Por PAULO CAPEL NARVAI*
Preso às suas crendices e às fantasias criadas por sua área de comunicação social, Bolsonaro, que sempre desdenhou da pandemia, fez pouco caso também das vacinas
O ‘terraplanismo epidemiológico’ que vem marcando a política adotada pelo governo federal para enfrentar a pandemia da COVID-19 só encontra defensores em acólitos de Bolsonaro. Já em meados de março passado muitos (eu também) alertavam para o gravíssimo risco do negacionismo e do descaso com a doença, com a qual não se deveria brincar. Mencionei à época que não se deveria manipular doença e morte, mercantilizando-as, nem ideologizar e partidarizar o fenômeno epidemiológico, prejudicando o seu enfrentamento com base em evidências científicas.
Desde então o governo federal vem fazendo exatamente o oposto e, contrariando todas as recomendações, adotou o “E daí? Não sou coveiro, tá?!” dito por Bolsonaro em resposta a indagações de jornalistas sobre o aumento de casos e óbitos, no final de abril. Enquanto as estatísticas, ainda que subestimadas segundo especialistas, indicam que o país registra em dezembro mais de 6,6 milhões de casos e 178 mil mortes, Bolsonaro jamais admitiu o erro de ter considerado a pandemia “apenas uma gripinha”. Arrogante em sua ignorância, parece rejubilar-se por seu governo ter sido incapaz de, no longo período de março a dezembro de 2020, delinear um plano nacional para controlar a pandemia, coordenando as ações de Estados e Municípios.
Sem essa indispensável articulação, os entes federativos foram abandonados à própria sorte, o que os levou a tentarem de tudo e a gastarem dinheiro público com ações que, muitas vezes, violaram o princípio bioético da não-maleficência. Apoiados apenas em crenças proliferaram país afora o uso de cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina, aplicação anal de ozônio, nitazoxanida e recomendações de fé e orações, dentre outras “soluções” infalíveis. O Ministério da Saúde vem recomendando a adoção de “medidas preventivas”, sem identificá-las – ninguém por lá sabe, a rigor, o que seriam, uma vez que até mesmo a recomendação de uso de máscaras é desqualificada frequentemente por Bolsonaro, que ou não a usa ou o faz de modo deliberadamente atabalhoado.
Busquei, mas não encontrei, fotos de Bolsonaro lavando as mãos ou usando álcool-gel. Ele parece fazer questão de não emitir sinais positivos nem dessas singelas medidas preventivas. Técnicos do Ministério da Saúde admitem que a menção às tais “medidas preventivas” parece ser uma forma de “agradar” a Bolsonaro, que preconiza (ele pensa que pode e deve preconizar algo…) o uso de hidroxicloroquina “desde o início dos sintomas”.
Nos últimos meses intensificou-se, porém, a perspectiva de uma ou mais vacinas serem viáveis no curtíssimo prazo. O mundo colocou-se imediatamente na corrida de alguma vacina. O mundo, entenda-se bem, menos Bolsonaro, decerto, que parece viver em outro mundo.
Entretanto, apreciador de um bom holofote, o governador de São Paulo, João Dória, logo tratou de também entrar em cena. Ele, registre-se, estava em busca do proscênio desde a chegada da pandemia ao Brasil.
Mas a cena na qual ambos disputam o protagonismo é mais do que o palco da COVID-19, pois Bolsonaro antecipou a corrida eleitoral de 2022. Então, peças postas no tabuleiro, começou o jogo de xadrez. Ainda não é oficial, mas Bolsonaro tomou a iniciativa de abrir o jogo. Sua tática para “ocupar o centro do tabuleiro” foi atacar, antecipadamente, a principal possibilidade de prevenir a doença: a vacina.
Preso às suas crendices e às fantasias criadas por sua área de comunicação social, o presidente da República, que sempre desdenhou da pandemia, fez pouco caso também da(s) vacina(s). Primeiro, tomou a iniciativa de um debate estéril sobre a suposta “obrigatoriedade de se submeter à vacina”, enquanto locutoras anunciavam na ‘Voz do Brasil’, em tom otimista e grandiloquente, que o país “lidera em nível mundial a recuperação de doentes de COVID-19”. Depois, ideologizou a vacina desenvolvida pela China, a CoronaVac, cujos testes de fase 3 estão em curso no Brasil, Indonésia e Turquia. “Vacina comunista!”, vociferou.
Aberto o jogo, Dória fez sua jogada, realizando uma espécie de “gambito da Rainha”.
Antes de prosseguir, um esclarecimento: “O Gambito da Rainha” é o título de uma minissérie de enorme sucesso na Netflix, baseada no livro de Walter Tevis. A história se inicia em um orfanato no interior dos Estados Unidos, nos anos 1950, e narra a trajetória de Beth Harmon (Anya Taylor-Joy), uma garota-prodígio do xadrez, introduzida no jogo pelo zelador, no porão do estabelecimento, aos nove anos. Ele começa a ensiná-la aplicando-lhe a estratégia denominada “Mate do Pastor”, com a qual derrota-se o adversário rapidamente, realizando apenas quatro movimentos de peças. Beth se encanta com o xadrez e logo aprende a estratégia conhecida como “gambito da rainha”, conhecida de qualquer enxadrista com boa formação.
O gambito da Rainha consiste em sacrificar o peão, uma das peças que se localiza em frente da Rainha, para desencadear outros movimentos e dar curso ao jogo. Pode ser aceito ou não pelo adversário e o jogo prossegue. Gambito, nesse contexto, corresponde em linguagem popular, à rasteira, ou ao passa-moleque, em que se busca “derrubar o adversário” atingindo-o nas pernas ou, metaforicamente, induzi-lo ao erro. Os enxadristas dizem que o gambito é uma forma de “mostrar os dentes” na abertura do jogo, avaliar a reação do adversário e, então, alinhar suas peças para a batalha.
Com o anúncio de vacina anti-COVID-19 “para todos” em janeiro, Dória adiou por um mês o que havia prometido para meados de dezembro. Com essa manobra, esvaziou o movimento de Bolsonaro de oficializar mudanças nos programas de saúde mental e de AIDS, dentre outros implementados nacionalmente pelo SUS, com as quais esperava fazer cortina de fumaça para o início da vacinação em São Paulo. Em janeiro, Dória comemorará mais do que o aniversário da capital paulista, em 25 de janeiro.
Resta saber se Bolsonaro disporá em janeiro de outras possibilidades para assegurar presença na mídia enquanto o paulista estiver discursando sobre o andamento da vacinação no estado. A julgar pelo espetáculo de dezembro, envolvendo os próprios trajes dele e da primeira-dama na cerimônia de posse do cargo, sua equipe não tem muitas cartas na manga. Terão de buscar algo relevante para disputar o espaço na mídia, ocupado por Dória.
De qualquer modo, xadrez à parte, é evidente que o governador paulista está jogando para a torcida. Há fundadas razões para admitir que o estado de São Paulo não tem condições de vacinar sequer todos os paulistas que acorrerem em busca da vacina. Seu chamado a que todos que quiserem a vacina a terão em São Paulo não passa de populismo sanitário.
Além disso, a prática do governo paulista não tem sido a de defender o SUS e muito menos agir pela manutenção dos recursos financeiros de que necessita o nosso sistema universal. Dória jamais disse uma palavra contra o congelamento de recursos do SUS nos próximos 20 anos e apoiou politicamente a aprovação da Emenda Constitucional 95, em 2016, hoje a principal ameaça ao financiamento do SUS.
Há muito tempo São Paulo não vem priorizando a rede de serviços básicos. A terceirização da gestão do SUS reforça e aprofunda o modelo “hospitalocêntrico” que orienta a política estadual de saúde. Os indicadores de desenvolvimento da atenção básica, ou atenção primária à saúde, para o estado paulista são decepcionantes segundo avaliação de especialistas.
O deliberado sucateamento e desorganização dessa base da estrutura do SUS, representada pela rede básica de saúde e suas equipes multiprofissionais, tanto na capital quanto no interior, se expressa nos indicadores de saúde, de desempenho dos serviços e, também, nos relatos de conselheiros de saúde e dos profissionais do SUS. Com essa deficiência no sistema público de saúde, o estado de São Paulo não conseguiu organizar adequadamente estratégias de vigilância em saúde eficazes para o enfrentamento da COVID-19. Atualmente, o governo paulista centra sua estratégia de controle na vacina.
Mas o problema é justamente isso: colocar todas as fichas na vacina, pois, embora elas coloquem em outro patamar as possibilidades de sucesso no enfrentamento da pandemia, medidas de controle sanitário baseadas em vigilância em saúde, com ações territoriais, casa a casa, participação das equipes de saúde da família e ampla participação das comunidades são indispensáveis. Especialistas dizem e reiteram que hoje, mais do que nunca, a participação das comunidades é indispensável. Sem essa participação não há possibilidade de controle da pandemia, senão aguardar por sua remissão espontânea, reconhecendo o fracasso sanitário. Esta, aliás, a estratégia do governo federal, que posterga todas as decisões, não executa recursos orçamentários, comete incúria administrativa.
Não se trata, decerto, de opor vacina e vigilância, mas, ao contrário, de compreender que são possibilidades complementares de atuação, ambas necessárias e que requerem organizar seu emprego de modo articulado. Tão equivocado quanto recusar o binômio vacina-vigilância, como faz Bolsonaro, é enfatizar a vacina em detrimento da vigilância, ou seja, sem testar suspeitos, sem rastrear contatos e sem isolar doentes. Isto vale para qualquer vacina, pois não há qualquer dúvida de que todas serão necessárias ao Brasil, dadas nossas características territoriais, culturais e institucionais.
O que mais preocupa, portanto, no “gambito do Dória”, é que sua jogada se preste apenas para colocá-lo no centro do tabuleiro político-eleitoral. Suas ações à frente do governo estadual não o vêm qualificando efetivamente nem como um firme defensor do direito à saúde, nem no reconhecimento do SUS como o melhor instrumento para que o Estado brasileiro assegure esse direito a todos – conforme, aliás, está inscrito na Constituição da República.
Mas o que é, afinal, o “gambito do Dória”? É uma estratégia política que consiste em colocar a responsabilidade sobre o que não se logrará realizar em São Paulo, no colo da ANVISA. Surpreendentemente, para um governo federal que vem investindo na criação de uma imagem de que está apoiado em notáveis estrategistas políticos, Bolsonaro e sua equipe aceitaram o gambito. Ao fazê-lo, agiram como a iniciante Beth, surpreendida com o “Mate do Pastor”, pois, ato contínuo, a Anvisa “passou recibo” e mandou avisar que vacina só em fevereiro, se tudo der certo. O ministro da Saúde comunicou a decisão a Dória e outros governadores e secretários de saúde um dia depois que Dória tornou público o plano paulista de vacinação.
A negativa da Anvisa à vacina, da forma como se deu, correspondendo a um “não” do governo federal, era o que Dória precisava neste momento, para prosseguir com sua estratégia e reorganizar seu jogo.
Xeque. Mais fácil do que o “Mate do Pastor”.
Mas o xeque-mate será dado, ao que tudo indica, em 2022. Até lá, porém, há 2021 e não faltam jogadores dispostos a impedir tanto Bolsonaro quanto Dória de seguirem movendo peças nesse tabuleiro. O alvo preferencial é Bolsonaro. Todos os que buscam acesso ao tabuleiro, sem exceção, estão dispostos a fazer o que lhes for possível para deixarem-no longe, muito longe do tabuleiro.
Com o ano novo virá muito mais do que a ampliação da segunda onda da COVID-19 que, iniciada no final de 2020 vem dando mostras, nas capitais do sul do Brasil, de ter características epidemiológicas similares à primeira onda. Ações urgentíssimas são necessárias, para além de xeques, mates e gambitos.
*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP.