Por FABIANO SANTOS*
As candidaturas de militares (policiais e das FFAA) representam a falência do Estado e do governo ao lidar com o problema da violência e da criminalidade
As eleições de 2020 vão contar com um número significativo de candidaturas autodenominadas militares, ou seja, advindas, os candidatos e candidatas, seja das polícias militares estaduais ou das Forças Armadas, principalmente o Exército. Esse fenômeno, esse crescimento, é mais acentuado nas candidaturas para prefeitura, mas também é visível nas candidaturas para a Câmara dos Vereadores. O crescimento de candidaturas autodenominadas militares vem ocorrendo já há algum tempo. Apareceu de forma mais nítida em 2014, nas eleições nacionais, e definitivamente entrou para a análise política brasileira nas eleições de 2018. Então a evolução se mantém no sentido de crescimento e agora, nas eleições de 2020, um crescimento bastante expressivo.
As mensurações existentes subestimam o número efetivo de candidatos porque denominam como candidaturas militares apenas aquelas que se autodenominam, no seu nome. Nós não sabemos dentre aquelas que não se autodenominam militares se são ou não de alguma corporação. Então é um processo muito importante e decisivo na democracia de um país, porque nós estamos definindo, a sociedade brasileira, na verdade, está dizendo que as corporações militares – seja policiais, seja das Forças Armadas – são locus de socialização política. Por outro lado, elas também são uma fonte de pensar políticas públicas para tratar o problema da violência e da criminalidade. Então nós temos duas questões vitais em torno do crescimento das candidaturas autodenominadas militares.
Primeiro, a socialização política. Quando pensamos em democracia, nós pensamos em lugares clássicos de organização política para negociação. Os sindicatos são as associações empresariais, movimentos estudantis, movimentos sociais, grupos de interesse. São os empresários, trabalhadores, as classes médias liberais, que vêm de movimentos estudantis, seja de esquerda, seja de direita. Então nós temos esses lugares tradicionais de socialização, o lugar a partir do qual as lideranças que eram da sociedade passam a pretender postos políticos.
O que nós estamos vendo no Brasil é que o locus principal de socialização política foi deslocado, ou está sendo, para corporações do Estado. Vamos falar aqui dos militares, mas pode ser de outros lugares. Mas é distorcido do ponto de vista democrático, pois a corporação do Estado que tem monopólio do uso da violência, que é baseado na hierarquia, da disciplina, pouco tem a ver com a natureza do trabalho político democrático, que é o da negociação, a negociação das diferenças, que é inerente ao processo social, o conflito de interesses, o conflito de valores, a convivência com o diferente. Então como locus de socialização política isso é muito problemático para o processo democrático, isso precisa ser pensado com bastante atenção, afinco, e depois pensar reformas institucionais e de políticas do governo visando esse problema.
O segundo problema tem a ver com a origem. Por que a sociedade demanda militares para representá-las, seja nos corpos legislativos, seja nos corpos do executivo? É claro que tem a ver com o problema da violência e da criminalidade. Porque a mensagem que uma candidatura autodenominada militar transmite para a sociedade é que ela representará e dará resposta, colocará na agenda, não retirará, o problema do crime. A resposta que o Estado tem que dar para o crime.
Mas as candidaturas de militares (policiais e das Forças Armadas) representam na verdade a falência do Estado e do governo ao lidar com o problema da violência e da criminalidade. E é o aprofundamento dessa falência, é um paradoxo. Porque na verdade a resposta que nós sabemos que precisa ser dada ao problema da violência e da criminalidade, as patologias importantes brasileiras, mas não só, mas no Brasil, um dos lugares mais violentos do mundo, as cidades brasileiras estão entre as cidades mais violentas do mundo. Esse problema de violência e criminalidade estão ligados ao problema social de inclusão e desigualdade, associado ao tráfico de drogas, associado ao tráfico de armas.
Uma sociedade armada e muito desigual. Essa combinação é explosiva e desemboca no problema crônico da violência. Nós sabemos que o problema do tráfico de armas tem relação com a falta de controle que as próprias polícias e o Exército têm sobre a sua matéria prima, sobre o seu equipamento básico, então sua origem é ali. Então tem um potencial conflito de interesses nessas candidaturas nas respostas que elas vão dar ao problema.
E o problema da desigualdade, outro elemento, outra variação, nessa combinação explosiva. A desigualdade não se combate com violência estatal ou repressão. A desigualdade se combate com políticas públicas de inclusão, que inclui a política de segurança, uma política de ordem e lei bem implementada, nem pensada, mas não só. E na verdade o que a sociedade está fazendo ao produzir essas candidaturas e ao votar nessas candidaturas é um reducionismo que vai gerar mais problemas, que vai aumentar mais o fosso, que vai só aumentar o paradoxo.
Então eu queria fazer essa reflexão do fenômeno que se repete no crescimento significativo do contingente de militares concorrendo aos cargos públicos. Acho que é sintoma da incapacidade do Estado e do governo brasileiro em lidar com a questão da desigualdade e é sintoma de uma falência das próprias forças de segurança. Então acho que as próprias elites militares precisam pensar o modo pelo qual se relacionam com a política e incentivam as pessoas que estão entrando nas corporações a entrarem nas suas carreiras.
*Fabiano Santos é professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), onde coordena o Núcleo de Estudos sobre o Congresso (NECON).
Publicado originalmente no Observatório das Eleições 2020 do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação (INCT/IDDC).