São Paulo – escolas com menos ciências humanas

Imagem: Elizabeth Lizzie
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Por MARCIA APARECIDA JACOMINI & ANA PAULA CORTI*

A desvalorização dos conhecimentos históricos, geográficos, filosóficos e sociológicos vai cimentando uma escola pública apagada, insatisfeita, apequenada

1.

No dia 27 de janeiro de 2025 pesquisadores e entidades publicaram um estudo intitulado “Redução das Ciências Humanas no Currículo da rede estadual paulista” apontando que o governo de São Paulo cortou aulas das disciplinas de história, geografia, sociologia e filosofia.

O ataque às humanidades só tem correlato com o vivido na ditadura civil-militar de 1964, período em que foi criada a disciplina de Estudos sociais no 1º grau, apagando a especificidade de história e geografia. No 2º grau foram excluídas as disciplinas de sociologia e de filosofia, substituídas por Educação moral e cívica e organização social e política do Brasil (OSPB).

As reformas curriculares recentes, contrariando a importância dada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei n° 9394/1996) (Brasil, 1996) à área de humanidades como conteúdos essenciais à formação do ser humano no contexto das sociedades contemporâneas, têm orquestrado um verdadeiro ataque ao ensino destas disciplinas.

A reforma do ensino médio por meio da Lei n. 13.415/2017 foi implementada sob a alegação de modernizar o currículo fornecendo aos estudantes opções de escolhas que proporcionariam melhores oportunidades de inserção social e profissional. Porém, o que realmente ocorreu foi um esvaziamento do currículo em relação aos saberes escolares, ampliando a presença dos denominados itinerários formativos.

Tal reforma produziu propostas extravagantes: a rede estadual paulista criou 276 componentes curriculares organizados em 11 itinerários formativos gerais e mais 25 de ensino profissionalizante (Jacomini et al., 2024). Pelo Brasil afora foram criadas disciplinas esdrúxulas como “O que rola por aí?” e “Brigadeiro gourmet”, entre outras que causaram indignação enquanto retiravam de uma geração de estudantes do ensino médio a oportunidade de acessar o conhecimento científico/humanístico/artístico tão relevante para uma formação crítica e cidadã.

A desilusão com a falsa promessa de que o novo ensino médio traria a redenção de uma experiência escolar pouco estimulante culminou numa série de protestos que pediram a revogação da reforma e que vieram à tona com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2022.

A partir daí foi construído certo consenso sobre a necessidade de “reformar a reforma”. Não havia, porém, acordo sobre quais mudanças deveriam ser realizadas. O campo que congregava entidades e organizações historicamente vinculadas à defesa da escola pública propunha mudanças profundas, diferente dos agentes defensores da reforma vinculados aos interesses do capital, notadamente os institutos e fundações empresariais e seus braços governamentais. O governo federal anunciou uma consulta pública em 2023 e como resultado enviou um Projeto de Lei ao Congresso Nacional, aprovado em novembro de 2024.

A Lei n. 14.945/2024 foi a representação da correlação de forças em disputa, acomodando reivindicações dos dois campos sem atender integralmente a nenhum deles. A recomposição de uma matriz curricular com um mínimo de 2.400 horas (ao invés do máximo de 1.800 horas de antes) destinadas às disciplinas da Base Nacional Comum Curricular trouxe certo alívio e esperança àqueles que criticavam o esvaziamento de um conjunto de conhecimentos historicamente construídos e sistematizados.

2.

No caso paulista, a expectativa foi logo frustrada. A Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) que já havia feito um corte significativo de carga horária nas ciências humanas com a Lei 13.415/2017 (que passaram de 720 horas em 2019 para 480 horas em 2023), anunciou para 2025 mais um corte. Assim, em 2025, os estudantes do ensino médio parcial diurno terão apenas 466,7 horas de ciências humanas no currículo. As disciplinas mais prejudicadas foram filosofia e sociologia, mas houve cortes também em geografia.

Assim a área de humanidades não teve uma recomposição do número de aulas com a retomada de 2400 horas para as disciplinas da base comum, pelo contrário, houve um aprofundamento do ataque às disciplinas que a compõem.

O estudo indicou que na comparação entre a matriz curricular pré-reforma, a de 2024 e a atual (2025) houve diminuição no número de aulas nas distintas modalidades de ensino e tipo de escola, sendo que quem mais perdeu aulas da área de ciências humanas foram os estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA), tendo hoje menos da metade das aulas que tinham antes da reforma, uma diminuição de 57,1% das horas de formação Para os estudantes do ensino médio de tempo parcial e de tempo integral com jornada de 7 horas diárias, a redução foi de 35,1%,. O ensino noturno teve redução de 23,8% e para o ensino de tempo integral com 9 horas diárias a redução foi de 22,2%.

Essas mudanças configuram uma opção consciente e deliberada de estabelecer um currículo avesso aos conhecimentos das humanidades. Não por acaso as disciplinas mais afetadas foram Sociologia e Filosofia que tiveram uma redução de 62,9% de suas cargas horárias (REPU et al. 2025).

Enquanto discute-se a implementação da Lei n. 14.9845/2024 no país, o estado de São Paulo adota mudanças curriculares também nos anos finais do ensino fundamental numa medida inédita que reduziu 28,3% das aulas de história e geografia (REPU et al. 2025).

Enquanto isso, a disciplina de Educação financeira foi introduzida na Formação geral básica e deve ser frequentada por todos os estudantes do ensino médio. Nos itinerários formativos, disciplinas como Liderança, Empreendedorismo, Projeto de vida levam para a escola pública um simulacro dos ambientes corporativos, mas sem professores formados para ministrá-los, e que estão cada vez mais desanimados por terem que desperdiçar sua formação inicial lecionando disciplinas superficiais e desvalorizadas pelos alunos.

A digitalização do material didático cada vez mais sob controle da Seduc-SP e a plataformização adotada na gestão de Renato Feder completam o quadro de desesperança que assola a rede estadual paulista, muito diferente do pintado à época da reforma que prometia uma escola viva, vibrante e atrativa.

A desvalorização dos conhecimentos históricos, geográficos, filosóficos e sociológicos vai cimentando uma escola pública apagada, insatisfeita, apequenada, que ao invés de apresentar novos conhecimentos, de várias cores e tonalidades, que possam expandir o pensamento dos estudantes e sua capacidade imaginativa, faz estreitá-los para caberem no espaço restrito de uma racionalidade economicista, individualista e imediatista, modulada de forma cada vez mais precoce às novas formas de trabalho, exploração e sociabilidade neoliberais.

*Marcia Aparecida Jacomini é professora do Departamento de Educação da Unifesp.

*Ana Paula Corti é doutora em Educação pela USP e professora do Instituto Federal de São Paulo (IFSP).

Referências


BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível aqui.

BRASIL. Lei n. 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Altera as Leis n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a Consolidação das Leis do Trabalho – C LT, aprovada pelo Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943, e o Decreto-Lei n. 236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei n. 11.161, de 5 de agosto de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Disponível aqui.

BRASIL. Lei n. 14.945, de 31 de julho de 2024. Altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), a fim de definir diretrizes para o Ensino Médio, e as Leis n. 14.818, de 16 de janeiro de 2024, 12.711, de 29 de agosto de 2012, 11.096, de 13 de janeiro de 2005, e 14.640, de 31 de julho de 2023. Disponível aqui.

JACOMINI, Márcia Aparecida; MOUTINHO Jr., Isaac Oliveira; ANDRADE, Weverson Marques de; SOUZA, Ozani Martiniano de; LAVADO, Janaína Paulieli. O avesso da reforma do Ensino Médio na rede estadual paulista. Arquivos Analíticos de Políticas Educativas, v. 32, n. 22, 2024. doi.org/10.14507/epaa.32.8270

REDE ESCOLA PÚBLICA E UNIVERSIDADE [REPU] et al. Redução das Ciências Humanas no currículo da rede estadual paulista [Nota Técnica]. São Paulo: REPU / Gepud, 28 jan. 2025. Disponível em: www.repu.com.br/notas-tecnicas; www.gepud.com.br


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