Na mercantilização da vida

Imagem: Ciro Saurius
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Por JEFFERSON NASCIMENTO*

O discurso individualista e a palavra “empreendedorismo” encantam e se banalizam

Costumamos dizer que acidentes acontecem: decisão errada, hora errada, falha humana ou mecânica ou fatores inexplicáveis. Quase sempre a abordagem é identificar se houve imprudência, falha humana, falha mecânica. Individualizar a culpa é o caminho mais profícuo para reproduzir nossa sociabilidade sem sobressaltos.

Individualizar a culpa é o outro lado da moeda do self made man. Não há sociedade. Há um coletivo de pessoas mediadas pelo mercado. Nessa coleção de indivíduos, é possível vencer pelo esforço ou capacidade individuais. Não há estrutura! O mercado, com sua mão invisível, é justo premia os esforçados e competentes. Premia até aqueles que possuem uma “fé inteligente”. As injustiças são meros frutos de intervenções indesejadas nessa estrutura “perfeita”.

Não é preciso muito esforço para demonstrar histórica e estatisticamente tal absurdo. De modo similar, é possível afirmar que tragédias acontecem, mas contextos sociais favorecem mais ou menos a ocorrência. Decisões individuais podem ocorrer pela pressão para ampliar produtividade. Falhas mecânicas podem ocorrer mais em contextos em que há oportunidades de mercado para baratear a operação. Sem fiscalização, a concorrência dita o que permanece ou não. No entanto, para muitos, o cálculo possível é o preço. Ainda que haja “n” tergiversações teóricas de que, em dado período de tempo, permanecerão os melhores, há setores em que a ausência de fiscalização ceifa vidas antes que os consumidores percebam quem são os “melhores”.

Dia 25 de novembro de 2020 a pequena Itaí chora. O Brasil amanhece com a notícia da tragédia. Um ônibus e um caminhão se chocam na rodovia SP-249 no trecho Taquarituba-Taguaí. Foram 51 pessoas envolvidas. Ao fim do dia, eram 41 mortos. Exceto o motorista do caminhão, os mortos eram funcionários da Stattus Jeans Indústria e Comércio Eireli. O motorista do ônibus, até o momento, se encontra em estado grave.

A imprensa superficializa ao reduzir sua “denúncia” em três pontos: (a) Geison Machado, motorista do caminhão, não poderia dirigir aquele caminhão por não possuir habilitação categoria “D”; (b) a empresa do ônibus que levava os funcionários para a Sttatus Jeans, em Taguaí, estava irregular desde o fim de 2019; (c) é provável uma falha humana, pois investiga-se uma ultrapassagem proibida do motorista do ônibus. Como na lógica da meritocracia, da “fé inteligente”, do self made man, não há contexto, mas uma coleção de decisões individuais que se encontraram “por acaso”.

Não é bem assim. O advogado da Stattus Jeans, Emerson Fernandes, confirmou ao UOL que o ônibus era uma “espécie de ‘lotação’ contratada pelos próprios funcionários sem ligação direta com a Stattus Jeans”. Tal situação não decorre ao acaso. Antes da Reforma Trabalhista de 2017, as empresas tinham maior responsabilidade legal pelo trabalhador no trajeto para a empresa e tornava a questão do transporte mais séria. Quando não era possível o vale transporte para utilização do transporte público, era mais seguro para a empresa contratar o transporte. Dada sua responsabilidade, havia incentivos para verificar a regularidade da empresa contratada, exigir condições adequadas no veículo utilizado, planejar percurso e horário para garantir condições seguras e em conformidade com a legislação de trânsito. O artigo 21, IV da Lei 8.123/91 incluiu como acidente de trabalho aquele acidente ocorrido “no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado”. A regra geral era considerar o acidente no trajeto como acidente trabalhista para benefícios previdenciários e estabilidade após o acidente, incluindo a obrigação legal de emitir a Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) enviada para a Previdência Social. A responsabilização civil (danos materiais e morais) da empresa não era automática, mas poderia ser alvo de ação judicial.

Ocorre que a Reforma Trabalhista de 2017 alterou o §2.° do artigo 58 da CLT: “O tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador” (Lei 13.467, de 2017). Sem invalidar completamente o dispositivo mencionado da lei 8.123/91, a reforma trabalhista mudou e tornou polêmico o entendimento da questão. Ao não considerar jornada laboral, há brechas para que as empresas se eximam de toda e qualquer responsabilidade, inclusive deixa de ser obrigatório o preenchimento da CAT. Para conseguir judicialmente algo após o acidente, o trabalhador precisa provar que houve alguma violação ou negligência por parte da empresa. É possível algum ganho em processo judicial, mas cabe ao trabalhador o ônus da prova. Deste modo, sem o fornecimento do transporte pela empresa fica mais difícil provar a violação ou negligência do empregador.

Para piorar, a fim de dirimir essa e outras polêmicas, o governo Bolsonaro/Guedes promulgou a MP 905/19, chamada de Contrato Verde e Amarelo. Por essa MP, sequer os direitos previdenciários (benefícios e estabilidade) não poderiam mais ser requeridos pelo trabalhador um acidente no trajeto, sustando, dentre outras medidas, o artigo 21, inciso IV da Lei 8.123/91.

Vale de transporte em dia, cada trabalhador que se vire para chegar. Coletivamente, por questões práticas e econômicas, muitos trabalhadores se juntam para fretar ônibus e vans para chegar a empresas onde o transporte público não alcança de modo eficiente. Não há muita condição objetiva desses trabalhadores exigirem empresa regularizada, verificar as manutenções preventivas do veículo. No caso em tela, falamos de trabalhadores no contexto de Taguaí, cujo piso salarial de um costureiro de confecção é R$ 1.071,48, a média é R$ 1.173,98 e o teto salarial é R$ 1.774,16, um revisor têxtil recebe um salário médio de R$ 1.138,00. Pronto: a maior parte das pessoas envolvidas no acidente estava naquele local e hora trágica em um transporte irregular e precário por reação a uma redução de direitos trabalhistas.

“Ah! Mas, poderia ocorrer em um ônibus regular fornecido pela empresa!”. Poderia, mas não foi o que ocorreu. O contexto do caso está eivado de irregularidades que favoreceram a ocorrência da tragédia. E, para a Stattus, há dois problemas: (1) a MP905 foi revogada na Câmara, não foi analisada no Senado e caducou em 20 de abril deste ano; (2) a Star Fretamento e Locação Eireli EPP afirma ter sido contratada pela Stattus, não pelos trabalhadores. Não sabemos quando foram contratados os trabalhadores naquele ônibus, mas todo trabalhador contratado entre 1º de janeiro e 20 de abril, não tem sequer a cobertura previdenciária garantida, seguindo o regime da MP. Os familiares dos demais (caso contratados em outro período) poderão enfrentar um longo processo jurídico para tentar responsabilizar, ainda que indireta ou solidariamente, a empresa. Também não sabemos se a Stattus contratou ou não, se intermediou ou apenas tenta dificultar a caracterização da “violação e/ou negligência”.

Vivemos um processo em que, conforme nossa economia se desindustrializa e reduz postos formais de trabalhos, o apelo para “empreender”, “vencer por si mesmo”, “não depender de patrão” aumenta. Como se fosse possível uma sociedade com economia pujante composta majoritária ou totalmente por “empresários de si mesmos”. O discurso individualista e a palavra “empreendedorismo” encantam e se banalizam. Empreendedor, de modo atraente, passou a designar no imaginário social todo e qualquer indivíduo com um “negócio próprio”. Mesmo que esse negócio seja fruto da necessidade mais básica, não resolva um problema da sociedade, não inove, sature e desvalorize atividades ou setores profissionais inteiros. Inclusive, há um termo para todos que precisam se virar para comer: “empreendedorismo por necessidade”.

“O futuro será dos empreendedores!” Daqueles que se esforçam e buscam caminhos para vencer por si mesmo. O futuro era de Geison Machado que contava no final de semana seus planos para a esposa. O futuro do jovem de 22 anos foi interrompido entre Taguaí e Taquarituba. Geison não voltou ao Paraná com novos planos e na mídia, além de vítima de uma suposta ultrapassagem ilegal e imprudente do ônibus, foi tratado como o motorista irregular sem a carteira habilitação categoria “D”. O mesmo complexo empresarial de comunicação que vende ilusões de vencer na vida sem depender de nada e ninguém, como se recursos brotassem magicamente, não reconheceu que Geison seguia essas ilusões vendidas nem na hora de sua morte. Ele poderá descansar em paz, não sem antes ser exposto por sonhar.

Por outro lado, o motorista do ônibus, em estado grave, luta para sobreviver. Se felizmente conseguir, tentará provar sua inocência. Não haverá clemência pelo contexto de sua decisão. A pergunta agora é apenas essa: ele ultrapassou em lugar irregular? Houve falha mecânica? Por que ele dirigia um veículo irregular?

Não se pergunta porque em um contexto de precarização do trabalho surgem diversas modalidades, em número abundante, de transportes “alternativos”. Transportes movimentam a economia reduzindo custos: que nos diga a Stattus Jeans! Fenômenos como esse só ganham atenção da mídia na tragédia ou no denuncismo superficial e oportunista. Não importa se a pressa do motorista era pela pressão de fazer não sei quantos trajetos para sobreviver em tempos de crise. Não importa saber porque a empresa, regular até outubro de 2019, não voltou a se regularizar, porque tinha inscrição na ARTESP e não na ANTT, porque fazia um trajeto sem autorização dos órgãos competentes. Não interessa o contexto econômico que conduziu a empresa e o motorista àquela curva, interessa apenas identificar a responsabilidade individual. Identificada, o motorista e/ou a Eireli de transporte serão tratados como únicos responsáveis por toda a tragédia sem considerar o quanto essa pressão por empreender sempre, independente das condições materiais, produz desgraças.

É claro: a questão não é eximir pessoas de responsabilidades individuais. Mas, compreender como tais responsabilidades são provenientes de uma estrutura social. Apontar indivíduos sem discutir questões contextuais apenas fomenta o desejo de vingança, travestido de apelo à justiça. Porém, só existe justiça numa perspectiva societal. Justiça preconiza um estado ideal de sociabilidade. Nos tribunais inquisitoriais aos trabalhadores e aos pequenos “empreendedores”, cúmplices da negligência do Estado e benevolentes ao grande capital não há bem comum.

Quantos jovens trabalhavam temporariamente na Stattus Jeans? Quantos jovens que, pelas condições materiais, usaram a flexibilidade do ensino remoto nas escolas ou faculdades para “ajudar nas contas da casa” e “ganhar algum para empreender”. Afinal, não se diz que o vencedor trabalha enquanto os outros sonham?

O resultado, todos sabemos: só neste caso, 41 vidas não sonham, não agem e nem poderão “empreender” mais. As causas individuais serão exaustivamente repetidas. As questões estruturais que os levaram àquela curva, não poderão ser discutidas na imprensa. Num cenário de baixa complexidade econômica, agem para introjetar em nós o desejo de empreender independente de nossa situação de classe, da escassez de recursos, ainda que o nosso corpo seja o preço a pagar para a “roda da economia girar”. Algum cordeiro sempre tem que ser imolado para reavivar a fé no extraordinário!

*Jefferson Nascimento é professor no Instituto Federal de São Paulo (IFSP) – Campus Sertãozinho.

 

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