Fome e degradação humana

Lixão da Piçarreira, município de Pinheiro, Maranhão. Foto de João Paulo Guimarães.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ EDUARDO NEVES DOS SANTOS & FERNANDO EURICO LOPES ARRUDA FILHO*

A luta dos catadores de lixo por condições mais dignas de vida

“Nenhuma praga é tão letal e, ao mesmo tempo, tão evitável como a fome” (Martín Caparrós, A fome, p. 11).

Como é sabido, o Brasil é um dos países mais desiguais do planeta, a concentração de riqueza e renda tem aumentado bastante, mesmo em um cenário pandêmico, enquanto a situação de pobreza e extrema pobreza são onipresentes e não param de se expandir no território do país. Segundo dados do IBGE, 52 milhões de brasileiros se encontram nesta situação, são homens e mulheres desempregadas ou subempregadas, sobrevivendo em lugares insalubres e habitações precárias, sem acesso à serviços básicos de Saúde e Educação, sem Assistência Social, invisibilizados pelo Estado e pela sociedade e em situação de grave insegurança alimentar, um verdadeiro “museu da exploração humana”, como bem definiu Mike Davis em seu Planeta Favela. Tal contingente populacional é composto, em sua maioria, por pessoas pretas e pardas (73%), um doloroso retrato de uma sociedade que ainda possui fortes marcas da escravidão.

As senzalas modernas, produto da espoliação causada pelo sistema de acumulação, são representadas pelas favelas, guetos e palafitas. Essa massa de despossuídos também se aglomera em torno de lixões, “na imundície do pátio, catando comida entre os detritos”, e compõem uma paisagem desoladora, repleta de urubus, ratos e baratas, algo comum em diferentes lugares do Brasil, especialmente em estados como o Maranhão, que ainda amarga os piores índices socioeconômicos e ambientais entre as 27 unidades da federação. Assim, é possível identificar milhares de pessoas que sobrevivem nos e dos lixões. Um verdadeiro contingente de famélicos nos mais variados municípios maranhenses.

As violações aos Direitos Humanos são gravíssimas. É escandaloso e revoltante, ainda hoje, a manutenção de áreas destinadas ao acúmulo de lixo a céu aberto no Brasil e no Maranhão. Lembrando que em 2010 foi promulgada a lei 12.305, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Entre seus objetivos havia a previsão de estimular a redução e a reutilização de resíduos, bem como banir os lixões no Brasil até 2014, algo que a imensa maioria dos municípios brasileiros não cumpriu, por absoluta ausência de responsabilidade social e vontade política de prefeitos, vereadores, deputados e governadores, que alegam dificuldades de alocação de recursos financeiros.

O fato é que nos últimos anos o Brasil aumentou muito sua geração de lixo, passando de 66,7 milhões de toneladas em 2010 para quase 80 milhões de toneladas em 2019, segundo dados do Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil 2020. Municípios como Pinheiro, o maior da baixada maranhense, em virtude da aprovação do Novo Marco do Saneamento Básico (Lei nº 14.026/2020), têm até o fim de 2023 para extinguir seu lixão e municípios com menos de 50 mil habitantes possuem até dezembro de 2024 para desativar essas aberrações.

O conhecido “catador de lixo” faz parte de um ciclo econômico perverso. Esse trabalhador invisível vai em busca de alumínio, ferro e cobre, além de sacolas plásticas e garrafas pet, os quais são comercializados para os donos de depósitos, tendo como destino final a indústria da reciclagem, ou seja, a procura é por materiais que podem ser reciclados e reutilizados.

Existem dois tipos de catadores, o das ruas e o do lixão. Aqueles que catam no lixão não usam qualquer tipo de calçado para proteção. São inúmeros relatos de queimaduras por cinzas e faíscas porque ateiam fogo para ficar visível o ferro, cobre e alumínio. Em Pinheiro, a catação dos materiais recicláveis é realizada nas ruas, na feira, próximo ao mercado e onde há intensa produção de resíduos.

No lixão da Piçarreira, município de Pinheiro-MA, homens, mulheres, idosos e crianças arriscam a vida sem qualquer equipamento de segurança, os acidentes de trabalho são frequentes. Para evitar queimaduras do sol, usam camisas de manga comprida durante o dia e muitos trabalham à noite, para evitar insolação. O trabalho começa cedo, é extenuante, mas se o catador consegue reunir material suficiente, não necessita trabalhar muito o restante do dia.

A defensoria pública em Pinheiro visitou o lixão e lá presenciou situações chocantes. Crianças disputam restos de comida com urubus e cachorros. O catador não mira apenas os produtos, pois matar a fome é mais urgente, por isso, frequentemente, não esperam de imediato a venda para os depósitos.

O ponto de maior fluxo é quando um caminhão de uma grande rede de supermercados da cidade vai despejar seu lixo, por volta das 13h30min. Todos correm para disputar os rejeitos, incluindo toda sorte de indivíduos: crianças, idosos e mulheres grávidas, por exemplo. A partir disso, a defensoria encampou a luta para a criação de uma associação de catadores, tendo em vista a falta de equipamentos, de condições de trabalho, de conhecimentos para executar a coleta, a seleção de materiais e de apoio financeiro para a infraestrutura.

Em audiência pública promovida pela defensoria foi constituída uma associação de catadores e o poder público municipal, de imediato, instituiu uma renda mínima mensal e o fornecimento de cestas básicas para cada catador. Graças ao trabalho da defensoria, que também tem mostrado e denunciado tal situação a setores importantes da mídia progressista, cerca de 300 pessoas em situação de extrema vulnerabilidade social estão sendo beneficiadas, isto quer dizer que este grupo deixou de ser invisível para o poder público e para a sociedade. E a luta para que estas pessoas tenham condições mais dignas de vida está longe de terminar.

*Luiz Eduardo Neves dos Santos, geógrafo, é professor na Universidade Federal do Maranhão, Campus Pinheiro.

*Fernando Eurico Lopes Arruda Filho é defensor público do estado do Maranhão.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Daniel Afonso da Silva Renato Dagnino Alexandre Aragão de Albuquerque Antonino Infranca Rafael R. Ioris Manuel Domingos Neto João Carlos Loebens Eugênio Bucci Paulo Nogueira Batista Jr Ronald León Núñez José Dirceu Milton Pinheiro Gilberto Lopes Vanderlei Tenório Heraldo Campos Ricardo Abramovay Andrés del Río Juarez Guimarães Dênis de Moraes Gilberto Maringoni Luiz Carlos Bresser-Pereira Alexandre de Lima Castro Tranjan Bernardo Ricupero Vladimir Safatle Michael Löwy Jean Marc Von Der Weid Rubens Pinto Lyra Igor Felippe Santos Luís Fernando Vitagliano Luciano Nascimento Remy José Fontana Flávio R. Kothe João Sette Whitaker Ferreira Marcus Ianoni Celso Frederico Eugênio Trivinho Ronaldo Tadeu de Souza Marcos Silva Ricardo Antunes Maria Rita Kehl Ari Marcelo Solon Jorge Branco Tarso Genro Matheus Silveira de Souza Gabriel Cohn João Lanari Bo Daniel Costa Annateresa Fabris Sergio Amadeu da Silveira Alysson Leandro Mascaro Samuel Kilsztajn Marcelo Guimarães Lima Valerio Arcary Mariarosaria Fabris Luiz Eduardo Soares Fernando Nogueira da Costa Thomas Piketty Julian Rodrigues Luiz Marques Luiz Renato Martins Plínio de Arruda Sampaio Jr. Andrew Korybko João Adolfo Hansen Benicio Viero Schmidt José Geraldo Couto Paulo Fernandes Silveira Flávio Aguiar Daniel Brazil Leonardo Sacramento Paulo Martins Manchetômetro João Carlos Salles Luis Felipe Miguel Chico Whitaker André Márcio Neves Soares Mário Maestri Boaventura de Sousa Santos Otaviano Helene Ronald Rocha João Feres Júnior Lucas Fiaschetti Estevez Michael Roberts Ladislau Dowbor Paulo Capel Narvai Dennis Oliveira Marilia Pacheco Fiorillo José Micaelson Lacerda Morais Airton Paschoa Eleutério F. S. Prado Henry Burnett Bruno Machado Lorenzo Vitral Everaldo de Oliveira Andrade Leonardo Avritzer Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Leda Maria Paulani Marjorie C. Marona Bruno Fabricio Alcebino da Silva Caio Bugiato Ricardo Fabbrini Antônio Sales Rios Neto Denilson Cordeiro Afrânio Catani Rodrigo de Faria Chico Alencar Eliziário Andrade Paulo Sérgio Pinheiro Alexandre de Freitas Barbosa José Costa Júnior Berenice Bento José Luís Fiori Fernão Pessoa Ramos Carlos Tautz Luiz Roberto Alves Claudio Katz Carla Teixeira Elias Jabbour Francisco Pereira de Farias Fábio Konder Comparato Ricardo Musse Walnice Nogueira Galvão Tales Ab'Sáber Jean Pierre Chauvin Eduardo Borges André Singer Marilena Chauí Leonardo Boff Salem Nasser Kátia Gerab Baggio Antonio Martins Priscila Figueiredo Eleonora Albano Érico Andrade Vinício Carrilho Martinez Francisco de Oliveira Barros Júnior Tadeu Valadares Luiz Werneck Vianna Armando Boito Jorge Luiz Souto Maior Liszt Vieira Sandra Bitencourt Henri Acselrad Luiz Bernardo Pericás Lincoln Secco Francisco Fernandes Ladeira Marcos Aurélio da Silva Osvaldo Coggiola Anselm Jappe Gerson Almeida João Paulo Ayub Fonseca José Raimundo Trindade Michel Goulart da Silva Yuri Martins-Fontes Valerio Arcary Atilio A. Boron Bento Prado Jr. Slavoj Žižek Marcelo Módolo Celso Favaretto José Machado Moita Neto

NOVAS PUBLICAÇÕES