Por ADRIANE DA SILVA DUARTE*
Apresentação do livro recém-publicado de Cáriton de Afrodísias, um dos primeiros romances escritos no Ocidente
Quéreas e Calírroe está entre os primeiros romances escritos no Ocidente, se é que assim podemos chamar o pedaço de mundo entre Europa e Ásia onde hoje fica a Turquia e antes estava a Cária. De seu autor sabe-se apenas o que o narrador do romance enuncia em primeira pessoa logo nas primeiras linhas: “Eu, Cáriton de Afrodísias, secretário do orador Atenágoras, vou narrar uma história de amor que aconteceu em Siracusa”.
Para além dessa passagem, que, note-se, está inserida na própria obra, Cáriton é um ilustre desconhecido — como de resto o são praticamente todos os demais romancistas na Antiguidade, o que denota certo desprestígio do gênero entre a elite cultivada. Seu nome, que deriva da palavra grega charis (graça, beleza, encanto), sugere um pseudônimo, ainda mais em conjunção com o de sua cidade natal. Afrodísias designa o que pertence a Afrodite, a deusa do amor e do prazer sexual, que ali recebia culto.
Ou seja, Cáriton de Afrodísias pode ser traduzido livremente como “Senhor encantador da cidade do amor”, uma alcunha bem a propósito a quem se dedica à literatura de temática amorosa. O nome, no entanto, tem registro epigráfico, e a cidade, de colonização grega, era um próspero centro político e cultural nos períodos helenístico e imperial, mantendo intenso contato com Roma.
Afrodísias, hoje, abriga um importante sítio arqueológico, de modo que se sabe muito sobre a cidade e quase nada sobre Cáriton. Nem mesmo a menção ao rétor Atenágoras — que traduzi por “orador”, mas também poderia ser entendido como “advogado” — ajuda a situar nosso autor, uma vez que o nome é bastante recorrente na documentação da cidade, ocorrendo em vários períodos, mas sem apontar para nenhum indivíduo notável. No entanto, a posição de Cáriton como secretário de um rétor implica uma figura letrada, versada em retórica e a par das questões políticas de seu tempo. Esse perfil, ficcional ou não, se comprova pela escrita do romance, no qual, em prosa bastante elegante, fica evidente a familiaridade com Homero e Tucídides, entre outros autores gregos clássicos.
A datação do romance é em grande parte conjectural, dada a ausência de evidências internas ou externas que permitam apontar com exatidão o momento de sua composição. Se hoje ele é localizado quase de forma consensual na metade do século I d.C., no período neroniano, há cem anos, de modo contrário, era tido como o último dos exemplares do cânone romanesco grego e datado dos séculos IV-V d.C. A descoberta de papiros, o estudo de fragmentos de obras perdidas e o avanço na análise das relações intertextuais entre os romances gregos supérstites produziram essa reviravolta na cronologia, que alçou Quéreas e Calírroe ao princípio da série, posição que disputa com As Efesíacas (ou Ântia e Habrócomes), de Xenofonte de Éfeso, obra com que comunga características comuns e que é situada geralmente no início do século II d.C. Alguns estudiosos, com destaque para Tilg, consideram Cáriton o “inventor” do romance romântico (ideal love novel) e Quéreas e Callíroe, o texto arquetípico dessa produção.
Invenção pode parecer uma forma imprópria de pensar o nascimento de um gênero. Mas era exatamente isso que defendia Perry, um dos responsáveis por colocar o romance antigo no mapa literário. Para ele, “o primeiro romance foi deliberadamente planejado e escrito por um autor individual, seu inventor”, que “o concebeu em uma tarde de terça-feira, em julho, ou em outro dia ou mês”. Na concepção do autor, a visão de mundo e as condições históricas que a embasam certamente influenciam a conformação genérica, mas o produto final, a obra, é sempre fruto do gênio de um escritor.
Cabe aqui, contudo, a ressalva de Brandão, para quem “o inventor individual que teve a sua ideia numa terça-feira não passa de uma bela (e romântica!) imagem”. Em vez de apontar o suposto inaugurador do romance, é mais producente buscar sua origem na rede de obras cujas características comuns vão criando relações e consolidando paradigmas de gênero.
Se não é possível (ou mesmo relevante) dar a Cáriton o título de fundador dessa empresa, não é acidental que Afrodísias seja o epicentro dessa novidade. Bowie, na discussão que faz da cronologia dos primeiros romances gregos, arrisca o palpite de que, afinal, talvez algo tenha se passado numa calorenta terça-feira de um julho qualquer, mas não em uma parte aleatória do ecúmeno. Para ele, o fato de Eros ter se tornado o centro desse gênero novo não é explicável apenas pelas mudanças sociais e políticas, mas também pelo predomínio que o culto de Afrodite assumiu nessa parte do planeta. Assim, em meados do século I d.C., “na florescente cidade de Afrodísias, sede de um culto importante de Afrodite”, “um escritor ou escritores desenvolveram uma fórmula de sucesso”, que logo se disseminou pelo mundo habitado. E qual seria essa fórmula? A abertura de Quéreas e Calírroe a enuncia: a narrativa de uma história de amor (pathos erotikon, em grego).
O enredo típico do romance antigo traz ao primeiro plano um casal de adolescentes, belos e pertencentes à aristocracia local, que se apaixona à primeira vista, enfrenta uma série de adversidades que resultam em separação, errâncias, assédios, até que se reencontra e retorna à cidade natal, onde poderá, por fim, desfrutar de seu amor. A idealização da paixão amorosa reside na sua predestinação, já que a atração se dá à primeira vista, muitas vezes por ensejo de uma divindade (Eros ou Afrodite), e é duradoura, capaz de resistir às diversas provações que ameaçam a reunião dos jovens. A correspondência do sentimento não deixa de ser uma novidade numa sociedade em que as relações eróticas revelam-se assimétricas: o amante, ativo, impondo-se sobre o amado, passivo, sendo que os casamentos não passavam de arranjos entre famílias, desconsiderando as inclinações dos noivos — muito particularmente, a das noivas.
Quéreas e Calírroe narra a história de amor dos personagens homônimos. Calírroe, dona de uma beleza sem igual, é comparada no início do romance à própria Afrodite, deusa com quem mantém forte ligação ao longo da obra. Quéreas não se assemelha a um deus, mas se equipara aos Aquiles, Hipólito e Alcebíades, todos paradigmas de beleza masculina na Antiguidade. Ela era a filha do respeitado governante local, Hermócrates de Siracusa, figura histórica, retratada por Tucídides em História da Guerra do Peloponeso como um dos líderes da resistência à invasão ateniense à Sicília (415 a.C.). O prestígio do pai, somado à beleza da filha, atrai para Siracusa um séquito de pretendentes à mão da jovem.
Isso posto, é claro que nessa história o protagonismo é da heroína, ficando o herói, em grande parte, à sua sombra. Muitos defendem inclusive que o romance seja chamado apenas Calírroe ou Sobre Calírroe, em vista da frase com que Cáriton o encerra: “Tal relato redigi a respeito de Calírroe”. Especula-se que o destaque que as mulheres assumem no romance antigo, em sua vertente grega, reflita de alguma maneira uma mudança na sociedade, em que elas passam a ter maior visibilidade e acesso à educação, especialmente no contexto romano. Mas vale lembrar que a tragédia grega, pródiga em personagens femininas de relevo, é produto de uma sociedade patriarcal em que as mulheres das classes sociais mais elevadas eram tutoradas por seus parentes homens. Há ainda quem proponha o romance romântico como um gênero para o consumo das mulheres, que constituiriam seu público principal, o que é muito difícil de ser comprovado.
O fato é que Calírroe domina a trama do romance, cuja estrutura pode ser dividida em quatro partes, distribuídas em oito livros: 1) paixão e união dos protagonistas (Livro i); 2) separação (i); 3) desventuras dos protagonistas (ii-vii); 4) reunião do casal e retorno a Siracusa (viii). Esse esquema permite antever que as partes 1 e 4 tratam de amor, enquanto 2 e 3 abordam a aventura, categoria que compreende viagem e provação do par amoroso.
Quéreas e Calírroe também se distingue pelo cenário histórico. Dos romances gregos que foram preservados, este é o único que tem um recorte temporal preciso, já que os demais romancistas situam seus personagens em uma época suficientemente neutra para que leitor contemporâneo a eles pudesse reconhecê-la, e igualmente desprovida de referências históricas, o que termina por criar uma atmosfera atemporal. De volta à abertura do romance, Cáriton enuncia que narrará “uma história de amor que aconteceu em Siracusa” no passado, espacialmente distante de sua Afrodísias.
A história se passa, pois, ao fim da Guerra do Peloponeso, na passagem do século V para o IV a.C. A derrota da frota ateniense frente à siciliana, comandada por Hermócrates, é constantemente lembrada; além do pai de Calírroe, o rei persa Artaxerxes i e a rainha Estatira também estão ali retratados. Com isso, há quem veja Quéreas e Calírroe como “romance histórico”. Para além do anacronismo implicado no termo, creio que ele se revela inadequado na medida em que, salvo pelas menções pontuais às figuras históricas, o autor pouco se empenha na criação verossímil do contexto a que elas pertenceram, que funciona mais como pano de fundo para a história de amor que se quer narrar. Além disso, os personagens centrais têm claro caráter ficcional, prevalecendo durante a maior parte do romance o que Bakhtin denominou de “tempo da aventura”, com o foco posto nos encontros e desencontros do par amoroso.
Por fim, cabe indicar a relação essencial que o romance de Cáriton mantém com os poemas homéricos, Ilíada e Odisseia, que será desenvolvida no posfácio a esse livro. Aqui, basta mencionar que a caracterização de Calírroe se baseia nas de Helena e Penélope, personagens dos épicos. Tal qual a heroína de Cáriton, Helena tem dois maridos, o grego Menelau, que parte para resgatá-la em Troia, e Páris, príncipe troiano que a sequestra (ou com quem foge, segundo outras versões). Também em comum há a beleza excepcional e a relação privilegiada com Afrodite. Já a aproximação com Penélope se dá através do vínculo amoroso com Odisseu, que resiste à separação do casal e ao assédio de pretendentes. Vale notar que a Odisseia é um intertexto importante para toda a produção romanesca na Antiguidade.
*Adriane da Silva Duarte é professora de língua e literatura grega na USP. Autora, entre outros livros, de Cenas de reconhecimento na poesia grega (Editora da Unicamp).
Referência
Cáriton de Afrodísias. Quéreas & Calírroe. Tradução, apresentação e posfácio: Adriane da Silva Duarte. São Paulo, Editora 34, 2020.