A esquerda que abriu mão da crítica

Imagem: Paulinho Fluxuz
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Por LUIS FELIPE MIGUEL*

A sobrevalorização da experiência crua dos agentes sociais, expressão do anti-intelectualismo dominante, inibe o engajamento crítico

Este texto nasce em reação a duas polêmicas que surgiram nas esquerdas nas últimas semanas – ou, antes, que ressurgiram, pois são cíclicas. Uma é sobre o chamado “lugar de fala”. A outra, sobre como caracterizar o comportamento de pessoas que apoiam ativamente líderes e políticas que, na prática, as condenam à morte; em particular, ao veto ao substantivo “burrice”, tão chocante. Embora tenham sido debates separados, eu os aproximo aqui porque julgo que remetem a um denominador comum: a sobrevalorização da experiência crua dos agentes sociais, expressão do anti-intelectualismo hoje dominante, e a consequente inibição de qualquer engajamento crítico com a autoexpressão dos próprios agentes.

A cada vez que ressurge, o debate mostra permanecer exatamente no mesmo lugar em que estava antes. Essa ausência de acúmulo na discussão, tão exasperante, é uma característica das mídias sociais, que recompensam predominantemente a lacração que, para ser lacradora, tem que permanecer insensível às nuanças do real. É consequência também do anti-intelectualismo que rotula como “acadêmico”, portanto irrelevante, qualquer contribuição que vá além da experiência imediata. E, por fim, espelha o paradoxo de que quem critica, relativiza ou complexifica a noção de lugar de fala não tem, por definição, lugar de fala para tocar no assunto, logo deve ser ignorado.

É preciso, em primeiro lugar, enfatizar a importância que a noção de lugar de fala e outras assemelhadas tiveram e têm no combate a certo idealismo racionalista, que sonha com uma Razão descarnada que interpreta o mundo permanecendo fora dela. Toda fala é socialmente situada e isso é relevante para a compreensão de seu sentido. O reconhecimento de que diferentes falantes vão ver o mundo a partir de diferentes posições sociais, porém, aponta para a necessidade de pluralização do debate, não para alternância de silenciamentos ou construção de guetos.

Isso porque o lugar da fala não implica qualquer privilégio epistêmico (isto é, a ideia de que o dominado, só por ser dominado, já entende a dominação melhor do que qualquer outro). A expressão dos dominados é importante porque traduz – em parte e com ruídos, como qualquer expressão – sua experiência, mas convém lembrar que essa experiência também é conformada pela dominação. A experiência bruta, assim, tem que ser ressignificada por meio de processos que, à falta de palavra melhor, podem ser chamados de “conscientização”. Era o papel dos grupos de mulheres do movimento feminista dos anos 1960 e 1970, que foram cruciais para a difusão dessa discussão – espaços que permitissem às mulheres construir uma compreensão de suas próprias vidas a contrapelo das representações patriarcais que as estruturam.

Se tais espaços são necessários, eles não levam, de maneira nenhuma, à imposição de vetos à participação no debate público. Levam, isso sim, à exigência por ampliação da pluralidade de perspectivas que têm lugar neles.

Da mesma forma como o lugar de fala X não dá a quem o ocupa um privilégio epistêmico, ocupar o lugar não-X não torna a fala, só por causa disso, irrelevante ou nociva. É um local externo e continuará a sê-lo, não importa de quanta empatia se revista – e ter consciência dessa exterioridade importa para compreendê-lo. Mas pode contribuir. Ou não. Só deixando que se manifeste no debate que isso pode ser aquilatado. Lembrando, também, que o não-compartilhamento de características pessoais, de experiências de vida, até mesmo de crenças e de valores, em suma, tudo o que indica a exterioridade em relação a uma determinada posição social, não implica necessariamente preconceito. A equivalência automática entre exterioridade e preconceito, que está implícita em algumas manifestações (e até explícita em outras), é uma simplificação abusiva que serve apenas ao propósito de silenciar o debate.

Falei acima em perspectivas. Na verdade, em vez de “lugar de fala”, prefiro operar com a categoria “perspectivas sociais”. Embora eu mesmo tenha feito crítica a alguns de seus usos1, ela tem a vantagem de marcar desde o início o caráter social das posições de elocução e, portanto, o caráter socialmente produzido das diversas experiências, sem o apelo a noções essencializantes ou místicas, como “ancestralidade”, que se tornaram tão correntes em alguns discursos.

O uso limitante do “lugar de fala” está vinculado à degradação das reivindicações emancipatórias de grupos subalternos (voltadas contra padrões sociais de dominação e de violência) em reclamos identitários. A identidade deixa de ser um instrumento para a construção de um sujeito político coletivo para aparecer como um fim em si mesma.

De fato, não há luta política que não seja, em alguma medida, identitária. Não desejo retomar a distinção algo mecânica entre classe em si e classe para si, que o próprio Marx faz em A Miséria da filosofia e em outros escritos, mas o fato é que a constituição da classe operária como sujeito político depende da construção de uma identidade política comum. Se esse passo é indispensável para a ação política de qualquer grupo, é mais ainda para os dominados, cujas vivências são desvalorizadas e que encontram objetivamente, na estrutura social, estímulos para uma identificação com os dominadores.

Mas há ao menos duas diferenças, ambas com enormes consequências, entre a identidade da classe trabalhadora e a de outros grupos dominados. Em primeiro lugar, a classe trabalhadora se define por um atributo comum da humanidade, o trabalho, isto é, a capacidade de transformação do mundo material. Os outros grupos dominados apresentam a exigência de serem incluídos em pé de igualdade na humanidade comum, mas não têm como atributo peculiar aquilo que, como atributo geral, define a humanidade enquanto tal.

Em segundo lugar, a classe trabalhadora tem por projeto, ao menos na visão de Marx, a extinção de sua própria peculiaridade, com a emergência de uma sociedade sem classes. Isso também não está ao alcance dos outros grupos subalternos. Havia uma ambição de apagamento da relevância social da identidade, no feminismo que antecipava uma sociedade gender-free ou no antirracismo voltado a uma sociedade color blind. Mas era, sempre, a superação da valoração hierárquica da diferença, não da diferença em si mesma. Hoje, a virada para uma política da diferença, em que ela é valorizada em si mesma, torna esta distinção ainda mais marcante.

Com isso, é perdido o acesso a uma visão alternativa, que lê as identidades também como prisões a serem superadas, e à utopia de uma sociedade pós-identitária, em que características biológicas, como sexo ou cor da pele, serão plenamente irrelevantes para determinar comportamentos ou posições, e atributos sociais, como gênero ou raça, deixarão até mesmo de existir, dissolvendo-se na diversidade inclassificável de uma humanidade livre. É possível discutir o quanto essa leitura é desejável ou factível, mas é difícil negar que ela é, ao menos, digna de discussão.

As duas diferenças indicam que a classe trabalhadora tem uma porta aberta para a conexão com a universalidade que falta a outros movimentos de caráter emancipatório. Uma situação que se agrava com a reivindicação cada vez mais particularista, presente nas compreensões correntes, nas disputas políticas, de “lugares de fala” privilegiados e mesmo monopolísticos.

A discussão é complexa e tem múltiplas facetas, mas é difícil recusar pelo menos uma conclusão: a pluralização das agendas emancipatórias da esquerda é rica e necessária, mas a deriva identitária, aliada à utilização lacradora de uma noção reducionista de lugar de fala, funciona como um cavalo de Troia. Inibe a construção de um projeto comum de sociedade, até mesmo de alianças pontuais, e redireciona boa parte das energias políticas para as batalhas fáceis contra quem, errando ou não, deseja estar a seu lado – aqueles que, como bem lembrou Wilson Gomes, são os únicos vulneráveis a essa estratégia.

A discussão sobre o esclarecimento dos apoiadores de Bolsonaro tomou feições diferentes, mas tinha em comum a ideia de que alguém que não participa de uma determinada realidade deve ser impedido de expressar qualquer apreciação sobre ela. Às vezes, ela deslizava para a exaltação romântica do “povo” como depositário de todas as qualidades; com mais frequência, para a denúncia dos “acadêmicos” que, desconhecedores do mundo real e como sempre arrogantes, exigiam uma clarividência inalcançável para os mais pobres. Muitas vezes, era feita uma confusão entre a necessidade de entender as escolhas feitas, necessidade real e mesmo urgente, e a obrigação de aceitá-las como esclarecidas ou razoáveis.

Entender a produção de leituras da realidade tão desinformadas e cognitivamente deficientes, que levam a escolhas políticas objetivamente desastrosas, é importante exatamente porque elas não são uma condição natural, nem sequer o fruto automático de determinada situação. Vivemos um momento em que o trabalho ideológico da direita assume características especiais, com um esforço concentrado de disseminação da ignorância, de negação da possibilidade de aprendizado e, também, de reforço dos valores mais egoístas e mesquinhos.

É preconceituoso, porém, julgar que pessoas em situação de privação são matéria passiva a ser moldada por essa ofensiva – até mesmo porque muitas delas mostram capacidade de resistência. A questão que se impõe é saber por que tantos à esquerda se mostraram tão desleixados, durante tanto tempo, na tarefa imprescindível de promover a educação política – que, convém lembrar, não é “doutrinação”. É desfazer o trabalho da ideologia e contribuir para que os despossuídos se construam como pessoas capazes de pensamento autônomo.

Em seu livro de memórias, falando de seus vizinhos no Bronx, no entreguerras, Vivian Gornick escreve: “As pessoas que trabalhavam como bombeiros, padeiros ou operadores de máquinas de costura haviam se percebido como pensadores, poetas e eruditos pelo fato de serem membros do Partido Comunista”2. Acho melhor pensar que essa é uma possibilidade a ser construída do que permanecer no refúgio fácil da condescendência, que julga que “não tem como” ser diferente e, por isso, absolve a priori a tudo e todos.

Se for para entender como se constrói essa recusa, que nega a debilidade cognitiva de compreensões da realidade tão objetivamente insatisfatórias, é possível vê-la partindo de duas visões alternativas. Uma é a adesão ao credo liberal-utilitarista de que “cada um é o melhor juiz de seus próprios interesses”. Ele interdita qualquer escrutínio dos discursos alheios, nega validade à questão da formação social das preferências e anula a existência de todos os mecanismos ideológicos. A esquerda se aproximou dessa posição a partir da crítica – necessária – ao subtexto autoritário muitas vezes presente no uso da noção de “falsa consciência”, que introduz a ideia de que haveria uma consciência “verdadeira”, acessível ao intelectual ou ao líder partidário, donos de instrumentos para avaliar o grau de correção da consciência das “massas” e despreza a compreensão que elas mesmas produzem a partir de suas experiências.

Mas, se não é possível afirmar que há uma consciência verdadeira predeterminada, que os “reais interesses” dos indivíduos e dos grupos estão definidos de antemão, sem passar pelos agentes, tampouco é possível apenas aceitar a consciência que emerge da vivência no mundo social. Isso significa abandonar o entendimento que as ideias das classes dominantes têm maior capacidade de serem universalizadas e a crítica aos padrões de manipulação aos quais estamos submetidos. Nossa tarefa – espinhosa, admito – é, como escreveu Žižek, permanecer numa “posição impossível”, que reconhece que não há “nenhuma linha demarcatória clara que separe a ideologia e a realidade”, mas que, ainda assim, sustenta a tensão entre ideológico e real “que mantém viva a crítica da ideologia”3.

A outra alternativa é uma condescendência arrogante, travestida de bom-mocismo, que julga que, prisioneiras de suas próprias condições, aquelas pessoas estão condenadas a abraçar determinados comportamentos. É uma empatia superficial, brumosa, tingida de preconceito. O caminho que aponta é a filantropia ou o paternalismo. Para quem julga que “a emancipação da classe trabalhadora deve ser obra dos próprios trabalhadores”, não é uma posição aceitável. A empatia revolucionária com os desvalidos não romantiza suas consciências, não abre mão da crítica e, muito menos, abdica do trabalho de fornecer ferramentas para que superem seus limites.

*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo).

Publicado originalmente no blog da Boitempo

Notas


1 Ver o capítulo “Perspectivas sociais e dominação simbólica”, em meu livro Democracia e representação. São Paulo: Editora Unesp, 2014.

2 Vivian Gornick, Afetos ferozes. Trad. de Heloisa Jahn. São Paulo: Todavia, 2019, p. 69.

3 Slavoj Žižek, “O espectro da ideologia”, em Slavoj Žižek (org.), Um mapa da ideologia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 22.

 

 

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