Por MARILIA PACHECO FIORILLO*
Esqueçamos, por enquanto, os titubeantes esquemas explicativos, para plugar no fio-terra da urgência cotidiana.
Na profusão desnorteante de análises, interpretações e insinuações teóricas para compreender o que se passa num mundo abismado em conflitos, conflagrações, recessão, pandemias, retrocessos, psicoses coletivas, a insidiosa rede de mentiras e demência desencadeada via digital, e a promessa de um iminente Armageddon, só uma coisa é certa: não se sabe nada.
Culpa dos filósofos, politicólogos, sociólogos, e outros amigos do logos aos quais falta empenho, discernimento ou inventividade? Absolutamente não. É que tudo irrompe com tamanha aceleração (até inventaram uma disciplina sobre isso, a Dromologia), com tanta oscilação deindícios, com tal ímpeto desorganizador, que a perplexidade é, provavelmente, a única resposta genuinamente honesta. Sim, há explicações pontuais, razoáveis e certeiras, sobre este ou aquele episódio. Mas quando nos pacificamos na expectativa de que “é isso aí, enfim”, os fatos dão uma cambalhota e nos pegam desprevenidos.
Dizer que a proximidade dos eventos e a complexidade de (mais) um tempo sombrio estreita a perspectiva é chover no molhado. Pior: seria uma lapidar estultice digna do “Dicionário de ideias feitas”, apêndice picaresco de Bouvard e Pécuchet, os personagens de Flaubert que sonham construir um conhecimento enciclopédico, mas acabam produzindo um manual de trapalhadas em que um dos motes centrais é lamentar o tempo presente. A todo presente falta, óbvio, aquele horizonte, aquela perspectiva mais sopesada que costura os eventos pretéritos e lhes dá, se não sentido, certa coerência.
Mas somos atropelados cotidianamente por tantas variáveis infernais ( a maior pandemia de todos os tempos, a maior recessão jamais vivida, a mais aguda crise das instituições democráticas, ódio e ressentimento escapando do civilizado recalque e correndo solto) que o planeta parece um daqueles excêntricos átomos em que um elétron salta de órbita e pimba, foi-se a estabilidade.
Mas no núcleo desta maratona de insensatez e plausíveis incongruências o maior risco não é o cogumelo atômico, nem arequentada guerra-fria, nem a III Guerra Mundial, pois esta já está em curso há anos, nas edículas de várias regiões, em cidades e vilas, sob a roupagem de crimes contra a humanidade, genocídios, limpeza étnica. Some-se tudo, e os dados (drones, armas químicas, bombas) já foram lançados. O maior risco futuro, a culminância das derrotas, é o desalento.
O porquê [?]
Em Sonâmbulos, uma análise da eclosão da I Guerra mundial , publicada em 2012, seu autor, o professor da Universidade de Cambridge Christopher Clark, sugere que vivemos um cenário mais próximo do que precedeu a carnificina nas trincheiras européias do que aquele que engendrou , na II Guerra, os campos de morte assépticos, encarregados da solução finale da instauração do milênio do III Reich, que durou uma meia dúzia de anos. O surto de nacionalismo patriótico foi idêntico e nefasto, como os habituais coturnos e continências, e “a hora da diplomacia chegava ao fim”.
Mas, como em 1914, e em contraste com os anos 1930, os fatos agora são demasiadamente emaranhados, o protagonismo está muito pulverizado, os alinhamentos e realinhamentos voláteis, a desconfiança prospera dentro das próprias fileiras, e os atores e jurisprudência supra-nacionais, como a ONU e as Convenções de Genebra ( a primeira e segunda já existiam em 1864 e 1906) , que tiveram seu papel no pós-II Guerra, estão atualmente no auge do descrédito, debilitados, inócuos, mesmo desmoralizados.
Vide a Síria, onde um Assad vitorioso saiu ileso das denuncias de genocídio e uso de armas químicas. Vide o Yemen, onde uma criança morre de cólera, fome ou bomba a cada 10 minutos. Vide a limpeza étnica e o extermínio dos Rohingya em Myanmar. Se a violência já foi chamada de parteira da história, o sadismo e a crueldade a refinaram, e estão partejando o caos. O nada recomendável Henry Kissinger declarou, certa feita, que a moralidade interpessoal era OK, mas não podia ser trasladado para conflitos entre nações. Razões de Estado.
Há uma passagem iluminadora no livro de Clark. Ele adverte que, diante dos pontos cegos difíceis de deslindar, é mais conveniente perguntar o “como”, em vez do “porquê”.“As questões do “porquê” e do “como” são logicamente inseparáveis, mas nos levam em direções diferentes. A questão do como nos convida a examinar atentamente as sequencias de interações que produziram determinados resultados.
Em contraste, a questão do “porquê” nos convida a ir em busca de causas remotas e categóricas (em nosso caso, a dinâmica do capital financeiro, a guerra digital, a cambiante partição geopolítica internacional, multilateralismo ou isolacionismo) (…) e teria um efeito distorcivo, pois cria a ilusão de uma pressão causal a acumular-se constantemente, os fatores empilhando-se uns sobre os outros, forçando o sobrevir dos acontecimentos”. A ilusão, melhor, a desilusão que vivemos , é em boa parte cria desta saturada caça aos “porquês”, esforço digno, arraigadamente humano, para construir um croquis que tudo englobe , esmiuçado em detalhes e intersecções, e que, como bom conhecimento sistematizado, sirva não só para suscitar polêmicas acaloradas, mas, principalmente, para dar a largada a hipotéticas soluções.
Causa ou contingência?
O mais modesto “como” se limita a dar pistas, aqui e acolá. Elenca a combinação de atores, acidentes e opções, irrepetíveis, e, cúmulo dos cúmulos para os profetas do “porquê”, inclui a contingência como elemento essencial. Um acaso, um imprevisto, um gesto inesperado podem fazer toda a diferença.
O altamente recomendável escocês David Hume, um bonachão que acolheu Rousseau e suportou sua paranoia, e cuja Investigação sobre os princípios da moral (1751), versão abreviada do Tratado sobre a natureza humana (1739) privilegia as virtudes sociais como superiores àquelas privadas, filosofou anos e anos. Para concluir que nada, no mundo fenomênico ou valorativo – exceção feita a álgebra e geometria – é passível de conhecimento 100% assertivo.
Pois o que tomamos ciosamente como relações de causa e efeito são apenas percepções de regularidades. É apenas nosso hábito de constatar regularidades que cria a expectativa de que estas são universais. Mas nada obriga a que Y se siga a X. Inexiste um vínculo de necessidade; o que há é um mero e constante nexo. Adeus ás causas; vamos nos ocupar das conjunções, mais confiáveis.
Muito resumidamente, Hume diria que os “porquês” são apenas solenes convenções que formulamos, no afã de entender o compasso do mundo e da vida. São associações – nunca verdades – inspiradas pela contigüidade, continuidade, semelhança e coincidência. Fantasiamos que podemos elaborar universais porque existe uma regularidade na percepção. Tomemos a lei da gravidade: um corpo sempre cai a certa velocidade e aceleração conforme sua massa. Menos na nave Discovery de 2001 uma Odisseia no espaço, de Kubrick. Menos no espaço sideral. Os atributos do real são incognoscíveis, já que não são passiveis de verificação. E o acaso faz das suas: por exemplo, ninguém programou Hal, o computador da nave, para ter sentimentos e se rebelar.
Mas então, como?
Como a Nova Zelândia chegou a zerar a pandemia por um bom tempo e ainda é a campeã no controle da doença, sob a liderança de uma primeira-ministra que discorre sobre a importância de Papai Noel?
Como a população da Bielorrussia despertou de uma letargia de 26 anos e levantou-se em peso contra o ditador Lukashenko, sob a condução de uma professora sem experiencia em ativismo político?
Nova Zelândia: Seja forte, seja gentil
Com um quarto da população novaiorquina, 4,9 milhões de habitantes, a Nova Zelândia teve 19 mortos, e menos de 1.300 contagiados. Nova York ,no auge da pandemia, com 19 milhões e meio de habitantes, teve 300mil contagiados pelo coronavírus , e mais de 17 mil mortes. Recentemente voltou a fechar as fronteiras, com suspeitas de novos casos, mas, a continuar sua política, o sucesso será repetido, graças á política de priorizar vidas.
O segredo: agir rapidamente, bem rápido, e com medidas draconianas, cirúrgicas. O lockdown foi decretado aos primeiros sinais de que a pandemia chegava. “Temos só 102 casos, disse na ocasião a primeira ministra Jacinda Ardern, mas foi assim que a Itália começou”.
O lockdown durou cinco semanas, e foi para valer: rastreamento de fronteiras e quarentena para viajantes, todos os parques e playgrounds fechados, todo mundo confinado em casa, escritórios e escolas com atividades suspensas, e mesmo restaurantes proibidos até de fazer delivery.
O sucesso do modelo neo-zelandes é inequívoco, e se explica por alguns fatores: confiança na ciência, capacidade de liderança, clareza nas informações e apelo à solidariedade. Em vez de se falar de uma “guerra ao vírus”, as mensagens da primeira-ministra terminavam com um “Sejamos fortes, sejamos generosos”, e placas espalhadas com país exibem os dizeres “fique calmo, seja cordial”.
Arden é uma líder competente, habilidosa e de um carisma feito de delicadeza, não de brados feéricos. Basta lembrar sua reação ao atentado a uma mesquita em Christchurch, há um ano e pouco, de compaixão e compostura, elogiada como exemplar. Em suas coletivas diárias sobre a pandemia, ao lado e em consonância com o ministro da saúde, medidas drásticas eram anunciadas em tom calmo, sempre apelando para a unidade da população, para “nosso time de cinco milhões”.
A estratégia de Arden foi agressiva: eliminação, em vez de mitigação, como fazem outros países, que adaptam as restrições conforme o crescimento da doença. Lá, o confinamento foi total e rápido, além de medidas econômicas para socorrer pessoas e pequenos negócios, doesse o que tivesse de doer na economia. Ardern também anunciou um corte de 20% em seu salário e de seus ministros, para não deixar duvidas.
Em 12 de junho passado, Ardern comunicou que há duas semanas não existe um único caso de pessoa internada com sintomas da doença. À meia noite, o país passou do nível 4 de alerta para o nível 1, o mais baixo.
Foram suspensas todas as medidas de isolamento e distanciamento social, e festas, jogos, shows, encontros públicos foram liberados sem limitações. Só se mantem o controle das fronteiras. Pode-se argumentar que é mais fácil em uma ilha pequena, com apenas 5 milhões de habitantes. Nada disso: o segredo da vitória de Jacinda Ardern foi o timing, saber detectar o momento certo, e tomar as medidas necessárias para deter a rápida disseminação da catástrofe.
Ardern, que nunca caiu na cilada do negacionismo, não titubeou, não se deixou levar pela falsa dicotomia economia X vidas, e agiu como um bom cirurgião: implantou o lockdown assim que apareceram os primeiros casos no país, e enfrentou seus opositores internos que achavam precoces suas medidas. Estava certa. Sua meta não era esperar o gráfico da curva da doença subir até atingir um platô, mas sim a de estancar qualquer progressão na curva. Se muitos países tivessem feito o mesmo, especulamos, decretando rápido, logo no comecinho, o isolamento, talvez várias vidas tivessem sido poupadas.
No inicio, muita gente torceu o nariz, mas hoje todos aplaudem, aliviados. Em troca de 35 dias de absoluta reclusão, mais um mês de flexibilização parcial, agora a Nova Zelandia é o único lugar do planeta em que todo mundo pode se abraçar, literalmente.
Quem é esta líder capaz de trancar em casa cinco milhões de pessoas, sem recorrer á violência? É a mesma pessoa que levou seu bebê recém-nascido para uma Assembleia da ONU, que se solidarizou para valer com a comunidade muçulmana na ocasião do atentado a uma mesquita, que recorreu a mensagens de generosidade, em vez de metáforas bélicas, e que reduziu seu salário em 20% durante a pandemia.
Clareza, firmeza, prontidão. E tranquilidade no trato com as pessoas. A primeira reação de Ardern, ao saber que o vírus havia sido banido do país, foi dançar com sua filha pequena. Já havia feito lives apontando para a importância do Papai Noel e do Coelhinho da Páscoa para convencer as crianças quarentenadas.
Que excêntrica, esta líder suave e firme!
Bielorrússia: Três mulheres e uma revolução.
Mães, filhas, esposas, irmãs, amigas: centenas de mulheres saíram hoje ás ruas na Bielorússia, vestidas de branco e carregando flores, exigindo saber o paradeiro dos milhares manifestantes que se insurgiram contra a vitória, fraudada, de Alexander Lukashenko, o tirano que governa o país há 26 anos. Mais de seis mil pessoas foram “desaparecidas”, inúmeras torturadas, dois mortos já foram confirmados e filmagens mostram o momento em que jovens eram carregados por homens mascarados para dentro de vans, onde eram espancados. Podia-se ouvir os gritos das pessoas que estavam dentro das vans.
A União Européia condenou a eleição como fraude. Polônia, Lituânia, Estônia, abriram as fronteiras para os perseguidos pela ditadura. Desta vez não se trata de uma disputa entre governo e oposição, mas do levante de uma população inteira – inclusive com greve de trabalhadores em algumas fábricas estatais – contra um ditador que, além de levar o país á bancarrota, recomendava, como cura para a covid 19, tomar vodka e ir para a sauna.
A candidata da oposição Svetlana Tikhanovskaya, que foi detida na noite anterior ao pleito, e está refugiada na Lituânia, é uma professora de 37 anos que nunca foi ativista, mas decidiu engajar-se no lugar do marido, um youtuber de oposição que foi preso em maio. Apoiada pelos grupos oposicionistas, a campanha de Svetlana se pautou em duas propostas básicas: libertar os presos políticos, convocar novas eleições, e instaurar um regime democrático.
Ao lado de duas outras mulheres, VeronikaTsepkalo (cujo marido está exilado) e Maria Kolesnikova (porta-voz do oposicionista Victor Babariko , também detido), Svetlana compõe a troika da democracia, que despertou uma população há anos insatisfeita e a colocou massivamente nas ruas. Maria continua em Minsk, a capital, mas Veronika foi forçada a deixar o país, como Svetlana. Antes de partir, a candidata gravou um vídeo explicando que, diante das ameaças á família, ela havia optado pela vida.
Especula-se que lhe mostraram imagens do marido sendo torturado na prisão. Os protestos, internos e na comunidade internacional, só aumentam. Lukashenko havia caçoado das pretensões de Svetlana, dizendo que uma mulherzinha não tinha condições de capitanear o pais. Mas com três delas liderando, e centenas nas ruas, seguidas por milhares de pessoas, há uma boa chance de que as mulheres da Bielorússia consigam, finalmente, derrubar o tirano.
Trezentas mil pessoas (200 mil na capital Minsk) encorparam os protestos que acontecem há uma semana e meia, e voltaram ás ruas no domingo passado, apesar da ameaça de intensificar a repressão. Canções e palavras de ordem exigem a queda do ditador Lukashenko. Trabalhadores de fábricas estatais, pela primeira vez em 26 anos, se somaram às milhares de pessoas nas ruas, entraram em greve e receberam Lukasehnko com vaias. Jovens militares queimaram seus uniformes em público. Jornalistas, aqueles que não foram demitidos, aderiram ás manifestações, e algumas redes de TV foram cercadas por manifestantes que pediam: “Mostrem-nos nas ruas”. Isso porque a internet chegou a ser suspensa, para censurar as redes sociais. Há um consenso generalizado, no país, de que Lukasehnko não pode se manter no poder
O ditador se mantem intransigente, mas está periclitante. Pela terceira vez, telefonou ao presidente russo Putin pedindo socorro, isto é, ajuda militar para intensificar a repressão. Putin informou-o que consultaria a chanceler alemã Angela Merkel e o presidente francês Emmanuel Macron para tomar qualquer decisão. Um banho de água fria.
A solução ucraniana (isto é, a invasão/anexação via tropas) é altamente improvável. Pela simples razão de que não há, no país, o sentimento anti-russo e pró-Ocidente que havia na Ucrânia. Três quartos, ou mais da população, fala russo e escreve em cirílico. A Putin, não interessa criar conflito com os bielorrussos, que dependem inteiramente do petróleo da potencia vizinha. Mais: a relação entre Putin e Lukashenko nunca foi das melhores, haja vista os vai e vens de Lukasehnko em seu alinhamento geopolítico. O petróleo russo era vendido a preço subsidiado, mas, diante dos acordos não implantados pelo presidente bielorusso, Putin já ameaça cortar o subsídio.
É precária a situação do ditador: um levante popular como jamais houve, parte dos militares recusando-se a continuar brutalizando a população, e, talvez o mais significativo, nenhum interesse de Putin em fazer o papel antipático e desgastante de interventor.
Que excêntrico, três mulheres (duas delas sem ativismo prévio) encabeçarem a queda de um tirano!
Nada excêntrico
Apenas a crônica de dois “como” que podem ajudar a refletir, entender, explicar, explicitar, compreender o enigma do “deu certo, quem diria”.
Faltou rememorar o “presentismo”, aquela criptoteoria adepta de aplicar o decalque do passado no presente. Não dá, nem como farsa. Alguns a acusam de ‘vulgar’, mas se resume a uma nostalgia bem-intencionada, como aquelas que pavimentam o caminho do Hades.
Porém, Amarcord. O “como” também era valioso para um sujeito do século retrasado que dizia que “os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.”
*Marilia Pacheco Fiorillo é professora aposentada da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP).