Por OTÁVIO A. FILHO*
Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
1.
Vivemos um momento fascinante da história da humanidade. Nunca o filósofo grego, Platão, foi tão necessário para ajudar-nos a compreender as gloriosas, perigosas e problemáticas questões atuais. Devemos, no entanto, considerar os alertas feitos por Cornelius Castoriadis, filósofo greco que adotou a França como sua pátria, quando proferiu, na primavera do ano de 1986, sete aulas num seminário na École des hautes études en sciences sociales, analisando o Político de Platão, e ensinou que devemos desconfiar do velho filósofo grego.
Nessa obra fundamental, demonstrou que: “Platão combatia os sofistas mas era um sofista incomparável.” Nunca como agora, acredito, a verdade se contorce nos esconderijos dos delírios com tanta inquietação.
Outro filósofo que levou as dúvidas às últimas consequências foi René Descartes, quando, no século XVII, (século de grandes saltos na história humana) perguntou-se como podia certificar-se de que o que pensava e sentia não era produto de algum demônio a enganá-lo. Nas minhas andanças por esses labirintos acredito que ninguém melhor que o filósofo Norbert Elias compreendeu com tanto refinamento essa dúvida cartesiana.
Pois bem! René Descartes, ecoando Platão, se perguntava: Tudo o que aprendi, tudo aquilo que sei, aprendi-o através ou a partir das percepções sensoriais. Mas será realmente possível confiar nos próprios sentidos? E continuava: “Claro, estou vendo minhas mãos; sinto meu corpo. Mas, acaso não existem pessoas que acreditam ser Reis, quando, na realidade, são indigentes?” (…) “Não será possível que Deus tenha arranjado as coisas de modo a que eu acreditasse ver o céu e a terra?” (…) “Ou então, se Ele não o fez, não será possível que um espírito maligno me esteja levando à ilusão de achar que sinto, vejo e ouço todas essas coisas que na realidade não existem?”.
Enquanto a filosofia faz perguntas, as religiões, as mitologias, as artes (sempre no conforto dos dogmas) têm palavras, mágicas e fabulosas para dizer aquilo que está além das nossas capacidades de compreensão. Maya ou Maiá, no Hinduísmo, é a palavra que fala das ilusões, dos véus que envolvem a realidade e que nos revela como a vida é um jogo que temos de aprender a jogar.
Ilusão, inludere, ludo, lúdico são palavras que, compartilhando a mesma rede semântica, nos impõem pensar os caminhos férteis dos modos de pensar. E Calderón de La Barca, lá no século XVII, em sua magistral obra teatral La vida es un sueño já alertava: “la vida es un sueño y los sueños, sueños son“.
Consultei o Deepseek (a inteligência artificial chinesa de 6 milhôes de dólares) perguntando por Boato. Boato é um personagem que, segundo a fonte em que confiei num primeiro momento, era um fofoqueiro que viveu em Ítaca, a lendária, paradisíaca e minúscula ilha grega onde viviam Ulysses e Penélope.
Reza Homero que foi dali que Ulysses saiu para suas deliciosas e perigosas aventuras antes mesmo que Aristóteles arriscasse estruturar sua lógica formal e estabelecer os modos corretos de pensar, com seus silogismos cuidadosos.
2.
Pois bem! Boato é um personagem de ficção que, segundo a lenda, infernizou os pretendentes de Penélope dizendo que Ulysses estava chegando de volta da longa viagem e ia querer saber daquelas propostas imorais para sua adorada Penépole. Mas Boato era um boato.
O que sabemos dos registros (e é sempre prudente ter nossas certezas mantendo uma pulga atrás da orelha) é que, na mitologia, existiu Fama (Pheme) que, na mitologia greco-romana, é a divindade que personifica os rumores e as notícias, sejam verdadeiras ou falsas. Virgílio, na Eneida (Livro IV), descreve-a como um monstro alado que espalha informações rapidamente, muitas vezes distorcendo a verdade.
Mais próximo a nós temos, por exemplo, o sofrimento que o nosso padre Antonio Vieira viveu por conta dos seus Sermões. Tenho em mãos uma edição digital dessa obra. Nesta publicação podemos ler, logo no início, a súplica que Antonio Vieira faz à Sua Majestade, o Rei, para intervir e garantir que os seus Sermões não fossem publicados por editoras clandestinas, sobretudo da Espanha, distorcendo o sentindo das suas palavras. Antonio Vieira, inclusive diz do absurdo das falsificações e do mau gosto desses editores picaretas, que utilizavem expressões as quais ele jamais usaria.
Estamos falando do ano de 1662. Ou seja, quer seja na Grécia nas origens da cultura ocidental, quer seja no, século XVII, as fake news, as mentiras, as fofocas, as falsificações já eram moeda corrente. Leiam o que dizia o Padre Antonio Vieira sobre as agruras que teve de enfrentar: “No ano de 1662, imprimiram em Madri debaixo de meu nome um livro intitulado: Sermones Varios, e no ano de 1664 outro, a que chamaram: Segunda Parte. As mais intoleráveis injúrias são aquelas a que se deve agradecimento, e tal foi este benefício. Muitos dos ditos sermões, como já te adverti, são totalmente alheios e supostos”.
Já no nazismo hitlerista, Victor Klemperer que era judeu, casado com uma alemã, (casamento misto, como diziam os nazistas) professor de filologia românica na Universidade de Dresden e autor do magistral Linguagem do Terceiro Reich, conta-nos como os nazista, comandados por Joseph Goebbels, já faziam testes espalhando fake news em Berlim para saber em quanto tempo elas chegariam em Munique. Mestres da propaganda, os nazistas inspiraram o mundo e, de certo modo, podemos dizer que um de seus grandes herdeiros é Donald Trump.
3.
Mas volto a Platão e à expressão”suspeito que te amo” para dizer que devemos ser muito cuidadosos com o que vemos, lemos ou sentimos. Dias atrrás li, no site A Terra é Redonda, um renomado intelectual e professor da USP elogiando a atitude do programa Fantástico, da Rede Globo, que alertava sobre os avanços da Inteligência Artificial e dos riscos de falsificação de imagens e vídeos que vemos, sobretudo na redes sociais.
O argumento do professor é que quando vemos um vídeo ou uma imagem, ou lemos um texto devemos nos valer da moral e da ética do emissor (autor, origem) para nos certificar a autenticidade dessas imagens e desses vídeos.
Devemos ficar atentos para argumentos como este pois, com todo respeito ao insigne professor, argumentar que uma empresa como a Rede Globo tem qualquer tipo de credibilidade é, minimamente, risível. São vários os exemplos em que a Rede Globo agiu, e continua agindo, da forma mais abjeta escamoteando a verdade dos fatos. As eleições de Leonel Brizola no Rio de Janeiro em 1982 e, depois, cinicamente editando o debate entre Lula e Fernando Collor nas eleições de 1989 são exemplos contundentes.
Mergulhados estamos nas incertas desse vale de lágrimas que é a existência humana. Buscamos as fontes que garantam a autenticidade do que vemos mas as fontes estão secas, ou poluídas pela indignidade e as maldades que turvam essas águas cristalinas.
Suspeito que te amo, meu ilusório amor! Mas não são sei se são as testosteronas ou os teus estrógenos que ditam o que sinto. Suspeito que te amo é uma afirmação que ecoa esperanças no meu coração esperando que sejamos felizes para sempre sob os véus que Maya teceu para as longas noites das nossas ilusões.
*Otavio A. Filho é doutor em comunicação e semiótica pela PUC-SP.
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