sendo sequestrado por ser judeu”, o que possibilitou a acusação de difamar o III Reich.
Depois de liberado, Anatol Rosenfeld foi intimado a comparecer à Polícia no dia 14 de novembro de 1936, mas mandou uma carta nessa data, dizendo que estava doente e não poderia comparecer. Segundo dados do processo, Anatol Rosenfeld teria partido no dia 18 de novembro para estudar durante um ano no exterior. Na verdade, percebendo que o cerco se fechava, no dia 12 de novembro ele já comprara uma passagem com destino ao porto de Santos, no Brasil.
Como ele chegou ao Brasil?
Laura Gagliardi – Ainda em dezembro daquele ano, uma segunda carta que Anatol enviou à Polícia informa que ele “fora para a América” com o intuito de concluir seu doutorado, argumentando que talvez não conseguisse mais concluí-lo na Alemanha em função da acusação movida contra ele. Ele saiu da Alemanha e embarcou em 1º de dezembro num vapor francês chamado Kerguelen, da companhia francesa Chargeurs Réunis, no porto belga de Antuérpia, chegando a Santos em 28 de dezembro de 1936, na companhia de muitos outros judeus, que os registros oficiais da chegada em Santos distinguiam dos demais passageiros.
O que vai ou pode acontecer com todo este material que você encontrou? Há interesse em divulgá-lo? Como?
Laura Gagliardi – Atualmente estou tentando elucidar a questão dos direitos autorais, uma vez que Anatol Rosenfeld não deixou descendentes nem ascendentes, nem tem parentes colaterais conhecidos. Isso é importante porque já tenho um contrato de publicação com a editora alemã De Gruyter, atualmente uma das principais divulgadoras de trabalhos acadêmicos. O livro com o doutorado de Anatol Rosenfeld deve sair no começo de 2026, com uma introdução de minha autoria e a reprodução de alguns dos documentos do processo criminal. Tão logo possível, pretendo traduzir o volume e publicá-lo no Brasil.
A partir desse material que você está reunindo, que perfil traçaria para o, digamos, “jovem Anatol”?
Laura Gagliardi – Não acho que haja “um jovem Anatol”, ou um “Anatol alemão” ao lado de um Anatol “maduro” e “brasileiro”. A pesquisa que estou fazendo pretende recompor seu pensamento, sua trajetória e sua obra numa dimensão mais integral. Eu não conheci pessoalmente Anatol Rosenfeld e em nenhum momento quis invadir a privacidade que ele preservou a vida inteira. Vejo nesses documentos o depoimento de uma geração, de um momento histórico dramático, cuja importância vai além da figura particular do Anatol Rosenfeld, pois o processo judicial contra ele dá testemunho também de uma história que nos diz respeito até hoje. Também acredito que, com esses documentos, a compreensão de seu papel intelectual, político e de sua figura humana se amplia e se completa.[2]
*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo). [https://amzn.to/48UDikx]
Notas
[1] Laura Rivas Gagliardi é professora-assistente no Instituto Luso-Brasileiro (PBI) da Universidade de Colônia, Alemanha. Entre 2021 e 2024 desenvolveu o projeto de pós-doutoramento “Novas perspectivas da teoria pós-colonial: sobre história e conhecimento nos estudos literários brasileiros”, financiado pela Fundação Alemã de Pesquisa (DFG). É mestre e doutora em Letras Românicas pela Universidade Livre de Berlim, bacharel em Letras Português-Francês pela Universidade de São Paulo. É autora de Literaturgeschichte und Ideologie: Ferdinand Wolfs literaturpolitisches Projekt Le Brésil littéraire (1863) {História literária e ideologia: o projeto político-literário de Ferdinand Wolf em O Brasil Literário (1863)} (Berlim: De Gruyter, 2020). Organizou a tradução para o alemão de Um mestre na periferia do capitalismo, de Roberto Schwarz (Berlim: De Gruyter, 2023), redigindo para o volume uma introdução crítica.Participou da roda de conversa “Anatol Rosenfeld: Mediation and Translation between Brazil and Germany” ao lado de Maud Meyzaud e Flavio Aguiar, com mediação de Susanne Klengel.
[2] Zinka Ziebell e Jorge Grespan colaboraram na entrevista.
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