Prosa da cidade

Tommy Hilding, Abstração e reflexão, 1988
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por EDUARDO SINKEVISQUE*

Comentário sobre o livro recém-lançado de Nuno Rau

1.

A prosa (poesia) de Nuno Rau em Prosa da Cidade não é (apenas) da cidade. É prosa (poesia) do mundo. A chave disto talvez esteja na página 98, quando a frase “prosa do mundo” é explicitada. O Rio de Janeiro não é maior do que o mundo, mas é de Nuno Rau um mundo. E as imagens que se apresentam a Nuno Rau, que ele nos oferece, não são maiores, nem melhores do que as imagens do Tejo, nem de Lisboa, mas são o rio e a aldeia de Nuno Rau. O balneário é de Nuno Rau o mundo como é a aldeia de Fernando Pessoa.

É extraordinária a poesia em Prosa da Cidade no sentido de que não estava prevista, e no sentido de que a poesia de Nuno Rau que comento aqui é extraordinária também. Ela rompe o asfalto, como flor (não romântica) que nasce na rua.

Embora poesia suja, cheia de fuligem e poeira das ruas da cidade de São Sebastião, vinda do que se costumou convencionar “o real”, ela não é poesia pedestre, nem rasteira. Ela vem de fachadas de construções, de transeuntes, de lambe-lambes das paredes, da fiação cheia de gatos feitos por milicianos, mas não é poesia miliciana.

Pensei a sujeira dessa poesia também como som sujo, da pesada, de banda de rock de garagem. Poesia rock and roll. Poesia de guerrilha, talvez. Crítica e insatisfeita, certamente; vinda de um poeta insatisfeito, incomodado e descontente com o posto, com o dado. A chave para o, ainda que suposto, “real” está em “Ars Poetica”, em que Nuno Rau escreve: “se não tiver a ver com o real, esqueça”. O leitor vai desconfiando disso até a página 160.

Escrevo em silêncio, pois melopeia não é o forte em Prosa da Cidade. O objeto livro de Nuno Rau é um livro belíssimo. A edição por si mesma tem um fazer poético de alta voltagem.

Explico: capa, contracapa, orelha, tudo isso em cores que contrastam com o miolo em preto-e-branco não apenas dos poemas, mas das fotografias, que por si mesmas são também poemas. Penso que texto e imagem concorrem, no sentido de correrem juntos. Não são ilustrações as imagens, não são enfeites, nem acessórias. Elas são um corpo poético disposto ao longo do livro, com o são os textos escritos, outro corpo poético disposto.

O barulho do silêncio me permite ouvir o inaudito.

2.

Fiz uma hipótese tão logo iniciei a leitura de Prosa da Cidade: Nuno Rau compõe um livro de câmara, embora com matérias vindas ou retiradas da ágora, das ruas, da urbe. Por que de câmara? Porque livro para ser lido de perto, mais do que uma vez. Embora trate do que está fora, retrata o que está dentro e com pinceladas detalhadas, o que convida o leitor a ver de perto, a ler de perto e mais do que uma vez. Não de longe, se fossem pinceladas largas e sem detalhes as utilizadas na feitura do livro.

A seção intitulada “Anamorfoses” me parece diferente das outras seções do livro. São dos textos as fotografias seus duplos quase como uma coisa só ou matrizes de uma calcografia.

O posfácio de Leonardo Almeida Filho toca em questões ótimas como mencionar poetas com os quais Nuno dialoga. São eles João Cabral, Manuel Bandeira, Mario de Andrade e Carlos Drummond de Andrade. Às vezes como opositor, outras como companheiro. Há poemas mesmo em que de um modo ou outro esses poetas ecoam.

Antes de finalizar, enumero os poemas que preferi em Prosa da Cidade. Pela ordem de entrada no livro são eles: “Na birosca do Orfeu”; “Discurso do poeta Waly Salomão antes de se fechar a última porta do paraíso”; “Domingo mesmo”; “Explicação do dia”; “Nas passeatas as cores são todas semitons”; “Os três mal pagos” (ironia com “Os três mal amados”, de João Cabral de Melo Neto, que escrevi à margem do exemplar em que li: genial); “Poema tirado de uma notícia no WhatsApp” (ironia com Manuel Bandeira, que escrevi também à margem do exemplar em que li: genial); “Marambaia” (que escrevi à margem: poesia com ou contra); “Os barítonos do Méier”; “Os túneis sucessivos do metrô”; “Neolib” (comentado no posfácio por Leonardo Almeida Filho); “Nênia para classe média brasileira” (que escrevi às margens: prosa estrito senso, em variação de anáforas, com mote irônico: “nenhuma livraria”); “Uma pedreira”; “mesmo os motéis baratos andam às moscas”.

O mais recente livro de poemas / fotografias, de fotografias / poemas, de Nuno Rau, embora trate de feios, sujos, e malvados é um objeto verbivocovisual que convida à visão a transitar por frames vertiginosos.

Embora trate de feios, sujos e malvados, Prosa da Cidade é um livro cuja beleza contrasta com as matérias de sua composição. Não é o Rio de Janeiro que continua lindo. É sua beleza extraída de dentro para fora, na relação do poeta com a cidade.

Prosa da Cidade é uma ruptura de gênero, uma inversão estética onde o feio é belo e o belo é feio. Olha o breque: aquele abraço!

*Eduardo Sinkevisque é pós-doutor em Teoria Literária pela Unicamp. Autor, entre outros livros, de Poemas da Branca (Árvore Digital).

Referência


Nuno Rau. Prosa da cidade. São Paulo, Editora Patuá, 2025, 184 págs. [https://amzn.to/4dgXwYq]


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