Quéreas & Calírroe

Imagem: João Nitsche
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ADRIANE DA SILVA DUARTE*

Apresentação do livro recém-publicado de Cáriton de Afrodísias, um dos primeiros romances escritos no Ocidente

Quéreas e Calírroe está entre os primeiros romances escritos no Ocidente, se é que assim podemos chamar o pedaço de mundo entre Europa e Ásia onde hoje fica a Turquia e antes estava a Cária. De seu autor sabe-se apenas o que o narrador do romance enuncia em primeira pessoa logo nas primeiras linhas: “Eu, Cáriton de Afrodísias, secretário do orador Atenágoras, vou narrar uma história de amor que aconteceu em Siracusa”.

Para além dessa passagem, que, note-se, está inserida na própria obra, Cáriton é um ilustre desconhecido — como de resto o são praticamente todos os demais romancistas na Antiguidade, o que denota certo desprestígio do gênero entre a elite cultivada. Seu nome, que deriva da palavra grega charis (graça, beleza, encanto), sugere um pseudônimo, ainda mais em conjunção com o de sua cidade natal. Afrodísias designa o que pertence a Afrodite, a deusa do amor e do prazer sexual, que ali recebia culto.

Ou seja, Cáriton de Afrodísias pode ser traduzido livremente como “Senhor encantador da cidade do amor”, uma alcunha bem a propósito a quem se dedica à literatura de temática amorosa. O nome, no entanto, tem registro epigráfico, e a cidade, de colonização grega, era um próspero centro político e cultural nos períodos helenístico e imperial, mantendo intenso contato com Roma.

Afrodísias, hoje, abriga um importante sítio arqueológico, de modo que se sabe muito sobre a cidade e quase nada sobre Cáriton. Nem mesmo a menção ao rétor Atenágoras — que traduzi por “orador”, mas também poderia ser entendido como “advogado” — ajuda a situar nosso autor, uma vez que o nome é bastante recorrente na documentação da cidade, ocorrendo em vários períodos, mas sem apontar para nenhum indivíduo notável. No entanto, a posição de Cáriton como secretário de um rétor implica uma figura letrada, versada em retórica e a par das questões políticas de seu tempo. Esse perfil, ficcional ou não, se comprova pela escrita do romance, no qual, em prosa bastante elegante, fica evidente a familiaridade com Homero e Tucídides, entre outros autores gregos clássicos.

A datação do romance é em grande parte conjectural, dada a ausência de evidências internas ou externas que permitam apontar com exatidão o momento de sua composição. Se hoje ele é localizado quase de forma consensual na metade do século I d.C., no período neroniano, há cem anos, de modo contrário, era tido como o último dos exemplares do cânone romanesco grego e datado dos séculos IV-V d.C. A descoberta de papiros, o estudo de fragmentos de obras perdidas e o avanço na análise das relações intertextuais entre os romances gregos supérstites produziram essa reviravolta na cronologia, que alçou Quéreas e Calírroe ao princípio da série, posição que disputa com As Efesíacas (ou Ântia e Habrócomes), de Xenofonte de Éfeso, obra com que comunga características comuns e que é situada geralmente no início do século II d.C. Alguns estudiosos, com destaque para Tilg, consideram Cáriton o “inventor” do romance romântico (ideal love novel) e Quéreas e Callíroe, o texto arquetípico dessa produção.

Invenção pode parecer uma forma imprópria de pensar o nascimento de um gênero. Mas era exatamente isso que defendia Perry, um dos responsáveis por colocar o romance antigo no mapa literário. Para ele, “o primeiro romance foi deliberadamente planejado e escrito por um autor individual, seu inventor”, que “o concebeu em uma tarde de terça-feira, em julho, ou em outro dia ou mês”. Na concepção do autor, a visão de mundo e as condições históricas que a embasam certamente influenciam a conformação genérica, mas o produto final, a obra, é sempre fruto do gênio de um escritor.

Cabe aqui, contudo, a ressalva de Brandão, para quem “o inventor individual que teve a sua ideia numa terça-feira não passa de uma bela (e romântica!) imagem”. Em vez de apontar o suposto inaugurador do romance, é mais producente buscar sua origem na rede de obras cujas características comuns vão criando relações e consolidando paradigmas de gênero.

Se não é possível (ou mesmo relevante) dar a Cáriton o título de fundador dessa empresa, não é acidental que Afrodísias seja o epicentro dessa novidade. Bowie, na discussão que faz da cronologia dos primeiros romances gregos, arrisca o palpite de que, afinal, talvez algo tenha se passado numa calorenta terça-feira de um julho qualquer, mas não em uma parte aleatória do ecúmeno. Para ele, o fato de Eros ter se tornado o centro desse gênero novo não é explicável apenas pelas mudanças sociais e políticas, mas também pelo predomínio que o culto de Afrodite assumiu nessa parte do planeta. Assim, em meados do século I d.C., “na florescente cidade de Afrodísias, sede de um culto importante de Afrodite”, “um escritor ou escritores desenvolveram uma fórmula de sucesso”, que logo se disseminou pelo mundo habitado. E qual seria essa fórmula? A abertura de Quéreas e Calírroe a enuncia: a narrativa de uma história de amor (pathos erotikon, em grego).

O enredo típico do romance antigo traz ao primeiro plano um casal de adolescentes, belos e pertencentes à aristocracia local, que se apaixona à primeira vista, enfrenta uma série de adversidades que resultam em separação, errâncias, assédios, até que se reencontra e retorna à cidade natal, onde poderá, por fim, desfrutar de seu amor. A idealização da paixão amorosa reside na sua predestinação, já que a atração se dá à primeira vista, muitas vezes por ensejo de uma divindade (Eros ou Afrodite), e é duradoura, capaz de resistir às diversas provações que ameaçam a reunião dos jovens. A correspondência do sentimento não deixa de ser uma novidade numa sociedade em que as relações eróticas revelam-se assimétricas: o amante, ativo, impondo-se sobre o amado, passivo, sendo que os casamentos não passavam de arranjos entre famílias, desconsiderando as inclinações dos noivos — muito particularmente, a das noivas.

Quéreas e Calírroe narra a história de amor dos personagens homônimos. Calírroe, dona de uma beleza sem igual, é comparada no início do romance à própria Afrodite, deusa com quem mantém forte ligação ao longo da obra. Quéreas não se assemelha a um deus, mas se equipara aos Aquiles, Hipólito e Alcebíades, todos paradigmas de beleza masculina na Antiguidade. Ela era a filha do respeitado governante local, Hermócrates de Siracusa, figura histórica, retratada por Tucídides em História da Guerra do Peloponeso como um dos líderes da resistência à invasão ateniense à Sicília (415 a.C.). O prestígio do pai, somado à beleza da filha, atrai para Siracusa um séquito de pretendentes à mão da jovem.

Isso posto, é claro que nessa história o protagonismo é da heroína, ficando o herói, em grande parte, à sua sombra. Muitos defendem inclusive que o romance seja chamado apenas Calírroe ou Sobre Calírroe, em vista da frase com que Cáriton o encerra: “Tal relato redigi a respeito de Calírroe”. Especula-se que o destaque que as mulheres assumem no romance antigo, em sua vertente grega, reflita de alguma maneira uma mudança na sociedade, em que elas passam a ter maior visibilidade e acesso à educação, especialmente no contexto romano. Mas vale lembrar que a tragédia grega, pródiga em personagens femininas de relevo, é produto de uma sociedade patriarcal em que as mulheres das classes sociais mais elevadas eram tutoradas por seus parentes homens. Há ainda quem proponha o romance romântico como um gênero para o consumo das mulheres, que constituiriam seu público principal, o que é muito difícil de ser comprovado.

O fato é que Calírroe domina a trama do romance, cuja estrutura pode ser dividida em quatro partes, distribuídas em oito livros: 1) paixão e união dos protagonistas (Livro i); 2) separação (i); 3) desventuras dos protagonistas (ii-vii); 4) reunião do casal e retorno a Siracusa (viii). Esse esquema permite antever que as partes 1 e 4 tratam de amor, enquanto 2 e 3 abordam a aventura, categoria que compreende viagem e provação do par amoroso.

Quéreas e Calírroe também se distingue pelo cenário histórico. Dos romances gregos que foram preservados, este é o único que tem um recorte temporal preciso, já que os demais romancistas situam seus personagens em uma época suficientemente neutra para que leitor contemporâneo a eles pudesse reconhecê-la, e igualmente desprovida de referências históricas, o que termina por criar uma atmosfera atemporal. De volta à abertura do romance, Cáriton enuncia que narrará “uma história de amor que aconteceu em Siracusa” no passado, espacialmente distante de sua Afrodísias.

A história se passa, pois, ao fim da Guerra do Peloponeso, na passagem do século V para o IV a.C. A derrota da frota ateniense frente à siciliana, comandada por Hermócrates, é constantemente lembrada; além do pai de Calírroe, o rei persa Artaxerxes i e a rainha Estatira também estão ali retratados. Com isso, há quem veja Quéreas e Calírroe como “romance histórico”. Para além do anacronismo implicado no termo, creio que ele se revela inadequado na medida em que, salvo pelas menções pontuais às figuras históricas, o autor pouco se empenha na criação verossímil do contexto a que elas pertenceram, que funciona mais como pano de fundo para a história de amor que se quer narrar. Além disso, os personagens centrais têm claro caráter ficcional, prevalecendo durante a maior parte do romance o que Bakhtin denominou de “tempo da aventura”, com o foco posto nos encontros e desencontros do par amoroso.

Por fim, cabe indicar a relação essencial que o romance de Cáriton mantém com os poemas homéricos, Ilíada e Odisseia, que será desenvolvida no posfácio a esse livro. Aqui, basta mencionar que a caracterização de Calírroe se baseia nas de Helena e Penélope, personagens dos épicos. Tal qual a heroína de Cáriton, Helena tem dois maridos, o grego Menelau, que parte para resgatá-la em Troia, e Páris, príncipe troiano que a sequestra (ou com quem foge, segundo outras versões). Também em comum há a beleza excepcional e a relação privilegiada com Afrodite. Já a aproximação com Penélope se dá através do vínculo amoroso com Odisseu, que resiste à separação do casal e ao assédio de pretendentes. Vale notar que a Odisseia é um intertexto importante para toda a produção romanesca na Antiguidade.

*Adriane da Silva Duarte é professora de língua e literatura grega na USP. Autora, entre outros livros, de Cenas de reconhecimento na poesia grega (Editora da Unicamp).

Referência


Cáriton de Afrodísias. Quéreas & Calírroe. Tradução, apresentação e posfácio: Adriane da Silva Duarte. São Paulo, Editora 34, 2020.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Anselm Jappe Tales Ab'Sáber José Machado Moita Neto Henri Acselrad Alysson Leandro Mascaro Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Ricardo Fabbrini Julian Rodrigues Bruno Fabricio Alcebino da Silva Rafael R. Ioris Luiz Bernardo Pericás José Raimundo Trindade Luiz Renato Martins Mário Maestri Leonardo Sacramento Lincoln Secco Marilia Pacheco Fiorillo Antonino Infranca Luiz Eduardo Soares Luiz Marques Leonardo Avritzer Valerio Arcary Vladimir Safatle Lucas Fiaschetti Estevez Luis Felipe Miguel Boaventura de Sousa Santos Fernão Pessoa Ramos João Carlos Loebens Ricardo Abramovay Denilson Cordeiro Manuel Domingos Neto Mariarosaria Fabris Francisco Fernandes Ladeira Gilberto Lopes Luiz Carlos Bresser-Pereira Daniel Costa Tadeu Valadares José Micaelson Lacerda Morais Henry Burnett Airton Paschoa Juarez Guimarães Paulo Capel Narvai João Carlos Salles Eleonora Albano Kátia Gerab Baggio Alexandre Aragão de Albuquerque José Costa Júnior Sandra Bitencourt Berenice Bento Flávio Aguiar Ronaldo Tadeu de Souza Marcelo Módolo João Paulo Ayub Fonseca Yuri Martins-Fontes Eugênio Trivinho Plínio de Arruda Sampaio Jr. Liszt Vieira Eugênio Bucci Annateresa Fabris Jorge Luiz Souto Maior Everaldo de Oliveira Andrade Leonardo Boff Andrés del Río Flávio R. Kothe Celso Favaretto Celso Frederico Bruno Machado Ricardo Antunes Remy José Fontana Manchetômetro Daniel Afonso da Silva Chico Alencar Chico Whitaker João Lanari Bo Michel Goulart da Silva Marcos Aurélio da Silva Sergio Amadeu da Silveira Carlos Tautz Caio Bugiato Slavoj Žižek Marcelo Guimarães Lima Marilena Chauí Francisco de Oliveira Barros Júnior Priscila Figueiredo Matheus Silveira de Souza Rubens Pinto Lyra Paulo Fernandes Silveira Andrew Korybko Michael Löwy João Adolfo Hansen Ladislau Dowbor Tarso Genro Elias Jabbour Marjorie C. Marona Salem Nasser Michael Roberts Heraldo Campos André Márcio Neves Soares Ronald Rocha Anderson Alves Esteves Paulo Martins João Feres Júnior Ari Marcelo Solon Luciano Nascimento Osvaldo Coggiola Marcos Silva Gabriel Cohn Antonio Martins Carla Teixeira André Singer Leda Maria Paulani Bento Prado Jr. Igor Felippe Santos Atilio A. Boron Jean Marc Von Der Weid Thomas Piketty Lorenzo Vitral João Sette Whitaker Ferreira José Dirceu Rodrigo de Faria Jorge Branco Paulo Nogueira Batista Jr Vinício Carrilho Martinez Daniel Brazil Otaviano Helene Afrânio Catani Benicio Viero Schmidt Fábio Konder Comparato Gilberto Maringoni Maria Rita Kehl Milton Pinheiro José Geraldo Couto Marcus Ianoni José Luís Fiori Claudio Katz Eduardo Borges Gerson Almeida Dennis Oliveira Bernardo Ricupero Luís Fernando Vitagliano Luiz Roberto Alves Luiz Werneck Vianna Alexandre de Lima Castro Tranjan Dênis de Moraes Samuel Kilsztajn Eliziário Andrade Alexandre de Freitas Barbosa Antônio Sales Rios Neto Fernando Nogueira da Costa Francisco Pereira de Farias Armando Boito Paulo Sérgio Pinheiro Jean Pierre Chauvin Érico Andrade Walnice Nogueira Galvão Ricardo Musse Eleutério F. S. Prado Renato Dagnino Vanderlei Tenório Ronald León Núñez

NOVAS PUBLICAÇÕES