Por MARIA RITA KEHL*
Um capítulo do livro recém reeditado “Ressentimento”
“A manchete de ontem, ‘País precisa de 46 anos para atingir níveis de 1o. Mundo’, deixou-me acabrunhado. Basta imaginar em que nível estarão os países de 1o. Mundo daqui a 46 anos. (carta de leitor da Folha de São Paulo de 1/9/2004).
Os brasileiros, em geral, não se consideram ressentidos. De fato, o imperativo da alegria presente em nossa cultura favorece o esquecimento dos agravos, e não a rememoração ressentida dos erros e sofrimentos passados. Somos uma nação voltada para o futuro, um país “pra frente”. Mas o ressentimento não deixa de estar presente entre nós, disfarçado em formações de linguagem irônicas, cínicas ou queixosas que se parecem – mas não são – com uma crítica progressista em relação a nossas falhas históricas e nossas insuficiências sociais. Falhas que não são interpretadas como dívidas (para com o passado), passíveis de se pagar através da ação presente. Ao contrário, concebemos nossos problemas sociais como insuficiências que nos parecem sempre injustas, de responsabilidade de um outro, de alguém que teria o poder de remediar nossas mazelas, mas não o fez.
O ressentimento na sociedade brasileira está enraizado em nossa dificuldade em nos reconhecermos como agentes da vida social, sujeitos da nossa história, responsáveis coletivamente pela resolução dos problemas que nos afligem. Suas raízes remontam à tradição paternalista e cordial de mando, que mantém os subordinados em uma relação de dependência filial e servil em relação às autoridades – políticas ou patronais – na expectativa de ver reconhecidos e premiados o bom comportamento e a docilidade de classe.
Tomemos como exemplo do ressentimento camuflado na sociedade brasileira, a rapidez com que grande parte da população pareceu esquecer, ou perdoar, os crimes da ditadura militar, como se estes houvessem atingido apenas uma pequena parcela de militantes de esquerda, de jovens “radicais” que não representavam os interesses da maioria.
Os acontecimentos traumáticos vividos por um grupo minoritário não podem ser excluídos da experiência coletiva da sociedade onde este grupo se insere. No Brasil da década de 1990, os filhos e parentes de desaparecidos políticos do período da ditadura militar promoveram encontros, debates e atos públicos que visavam tirar do esquecimento o assassinato de seus entes queridos e devolvê-los à memória da sociedade da qual foram banidos por força da repressão. Tais eventos rememorativos, em que se fez escutar a voz de antigos militantes presos e torturados, dos filhos e companheiros(as) de jovens assassinados, são essenciais para o amadurecimento político da sociedade civil brasileira. Não devem ser confundidos com políticas do ressentimento, como algumas análises conservadoras fazem parecer: seriam políticas de reparação, fundamentais para que a mágoa e a indignação não se transformem em ressentimento.
No Brasil, nosso compromisso com a alegria, a festa, a irresponsabilidade, nos faz rejeitar a memória e abandonar os projetos de reparação de injustiças passadas. Distantes das condições sociais dos países do chamado Primeiro Mundo idealizado e invejado, contentamo-nos em ser reconhecidos internacionalmente a partir da imagem de povo alegre, despreocupado e sensual que o colonizador fez de nós, desde a Carta de Caminha. Tal compromisso nos impede de levar a reparação das injustiças às últimas consequências. Temos pressa em “perdoar” os inimigos, com medo de parecer ressentidos – mas o ressentimento, afeto que não ousa dizer seu nome, se esconde justamente nas formações reativas do esquecimento apressado, tão característico da sociedade brasileira.
A recusa da memória e do desagravo – a negação do ressentimento – não é igual ao perdão. Não se pode dizer que a sociedade brasileira tenha perdoado os militares por seus abusos, seus crimes, por vinte anos de atraso no desenvolvimento da democracia. Nada foi perdoado porque nada foi levado às últimas consequências, nenhum ex-ditador foi julgado, ninguém precisou pedir perdão. Ao contrário do que fizeram os argentinos – devemos considerar as madres de la Plaza de Mayo ressentidas? – a sociedade brasileira costuma “deixar barato” o resgate das grandes injustiças de sua história para não manchar sua reputação de “último povo feliz” do planeta. Mas que preço caro pagamos por essa felicidade para inglês ver!
A alienação ao (suposto) desejo do Outro – não mais o colonizador, mas os atuais representantes do mundo desenvolvido – faz com que não nos apoderemos de nossa história como sujeitos. Não passamos nada a limpo, não elaboramos nossos traumas nem valorizamos nossas conquistas. Por isso mesmo nós, brasileiros, não nos reconhecemos no discurso que produzimos e sim naquele que o estrangeiro produz sobre nós. Por essa mesma razão, estamos sempre em dívida para com uma identidade perdida. Quem somos nós, brasileiros? Quais são os significantes que nos identificam perante nós mesmos? É o que observa Stella Bresciani,[i] ao se perguntar por que a busca de identidade, na sociedade brasileira, nunca cessa.
No Brasil, a construção de uma identidade – ou, o que seria mais rico, de um campo de múltiplas identificações – se perde na demanda de reconhecimento de nosso valor por parte das nações mais poderosas. A busca de reconhecimento reproduz a submissão diante do mais forte, submissão que é condição do nosso ressentimento, nosso “complexo de inferioridade” nacional. A crítica aparentemente engajada de nossos males sociais disfarça com freqüência o conformismo de grande parte dos brasileiros, que se limitam a lamentar nosso atraso e a distância que separa nossa realidade social da de paises europeus ou dos Estados Unidos.
O que é que o brasileiro não enxerga em sua cultura, ou no conjunto de suas sub culturas, que tem que pedir a um outro que o reconheça? Por que razão os pontos de inflexão mais marcantes de nossa história, assim como a riqueza de nossa produção cultural, não são suficientes para nos representar diante de nós mesmos? Autores que pensaram o Brasil no século XX, como Gilberto Freyre, e, na mesma linha, Darcy Ribeiro, consideram que o sentimento de uma identidade nacional desapareceu justamente com o final do período colonial, com o esforço de branqueamento e europeização da cultura local, como tentativas do Brasil se tornar uma sociedade burguesa.
Nosso “avanço” na direção da modernidade teria nos custado o preço do apagamento da origem – o desprezo pelas “raças escuras” do negro e do índio, a desvalorização do português bronco (vindo de um país já em decadência); a eleição do modelo francês (na cultura) e inglês (na gestão do capitalismo) como ideais.[ii]
Com isso, os brasileiros representam a si mesmo como órfãos de pai: não prezamos os antepassados portugueses, não reconhecemos grandes heróis entre os fundadores da nação, não levamos muito a sério nossos símbolos pátrios. O que poderia ser condição de grande liberdade, se não nos ressentíssemos com isso e não buscássemos sempre, na política, nas práticas religiosas, na cultura de massas, recuperar figuras do pai autoritário e protetor. Nossa suposta orfandade simbólica não produziu uma sociedade emancipada em relação à autoridade paterna, mas uma permanente submissão à autoridade de governantes paternalistas reais, abusados, violentos como o pai da horda primitiva do mito freudiano.
Cordialidade e ressentimento
“A democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal entendido. Uma aristocracia rural e semi feudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, a seus direitos ou privilégios – os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas”.[iii]
É que, da herança colonial brasileira, não basta reconhecer a dívida simbólica para com as raças renegadas, do negro e do índio. É preciso dar continuidade à reflexão crítica, iniciada por Sérgio Buarque de Holanda, sobre a herança do autoritarismo cordial que nos deixou o colonizador português. O Brasil colonial foi uma sociedade agrária dirigida de acordo com os interesses particulares dos primeiros proprietários, que concentravam sob seu poder grandes extensões de terra. Cada propriedade funcionava, fechada sob si mesma, como uma república privada cujo senhor fazia as próprias leis e as aplicava, com mão de ferro, sobre seus familiares e subordinados.
“Nos domínios rurais é o tipo de família organizada segundo as normas clássicas do velho direito romano-canônico, mantidas na península Ibérica através de inúmeras gerações, que prevalece como base e centro de toda a organização. Os escravos das plantações e das casas, e não somente os escravos, como os agregados, dilatam o círculo familiar e, com ele, a autoridade imensa do pater famílias”.[iv]
Ao contrário do que ocorreu nos países da América espanhola, ou na América do Norte, no Brasil as elites privilegiavam a vida no isolamento das fazendas em detrimento das cidades. Estas, até o século XIX (com a notável exceção do Recife sob a dominação holandesa) não chegaram a constituir o que chamamos de um espaço público. Eram logradouros de passagem, habitados por algumas categorias de trabalhadores braçais, por pobres sem trabalho, por pequenos comerciantes que pouco tinham a oferecer, já que as fazendas produziam o necessário para o próprio sustento. Tivemos aqui, pelo menos até a vinda da família real portuguesa, em 1808, não uma civilização agrícola, no entender de Sérgio Buarque de Holanda, mas uma civilização rural, composta de verdadeiros feudos que não reconheciam subordinação a nenhum poder central.
“Sempre imerso em si mesmo, não tolerando nenhuma pressão de fora, o grupo familiar mantém-se imune de qualquer restrição ou abalo. Em seu recatado isolamento pode desprezar qualquer princípio superior que procure perturba-lo ou oprimi-lo. Nesse ambiente, o pátrio poder é virtualmente ilimitado e poucos freios existem para sua tirania. (…) A entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública”.[v]
Depois da independência e com a queda da monarquia, Sérgio Buarque de Holanda refere-se à improvisação de uma burguesia urbana, que não impediu que a “mentalidade de casa-grande” tenha invadido as cidades e organizado as relações entre as classes, inclusive nas profissões mais humildes.[vi]
O predomínio dos interesses privados sobre os interesses públicos, da moral familiar sobre as leis da polis, dos valores afetivos sobre a impessoalidade das regras de cortesia, formaram no Brasil uma concepção de Estado avessa ao que a modernidade instituiu, como “triunfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo (…) A ordem familiar, em sua forma pura, é abolida por uma transcendência”.[vii]
Esta forma de convívio social, regida por tendências sensuais, rompantes emocionais e preferências afetivas, é o oposto da civilidade. É disso que se trata a famosa cordialidade brasileira, na expressão de Ribeiro Couto consagrada pela obra de Sérgio Buarque.
Pois bem: por paradoxal que pareça, homem cordial é indissociável da modalidade brasileira do homem do ressentimento. É por não aceitar o desamparo necessário em que a impessoalidade da lei lança o cidadão, tornado por força dessa impessoalidade o responsável pela construção e seu destino, individual e coletivo; é por esperar das autoridades públicas a satisfação de demandas de amor e a prática de uma justiça baseada em preferências afetivas; é por representar-se, diante do Outro (que na vida adulta, é indissociável das instâncias de poder) como a criança diante de pais protetores e amorosos, que a sociedade brasileira abre mão, com tanta frequência, da tarefa construir uma ordem republicana, moderna, adulta.
Do ponto de vista das elites, a cordialidade é duplamente vantajosa: ao obscurecer a impessoalidade da lei, mascara uma série de abusos sob o véu do favoritismo e do mérito obtido em nome de preferências afetivas. Além disso, o exercício descarado desse mesmo favoritismo amansa as classes subordinadas, que preferem esperar por sua vez na fila dos benefícios do que se insurgirem em busca de seus direitos.
Do ponto de vista dos dominados, o estilo cordial de dominação enfraquece o impulso que deveria conduzir ao exercício permanente da emancipação. No Brasil, é frequente que o próprio cumprimento da lei e dos direitos venha mascarado sob a aparência de um favor especial. Ser prontamente atendido em uma repartição pública, conseguir uma vaga nos serviços de saúde, receber uma indenização por causa justa, tudo parece, aos olhos dos pobres que não conhecem seus direitos, obra de favor consentido por uma autoridade benevolente. O homem cordial prefere gozar dos benefícios secundários de sua posição de explorado, mas explorado com jeitinho, do que arriscar a perda destes falsos “privilégios” por descontentar um patrão ou uma autoridade paternalista.
Ainda hoje a sociedade aceita, confusamente, este modelo do governante originado na tradição rural, em que a autoridade política não age como representante dos interesses da maioria, mas como pai de família, autoritário ou protetor, que infantiliza e apassiva a sociedade, impedindo sua emancipação através do pleno florescimento das instituições republicanas. A mentalidade de casa grande ainda está presente nas relações de dominação e exploração, em muitos setores da sociedade brasileira.
O ressentimento social, no Brasil, é a expressão da frustração generalizada diante do fracasso dessa delegação infantil de poder. É fruto da covardia – não propriamente moral, mas política – que nos leva a recuar da tensão inevitável que perpassa as relações entre as classes, em troca do gozo propiciado pelo modo sensual de exploração dos corpos e aliciamento das consciências.
Neste caso, chamar estas relações de atrasadas não representa um ressentimento em relação às vantagens do Primeiro Mundo, ao qual nos submetemos cheios de inveja e admiração; a constatação de nosso atraso é um meio de medir a distância que ainda nos separa de algumas conquistas elementares da modernidade, que em muitos países já vigoram há mais de um século.
A recuperação da consciência da origem de nosso atraso, que naturaliza relações sociais historicamente produzidas, não é igual à ruminação característica das patologias da memória, no ressentimento. É trabalho contra a repetição produzida pelo recalque. O recalcamento da origem não tem somente o efeito de diminuir nossa auto-estima, pela falta de um sentimento forte de identidade nacional. Ele permite a perpetuação inconsciente de nossas mazelas. Reconhecer a origem também é condição para se efetuar qualquer mudança de rumo na história de um país. Só o reconhecimento da história pode evitar que estejamos condenados a repeti-la. Hannah Arendt, em sua reflexão sobre a importância emancipadora de se conhecer a tradição, recorre à expressão de Tocqueville: se o passado deixar de lançar sua luz sobre o futuro, estaremos condenados a vagar em meio à treva.[viii]
O poder do pai ou a assembleia dos irmãos
É que não falta pai, tradição, filiação à sociedade brasileira; falta o reconhecimento dessa filiação apagada, da origem rejeitada em nome da identificação com um Outro idealizado e alheio à nossa história. Falta o reconhecimento de nossa herança política e cultural – necessário, mas não suficiente para a emancipação da sociedade brasileira.
Mas nenhum nome do pai se sustenta por si só, pela transmissão vertical da herança e da tradição. São os filhos que, eliminando o pai tirano para emergir como sujeitos, instituem a representação simbólica do pai, sustentáculo da Lei que possibilita a convivência em nome de um bem comum. O que falta à sociedade brasileira não é mais um pai, colocado em posição de autoridade, de senhor de engenho ou de líder messiânico, mas o reconhecimento da ação republicana por parte das formações horizontais, que chamaria, metaforicamente, de fraternas.[ix]
Se o ressentimento é um dos sintomas do que falha no projeto igualitário das democracias modernas, sua cura não se dá através do apelo à benemerência do Estado (pai), mas do fortalecimento dos laços horizontais entre os cidadãos (irmãos), para fazer do país não apenas uma democracia mas, principalmente, uma república. O que faltou ao Brasil republicano não foi um pai/fundador cuja imagem pudesse sustentar nossa auto-estima, mas a criação de mecanismos de incorporação de todas as classes sociais à vida da recém proclamada República.
Heloísa Starling enfatiza a contrapartida imaginária desse projeto político precário: “faltou formar o fundamento republicano do povo, vale dizer, faltou reconhecer, na população de brasileiros, a existência de homens unidos pela lei e capazes de compartilhar de certa imaginação que lhes permita transpor os limites da vida particular e doméstica e representar, como comuns, determinados sentimentos, valores, princípios e normas para a construção de um destino próprio”[x].
O republicanismo falhado a que se refere Starling reflete-se também nos produtos da “imaginação”, as obras literárias e artísticas que representam a sociedade diante de si mesma. Neste sentido a proposta de consolidação de nossa identidade cultural pelo resgate da herança colonial, proposto por Freyre e Darcy, não dá conta de todo o recado. Por um lado, já não mais é suficiente para constituir o campo identificatório capaz de representar o Brasil contemporâneo diante de si mesmo. Bem ou mal, o Brasil se transformou, de colônia escravagista em democracia capitalista, desigual mas ainda assim moderna, sempre em dívida com um ideal primeiromundista que, na dinâmica do cenário internacional, está evidentemente fora do nosso alcance.
É esta nação modernizada de maneira desigual que carece de um sentimento de identidade. O fracasso do projeto emancipatório da sociedade brasileira e a ênfase do econômico sobre o político, que nos mantêm atados às condições do mercado financeiro internacional e impedem a criação de alternativas nacionais, dificultam ainda mais o reconhecimento, pelos brasileiros, do que caracteriza o seu país. A pergunta: “que país é este?”[xi] retorna sempre, nos discursos da oposição, nas manchetes de jornais, nas conversas de botequim. Quem somos nós se não somos o Outro, o estrangeiro com quem gostaríamos de nos identificar?
“Este país não é sério”, diz a resposta do ressentimento, repetindo mais uma vez o comentário de um Outro.[xii] Somos a escória, o lixo, um projeto falhado. Perdemos o bonde do desenvolvimento e vivemos correndo atrás do prejuízo. Se a resposta ressentida repete o suposto olhar de desprezo do Outro sobre nossas mazelas, a negativa do ressentimento busca valorizar o Brasil pela submissão ao que o estrangeiro espera de nós. O resgate da herança colonial proposto por Gilberto Freire representa uma solução regressiva que não enfrenta as reais condições do problema. Hoje a sociedade brasileira, orquestrada pela televisão, parece se reconhecer exatamente no estereótipo formado a partir da herança negra e indígena que se traduz na fantasia do país do carnaval, da batucada, das mulatas e da “macumba-para-turistas”, no dizer de Nelson Rodrigues, que nos identifica aos olhos do estrangeiro.
Ou nos queixamos de falta de reconhecimento e vivemos sempre em dívida com um “primeiro mundo” que nunca alcançaremos – a exemplo do lamento do leitor de jornal citado na epígrafe deste capítulo – ou nos instalamos em uma “identidade nacional” reconhecida aos olhos do Outro, reduzindo nossa diversidade cultural ao triângulo samba-sexo-futebol e novamente nos ressentimos do fato de que esta suposta identidade ancora-se sobre os prolongamentos da servidão do índio e do escravo em relação às exigências e caprichos do homem branco.
Neste sentido, as propostas da antropofagia e, quarenta anos mais tarde, da tropicália, representaram tentativas bem humoradas e ousadas de superação do ressentimento pela incorporação da origem, sem se alinhar à apologia do atraso. Se a rica diversidade cultural brasileira não favorece nenhuma proposta de síntese, antropofagia e tropicália procuraram alcançar, pela via da sátira (que na origem remete à idéia de saturação) o painel das nossas contradições.
Na política, a tradição de dominação paternalista-populista pela qual tentamos suprir a falta de um pai ideal, também favorece as condições do ressentimento. Até o momento em que escrevo este capítulo, parece que a sociedade brasileira não superou o desejo de servidão (e proteção) que nos faz transformar cada novo líder político, de porta voz dos anseios e reivindicações emergentes em novo pai dos pobres, com salvo conduto para governar no estilo de dominação cordial que nos é familiar.
É como se a tradição republicana, que já tem quase três séculos na Europa e nas Américas, nunca terminasse de se enraizar por aqui; como se a sociedade brasileira nunca tivesse compreendido seu papel de agente das transformações que ela própria demanda que lhe venham não como conquistas legítimas, mas como provas de amor paternal por parte do Estado autoritário, cujos governantes com freqüência se apresentam como figuras familiares, afetivas, protetoras – ou irascíveis, quando os ventos sopram contra. A tradição do homem cordial que atravessa nossa vida política desmoraliza as instituições democráticas e gera ressentimento na sociedade. Esta oscila entre a espera passiva pelo cumprimento das promessas do “pai” bondoso, a desilusão e a queixa estéril.
Ora, a origem do ressentimento reside justamente no apartamento entre os sujeitos e sua potência de agir. Nesses termos, a decepção com as promessas não cumpridas não predispõe à ação; ela produz um exército de queixosos passivos, prontos a se (re)alinhar ao que existe de pior entre os conservadores, como forma de reação amarga e estéril, carregada de desejos de vingança.
O ressentimento é o avesso da política. Ele é o fruto da combinação entre promessas não cumpridas e a passividade que elas promovem. Os ressentidos, na política, são aqueles que abriram mão de sua condição de agentes da transformação social para esperar por direitos e benesses garantidos por antecipação. Dessa forma, o ressentimento é agravado pelo paternalismo, caso em que o direito à igualdade de oportunidades associa-se, não às conquistas das lutas populares e sim à boa vontade de um governante amoroso. Por isso o ressentimento não é, como pode parecer, o primeiro passo para uma efetiva virada no jogo do poder. A passividade da posição ressentida não permite que as pessoas se percebam como agentes do jogo de forças que determina suas vidas. O ressentimento é o terreno dos afetos reativos, da vingança imaginária e adiada, da memória que só serve à manutenção de uma queixa repetitiva e estéril.
Se o ressentimento é o avesso da política, só pode ser curado pela retomada do sentido radical da ação política. O ato político implica sempre um risco de desestabilizar a ordem. Ao contrário da resignação ressentida, da revolta submissa do ressentimento, ele nasce de uma aposta na possibilidade de modificar as condições estruturais presentes em sua origem.
*Maria Rita Kehl é psicanalista, jornalista e escritora. Autora, entre outros livros, de Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade (Boitempo).
Referência
Maria Rita Kehl. Ressentimento. 3ª. Edição. São Paulo, Boitempo, 2020.
Notas
[i] – Stella Bresciani, “Identidades inconclusas no Brasil do século XX – fundamentos de um lugar-comum” em: Memória e… (cit), pp. 403-429.
[ii] – A permanência de um modelo econômico arcaico, permeado de restos e vícios escravagistas, combinada ao aburguesamento dos costumes e a identificação com modelos europeus, foi analisada por Roberto Schwarz no famoso ensaio “Idéias fora do lugar”, de 1976 .
[iii] – Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil (1936). São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 160.
[iv] – Idem, p. 81.
[v] – Idem, p. 82.
[vi] – Idem, p. 87.
[vii] – Idem, p. 141.
[viii] – Aléxis de Tocqueville, no capítulo final de A democracia na América: “A partir do momento em que o passado cessou de lançar sua luz sobre o futuro, a mente do homem vagueia na obscuridade”.
[ix] – Trabalhei melhor essa proposta no texto “A fratria órfã” em: Kehl (org.) Função fraterna. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000.
[x] – Heloísa Maria Murgel Starling, “A República e o subúrbio – imaginação literária e republicanismo no Brasil” em: Cardoso (cit) Retorno ao republicanismo, p.179.
[xi] – Francelino Pereira.
[xii] – O general De Gaulle.